A primeira playlist para a Vitrola, coluna mensal na Caju, gira o dial da MPB por uma história da favela, em 4 tempos e 21 canções.
Alvorada lá no morro, que beleza
A forte ocorrência do tema no samba era mais que natural, afinal foi nas favelas que o samba cresceu e ganhou força quando ser pego com um pandeiro ainda era motivo de prisão. Apesar de Noel Rosa, sambista do asfalto, ter ensinado que o samba não vinha “do morro nem lá da cidade”, a imagem da favela como local autêntico do samba era a regra. Ela aparecia em personagens, situações ou como cenário. Em Escurinha, por exemplo, aqui cantada por João Nogueira, Geraldo Pereira apresenta uma descrição sintética e precisa da célula da favela: o barraco (“Quatro paredes de barro/ Telhado de zinco/ Assoalho de chão”).
Na primeira metade do século 20, prevaleceu a imagem idílica da favela como berço do samba, paraíso puro, quase intocado pelo progresso, louvado em canções como Favela (Roberto Martins e Waldemar Silva, na voz de Francisco Alves). Surgidas anos depois, já em outro contexto, Alvorada e Sala de recepção , odes à Mangueira compostas por Cartola – cantadas aqui, respectivamente, pelo próprio Cartola e por Leci Brandão no programa “Ensaio” e por Chico Buarque – são outros exemplos perfeitos dessa visão. A questão do preconceito contra o favelado já aparecia em canções como Recenseamento (Assis Valente, nessa versão interpretada por Carmen Miranda), que narra a cena do agente recenseador fazendo uma entrevista num barraco. Mas a letra soa mais como exaltação da favela que denúncia contra a discriminação.
Não tem automóvel pra subir, não tem telefone pra chamar
A partir dos anos 60, começam a ficar mais constantes letras críticas sobre o tema. Já início da década de 50, em Saudade de Mangueira (aqui na gravação do Trio de Ouro, de 1953), podia-se identificar um lamento saudoso sobre uma favela que não existia mais. Também em tom de lamento, Barracão (Luiz Antônio/Oldemar Magalhães, cantada por Heleninha Costa) apontava a pobreza infeliz da favela, mas ressaltava o barraco como uma “tradição do meu país”.
A visão ambígua, mais complexa, sobre o morro, aparece em vários momentos. Motivado pela política de remoções das favelas da Guanabara, Zé Ketti escreve Opinião, no qual afirma que não sai do morro, onde “está pertinho do céu”. O mesmo compositor apresentou 400 anos de favela (“Sem água/ Com mágoa/…/ E eu só levando a pior/… /Barracão de zinco perfurado”) e Acender as velas (“No morro/ Não tem automóvel prá subir/ Não tem telefone pra chamar/ E não tem beleza pra se ver/ E a gente morre sem querer morrer”).
Um dos exemplos mais brilhantes desse olhar menos simplista sobre a favela é Sei lá, Mangueira (Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, aqui numa gravação de Elizeth Cardoso). No samba, a abordagem é original e riquíssima. Ao mesmo tempo em que compara a favela a “um céu no chão”, o autor diz não saber se “a beleza de que lhes falo/ Sai tão somente do meu coração”.
Eu só quero ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci
Nos anos 80, a influência do tráfico e do crime organizado nas favelas dá seus primeiros sinais. No fim da década de 70, em Tiro de misericórdia, que Elza Soares cantou em 1986 no programa “Chico e Caetano”, João Bosco e Aldir Blanc já faziam o retrato épico de um jovem bandido do morro, personagem diferente do antigo malandro. Uma homenagem a Escadinha que fez sucesso na voz de Bezerra da Silva, Meu bom juiz (Beto Sem Braço e Serginho Meriti) fazia a defesa do traficante, enfatizando sua ação social no morro (“Quando alguém se inclina com vontade/ Em prol da comunidade/ Jamais será marginal”). Atacando o preconceito, o próprio Bezerra cantava em Eu sou favela que “A favela nunca foi reduto de marginal/ É só gente humilde, marginalizada”.
A geração 80 do rock brasileiro também tomou a favela como tema. Alagados , do Paralamas do Sucesso, apontava as dificuldades da vida dos moradores da Maré, ao mesmo tempo em que citava a abertura do morro à cultura pop e suas “antenas de TV”. O funk, que teria projeção nacional poucos anos depois, lançou uma das obras mais representativas sobre a favela. Rap da felicidade (Cidinho e Doca) juntava a batida eletrônica do funk com vocais de samba-enredo – funk e samba, os dois ritmos predominantes da favela até hoje. Na letra, uma denúncia completa e nada idealizada, feita por moradores da favela. Os versos falam dos tiros de metralhadora, da presença humilhante de bandidos, do descaso das autoridades. Mas, sustentando tudo, uma declaração de amor à favela: “Eu só quero ser feliz/ Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”.
Funk, hip hop, samba e percussão
O funk dos morros cariocas entrou definitivamente no caldeirão da música brasileira nos anos 90. O Farofa Carioca citou o ritmo para falar do código de conduta das favelas em A lei da bala, que tinha ainda diálogos de policiais por rádio. A letra dizia que “Quem sobe no morro não canta de galo”. Mas convocava as pessoas para o baile funk.
A lei da bala era apenas um exemplo da imagem da favela que se formava na música, refletindo cada vez mais a violência urbana que se intensificava. Nascida em Vigário Geral, favela que havia sofrido uma chacina de 21 moradores por parte de policiais, a banda AfroReggae procurava dar seu basta e sinalizava um caminho de mudança para uma “nova cara” em Capa de revista, na qual alternava imagens de violência (“Lápis no ouvido de mais um vacilação”) com mostras de força cultural (“Dança, capoeira/ Tambores em fúria/ Funk, hip hop/ Samba e percussão”).
No mesmo contexto, o Rappa cantava em Favela que ela era um espaço de autenticidade num mundo em que tudo é entretenimento superficial (“O curral do samba é a passarela”) e referência maior para a cultura carioca (“O Rio de Janeiro todo é uma favela”, verso dúbio que pode também ser visto como acusação da degradação da cidade).
A ideia do morro como comunidade identificada com o morador, que o samba sempre apresentou, aparece cada vez com mais força. Ela está presente no samba Aqueles morros (Pedro Botini/ Bezerra da Silva), que mapeia o Rio de Janeiro listando suas favelas, morros que não tinham nome até que “foi pra lá o elemento homem”. O funk e o hip hop reforçaram esse vínculo com as comunidades. Saindo da linha de discurso duro de denúncia social do rap, Rappin’ Hood canta em Quantos morros sua ligação com várias favelas, citando “Quantos morros já subi”, do Fundo de Quintal. Samba e rap juntos, outro encontro cultivado nas favelas, e que diz tanto delas quanto os versos que as cantaram.
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A foto da chamada deste post é de Walter Firmo e mostra Cartola e sua mulher, Dona Zica, em sua casa no Morro da Mangueira, em 1976.
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Jornalista e crítico de música.
Antes, parabéns a toda equipe pela revista.
Só uma observação, Lichote. Você não cita a favela cantada por Sérgio Ricardo. Ele canta como nasce uma favela.
Abraço a todos. Já me cadastrei para receber a news letter.
Badu
uma delícia essa vitrola. Bela pesquisa, escolhas perfeitas. Foi um prazer ouvir.
Viva a Caju! Vida longa.
Abraços a todos os envolvidos.
Rachel Korman
Oi, Rachel, obrigada!!! Volte sempre e espalhe o cheio de caju pelas redes. Um beijo