apontamentos sobre o quanto de paisagem pode entrar em um olho
I.
Aquela casa de madeira era, há algum tempo, minha morada, e, ali, acostumei-me a desempenhar as funções domésticas de que todas as casas necessitam. Limpava-a todas as manhãs, após meus exercícios e, por volta das onze horas, começava a preparar meu almoço. Depois de almoçado, nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos depositados sobre a pia. Na parte da tarde, dedicava-me à construção de um mapa das regiões avistadas na praia onde a casa tinha sido erguida.
Dentre os acidentes naturais e artificiais da paisagem que cartografei, como as dunas que persistiam imóveis às forças dos ventos, as depressões onde as gramíneas cresciam e as ruínas de concreto que, esporadicamente, o vento teimava em encobrir de areia, o espaço interno da casa figurava entre os lugares mais sistematicamente explorados. Nele, conseguia identificar claramente cada sentar-levantar que desgastou a madeira das cadeiras, cada riscar que marcou a superfície da mesa, cada passo que corroeu o chão. Imaginava uma sucessão de planos invisíveis que interseccionavam o ambiente, tentando compreender as posições planimétricas e altimétricas das paredes, dos móveis e dos objetos que neles se depositavam.
Quando olhava o mapa construído, identificava com exatidão a correspondência do espaço à sua representação. A limpeza realizada todas as manhãs parecia não me trazer nenhuma nova informação, além daquelas que já constavam nos meus desenhos, conferindo-me a sensação plena de conhecer minuciosamente aquele lugar. Baseado nos equipamentos de precisão e nos cálculos matemáticos que utilizei, desenhei fronteiras, pontilhei trajetos, apontei alturas que pareciam infalíveis.
Naquele dia, no entanto, ao penetrar a porta, parecia estar em um lugar nunca percebido antes. Constatei que a aparência familiar e confortável das paredes, dos móveis, dos livros e dos vasos, havia se singularizado. Parecia haver emergido na casa uma faceta de estranheza, dissolvendo completamente a carta geográfica construída.
Desconfiei, então, que, ao repetir, diariamente, minhas atividades como espanar o pó dos móveis e varrer a sujeira do chão, acostumei-me a movimentar-me segundo as mensurações que o espaço soube impor… Seria possível que as sucessivas casas em que morei tenham desenhado os meus atos? Teria eu sido domesticado, silenciosamente, por objetos construídos para as medidas corporais de sujeitos imaginários? Estaria eu acomodado em um modo de ser e estar no espaço doméstico? Ou, quem sabe, os fantasmas que a casa engendra, espalhados nos móveis, objetos e aberturas, estariam, neste momento, habitando-me ao me imporem limitações rígidas e disciplinadas?
O mapa da casa havia se tornado um documento incompreensível, embebido de rabiscos e palavras ilegíveis. Era incapaz de identificar qualquer semelhança do desenho com o lugar que agora vislumbrava. Subitamente, entendi que, em todo desejo de mapeamento, subjaz a afirmação de que o mundo pode ser congelado em uma síntese desenhada. Aquele pedaço de papel, jogado sobre a mesa, impunha-me um deslocamento pré-definido, dado a partir de uma construção bidimensional de caminhos tracejados, ao mesmo tempo em que o próprio espaço imobilizava-se ao ser representado em mapa. Talvez, ao mapear a casa, eu a tenha transformado em uma caixa inerte meramente geométrica, feita de sólidos bem talhados, de vigas bem encaixadas, que mantêm precisão e constância.
Neste momento, puxei a cadeira da mesa para sentar-me. Meus pensamentos turvavam-se ao tropeçarem nas rachaduras da minha mente, emaranhando-se cada vez mais em pontas entrelaçadas. O espaço estranhamente familiar da pequena casa parecia-me, agora, demasiadamente bagunçado e sujo: uma camada espessa de poeira impregnava os móveis e objetos, tornando-os completamente opacos e obscurecidos.
Tentava, agora, ordenar meus pensamentos, mas já sabia que eles deslizariam entre meus dedos. É de sua própria natureza evitarem ser apanhados. Decidi, então, empreender uma organização da casa como forma de desentrelaçar o nó dado no fio delicado das ideias.
II.
Ao seguir os caminhos que pontilhei no mapa, compreendi que percorria, diariamente, sempre os mesmos trajetos, limpando os mesmos lugares e usando os mesmos móveis. Tudo que não estava dentro da minha rota de uso passou a não ser percebido. A casa, agora outra, apresentava um nítido contraste entre os espaços utilizados, limpos e brilhantes, com as regiões ignoradas, que se encontravam acinzentadas. A poeira tinha uniformizado as superfícies com uma espessa camada opaca. Tinha-se a impressão de que as coisas haviam ganhado uma espécie de existência invisível, como se os volumes não interagissem com a luz.
Ao repetir, infinitamente, os mesmos gestos, devo ter desprendido pequenas partículas de variadas origens, estruturas e composições – como fios do meu cabelo, restos de fibras sintéticas das minhas roupas e lascas da minha pele –, fazendo-as flutuar pelo ar até encontrarem pouso nos lugares não utilizados.
Comecei, então, a retirar do chão, das mesas e das outras superfícies tudo o que estava fora de lugar, utilizando uma caixa para recolher os objetos…
Com uma vassoura, removi as teias de aranha dos cantos das paredes…
Lavei a louça, deixando-a secar no escorredor…
Apliquei os produtos de limpeza, aguardando alguns minutos para que fizessem efeito…
Enfrentei primeiro os cômodos mais difíceis, como o banheiro e a cozinha, trabalhando em cada um no sentido horário, a partir da porta, para que nada ficasse sem limpeza…
Utilizei um balde para transportar os produtos e utensílios de limpeza de um cômodo para o outro…
Em vez de retirar todos os objetos, removi-os de um lado enquanto limpava o outro, e vice-versa…
Havia chegado, então, o momento de espanar as estantes, as prateleiras dos armários e os objetos, deixando a poeira flutuar pelo ar até pousar no chão, para, por último, limpar o piso e dar por encerrada a organização do espaço. Com a pressão das mãos e o calor útil da lã, comecei a esfregar a mesa poeirenta que foi adquirindo um brilho suave. A fricção magnética fazia ressurgir a entrecasca da árvore, mostrando-me que era impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer no mundo. Neste momento, lembrei-me da definição da palavra mesa no dicionário: “prancha horizontal sustentada por três ou quatro suportes e sobre a qual se pode comer, escrever…” e, por tê-la, tinha-me desinteressado de todos os atributos que podem acompanhá-la: forma dos pés, estilo das molduras… Ao espaná-la, a minha percepção sobrepujou a definição descrita no dicionário, relembrando-me de que, a cada dia, a mesa aparece para mim de uma maneira diferente, e não há detalhe que seja insignificante – fibra da madeira, a própria cor, a idade, riscos ou arranhões que marcam essa idade.
Nasciam em mim outras impressões ao esfregar o móvel velho com um paninho de lã: aquela mesa era a mesma de sempre e, ao mesmo tempo, era outra mesa, distinta de todas as demais, tornando-a sempre familiar e sempre estranha em sua forma de aparecer. O calor da fricção parecia despertar a mesa descartada e esquecida, devolvendo às suas superfícies desgastadas toda a capacidade de refletir, dispersar, absorver e transmitir luz.
Ao terminar de espanar os móveis, sentei-me no sofá. A organização da casa não tinha desentrelaçado o nó das minhas ideias, que persistiam turvas e emaranhadas. Olhei para o teto esburacado, mirando-o por algum tempo. Em cada buraco, incidiam feixes de luz que revelavam que a poeira que havia sido retirada das superfícies encontrava-se, agora, flutuando silenciosamente acima da minha cabeça. Uma coleção de partículas de fios de cabelo, pelos de animais, polens, pedacinhos de asas e de patas de pernilongos e pulgas, restos de fibras sintéticas – de roupas, de carpetes e de móveis estofados –, fungos, cristais, chumbo, arsênio, sal, ácaros e seus excrementos, asfalto, terra, lascas de pele humana… Tudo isso e outras coisas inimagináveis poderiam estar ali reunidas nas minúsculas bolinhas que cintilavam no ar.
Comecei a lembrar-me de Lucrécio, que via a dança da matéria na infinidade de pequenas partículas se misturando em uma infinidade de maneiras. Isso, para ele, era a síntese de que tudo no universo tem subscrito em si pequenos corpúsculos que se agitam escondidos da nossa visão. Talvez Lucrécio, ao afirmar isso, já suspeitasse que toneladas de poeira flutuassem no ar e que a grande maioria dessa poeira fosse produzida de forma natural, como as partículas de terra procedentes do solo, que viajam pelas correntes de ar e penetram em qualquer ambiente, por mais fechado que esteja. Ou mais: talvez Lucrécio já possuísse uma vaga noção de que, entre os grãos, estavam aqueles que haviam sido transportados por meteoros e meteoritos, provenientes de outras galáxias, e que, a cada ano, aumentava a massa da Terra em dezenas de milhares de toneladas.
Quantos fragmentos diferentes não estariam ali, flutuando, neste exato momento? Quem sabe o pó de outras casas? Quantas e quais pessoas estariam misturadas nos fragmentos de pele humana e de fio de cabelo que brilhavam sob a luz do sol? Haveria restos de quantas e de quais roupas, carpetes e móveis estofados? E a terra pertenceria a quantos diferentes desertos, planícies, praias, vulcões, ilhas e cidades? De quais lugares do mundo seriam provenientes? Será que nessa miríade estariam grãos das Ilhas Pitcairn, um dos menores países do mundo, localizado no meio do Oceano Pacífico, quase inacessível, com aproximadamente 65 habitantes? Junto a esses, estariam corpúsculos, oriundos de imensas metrópoles como Nova York, São Paulo e Xangai, fazendo do ar um meio democrático de convivência para se flutuar livremente? E a poeira do universo? Haveria partículas de Vênus, Marte, Saturno e Plutão? Dos cometas e meteoritos? Das estrelas? Ou, ainda: estaria eu convivendo com a poeira oriunda do além do universo observável, com as partículas do infinito do infinito? Ou do infinito do infinito do infinito? Então, estaria eu respirando partículas oriundas de corpos de indivíduos desconhecidos? De paisagens terrestres e extraterrestres? Grãos de outros planetas? Outros universos? Partículas do infinito infinitesimal? Inspiro o não-sei-o-quê que o ar engendra?
A poeira, que flutuava próxima ao teto, agia, agora, como as perguntas que, sem resposta, multiplicavam-se na minha mente: expandia-se sobre todo o espaço, envolvendo o meu corpo, os móveis e os objetos, em uma bruma de corpúsculos que cintilavam em uma infinidade de movimentos aleatórios. As partículas estavam dançando pela casa, exatamente, como os astros figuravam no céu. Na exaustão em que me encontrava, decidi esticar-me no sofá para contemplar o universo que cintilava, aqui em casa, em todo o seu silêncio e infinitude.
III.
Por deter-me demoradamente aos inúmeros detalhes vistos no céu, acabei sobrecarregando meus olhos, cujas imagens não eram vistas nitidamente: fechei por um momento as pálpebras, deixando que as pupilas exaustas reencontrassem a percepção precisa dos contornos, das cores, das sombras. Com os olhos cerrados, pareceu-me que o firmamento e os astros afastavam-se de mim. Estava, agora, no escuro, onde o mundo visível parecia ter desaparecido.
Corpo mergulhado em olhos, corpolhos. Como agora, em que minha pele toca o tecido do sofá, mas em que não o sinto. Mas alguma coisa acontece. Que coisa é essa que acontece? Podem ser sensações ou podem ser simplesmente memórias ou imaginações. Mas sempre acontece alguma coisa. Se pensarmos que o mundo é simplesmente nossa imaginação, se pensarmos que cada um de nós está sonhando um mundo, por que não supor que passamos de um pensamento a outro e que não existem subdivisões, posto que não as sentimos?
No momento em que abri os olhos, tentando novamente vislumbrar as estrelas, algumas frases vagas surgiram em minha lembrança, oriundas de um livro que encontrei no chão da casa durante a arrumação: tudo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é paisagem. No entanto, as palavras dissolveram-se lentamente, ao mesmo tempo em que o borrão negro em que o céu havia se transformado se intensificou. Ao tentar recobrar a visão precisa das coisas, coloquei a mão no bolso em busca do colírio que sempre me é útil em casos desse tipo. O contato dos pingos com os globos oculares acabaram por desemaranhar momentaneamente o nó dos meus pensamentos: meus olhos são janelas-filtro que emolduram um mundo-paisagem…
Contudo, embebidas pelo fluido oftálmico, minhas vistas mantiveram-se enxergando os mesmos astros desfocados como manchas de luz que perfuram o céu. O estado débil em que minha visão se encontrava foi agravado pelo uso do colírio. “Alles Nahe werde fern” – tudo que está perto se afasta. Meus olhos lentamente foram-se fechando, como o crepúsculo a que Goethe se referia ao escrever essa frase. Tudo o que está perto se afasta, é verdade. Ao entardecer, as coisas mais próximas se afastam de nossos olhos bem como o mundo visível afastou-se dos meus neste momento. Sentia-me pronto, como nunca antes, para apropriar-me do mundo…
Ou, pelo menos, do quanto de uma paisagem pode entrar em um olho.
Autor
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Artista visual e cenógrafo, tem uma obra plástica extremamente vinculada à literatura. Mestre em artes visuais pela Universidade Federal de Pelotas.
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Artista visual e cenógrafo, tem uma obra plástica extremamente vinculada à literatura. Mestre em artes visuais pela Universidade Federal de Pelotas.