É primavera numa aldeia que poderia estar em qualquer lugar do mundo. Uma jovem cheia de vida comemora a alfabetização de sua amiga camponesa e a volta de seu amado, que foi liberado do serviço no exército. Assim se inicia a ópera Jenufa, do compositor Leos Janacek, em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Apresentada pela primeira vez em 1904, a obra trata de temas atávicos na história da humanidade. No centro da trama duas mulheres, Jenufa é uma jovem cheia de vida e sonhos por realizar, enquanto Kostelnicka, sua madrasta, é uma mulher madura marcada por um casamento infeliz e uma visão amarga da vida.
Jenufa traz uma sombra em seu semblante: está grávida de seu primo, Steva, um homem belo e frívolo. O meio-irmão deste, Laca, é apaixonado por Jenufa, e inveja Steva por sua beleza e sucesso. A partir dessa primeira apresentação da trama, poderíamos concluir que Jenufa se transformaria em mais uma na lista de mulheres loucas, suicidas e mortas de amor da história da ópera. Mas o compositor escolhe um libretto que prefere calar a voz do preconceito, da intolerância e da cegueira causada pela certeza de que valores supostamente morais podem justificar atrocidades. Uma ópera muito afinada com a luta feminina e feminista, que se reacendeu nos últimos anos.
Herança de Wagner; ponte para Prokofiev
Janacek teve como ponto de partida a peça homônima de Gabriela Preissová, e realizou um trabalho brilhante na transposição da dramaturgia para a linguagem operística. O legado de Richard Wagner, que removeu de suas óperas a divisão em árias, recitativos e ensembles, compondo períodos de música integral (durchkomponiert) fica explícito. Em Jenufa, toda a música se faz a serviço do desenvolvimento dramático, as linhas vocais e instrumentais se integram de maneira orgânica, com um sentido de continuidade que não deixa nenhum fio solto na trama da partitura. A utilização de modos da música folclórica tcheca, ritmos da língua falada e timbres peculiares – como o ostinato do xilofone, no primeiro ato, e a estranha intervenção da harpa, no terceiro – tornam a peça muito próxima do que viria a ser a música moderna de Bartok e Prokofiev, mas não devemos nos esquecer que ainda estamos no campo da harmonia romântica.
Nessa montagem, Gabriella Pace é Jenufa, e a soprano demonstra muita segurança no papel. A cena do segundo ato em que Jenufa canta uma Salve Rainha é emocionante em sua voz. Eliane Coelho interpreta Kostelnicka, e sua experiência, técnica apurada e uma identificação impressionante com o papel contribuem para uma performance irretocável. Eric Herrero no papel de Laca é um tenor de voz brilhante e emocionada, transmite com muita habilidade a mudança de caráter do personagem; já Ivan Jorgensen faz um Steva sem muito vigor.
Assistimos a um período de crise na cultura brasileira, cantores, instrumentistas e funcionários do Theatro Municipal não estão medindo esforços para manter a casa funcionando. Salários atrasados, demissões e cortes de verbas estão dificultando muito a estabilidade da instituição, um patrimônio do Brasil. Esperamos que um espetáculo de tão alto nível seja o prenúncio de dias melhores: que o brilho do sol e o abraço do casal no final da ópera mostrem a esperança no alvorecer de um novo mundo, com mais amor e justiça também no Municipal.
*A foto do post é do próprio autor do texto.
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Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.