Em livro sobre desfiles inesquecíveis que não conquistaram o título do carnaval, Marcelo de Mello faz uma exaltação aos vencidos
Ao escrever sobre seu time de coração, João Cabral de Melo Neto fala sobre o desábito de vencer. O torcedor do América, diz ele, guarda a vitória como coisa fresca, sem mofo, “ácida à língua qual cajá”. Nessa expectativa sempre renovada, os afetos se mantêm apartados do triunfo. Misto de utopia e alumbramento.
Do futebol à escola de samba, um passo. Garrincha, mestre-sala dos gramados, gingando em preto e branco. O pavilhão que não se dobra à derrota, e volta a girar. Insiste.
Chega à recordação uma segunda-feira que amanhece com jeito de domingo. “Vem, amor / Vem à janela ver o sol nascer”, canta a União da Ilha naquele 21 de fevereiro de 1977. São palhaços, banhistas, jogadores – olha eles aí de novo – que pintam a Avenida de um colorido singular. As cores de Maria Augusta, a carnavalesca.
Na contramão do luxo e da opulência das coirmãs, a Ilha extraía a beleza do que é aparentemente ordinário: o cotidiano. E carpia, das arquibancadas, o grito tão esperado: já ganhou.
Mas não. Faltou um ponto. A Beija-Flor seria a campeã daquele ano, como lembra o jornalista Marcelo de Mello no recém-lançado Por que perdeu? Dez desfiles derrotados que fizeram história (Record).
É bastante costumeiro que livros narrem os feitos daqueles que venceram. Eis, por oposição, o primeiro mérito do estudo produzido por Marcelo. Na obra, ele direciona os holofotes aos vencidos.
A Portela de 1979, com Incrível, fantástico, extraordinário; o Império Serrano de 1983, com Mãe baiana mãe; a Beija-Flor de 1989, com Ratos e urubus… larguem minha fantasia; a Unidos da Tijuca de 2004, com O sonho da criação e a criação do sonho. Entre outras.
Em comum aos dez desfiles retratados no livro, o fato de que todos eles arrebataram o público e a crítica especializada, mas não convenceram os jurados. Foram apontados à sua época como francos favoritos ao título do carnaval. E não levaram.
A partir de rigorosa pesquisa e recordações pessoais, o autor comenta a discrepância entre desempenho e notas, a repercussão na imprensa, as intrigas de bastidor, além de iluminar a conjuntura social e cultural do momento. Para além disso, embora não seja o objetivo do livro, reflete as mudanças ocorridas nos desfiles ao longo dos últimos 40 anos.
Desempenho do samba-enredo é ponto em comum dos desfiles inesquecíveis
Essa história inclui o despontar de Renato Lage e Paulo Barros, cada qual a seu tempo, a caminhada de Viriato Ferreira, a revolução mendiga de Joãozinho Trinta. E ressalta um ponto em geral não suficientemente exaltado quanto se trata de recontar a trajetória dos desfiles inesquecíveis, sejam vitoriosos ou não: o desempenho do samba-enredo.
Ao fim de cada capítulo, há um curto texto no qual o jornalista tenta imaginar o rumo da escola abordada, e do próprio carnaval, caso ela fosse campeã. O adendo em certa medida conflita com a tão esmerada investigação que distingue o exame dos desfiles escolhidos pelo autor. Em uma análise marcada pelo esteio em documentos, entrevistas, resenhas críticas de jornal, o caráter especulatório desses trechos destoa.
Marcelo tem o cuidado de ressaltar que, ao apontar supostas injustiças, não buscou desqualificar o resultado oficial. “Em boa parte dos casos, houve critérios para justificá-lo”, observa. Talvez possamos falar em conjunto, esse quesito que não já existe, para chegar à essência do livro. Aquele sentimento, quase certeza, de que o todo pode ser maior do que a soma das partes – sobretudo quando estas se assentam apenas em tecnicismos.
Ao fim das 210 páginas, fica a impressão de que, embora os títulos de campeão somem estrelas e prestígio à bandeira da escola, na gaveta da memória vale mais o encantamento. Essa pequena explosão de vida que insiste em bruxulear, vez por outra, dentro da gente.
Autor
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Escritor e jornalista. Autor, entre outros, dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Crônicas), "Rua de dentro" (Record), "Ferrugem" (Record), "Na dobra do dia" (Rocco), "A palavra ausente" (Rocco) e "Somos todos iguais nesta noite" (Rocco). Organizador de coletâneas como "O meu lugar" (com Luiz Antonio Simas, Mórula) e "Canções do Rio" (Casa da Palavra).
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