Semifinalista do Prêmio Oceanos 2018, um dos mais prestigiosos no campo da literatura em língua portuguesa, Anjo Noturno (Companhia das Letras, 2017) é a vigésima obra do escritor carioca Sérgio Sant’Anna, que estreou em livro na década de 1960. Desde então, colecionou inúmeros leitores e prêmios e algumas polêmicas. Nome definitivo de nossa literatura, Sant’Anna esbanja em Anjo noturno o experimentalismo formal e a variedade temática que tão singularmente o marcaram como artista.
Em Augusta, a tensão dramática se concentra nas fabulações libidinosas despertadas nas personagens, Helena e Francisco, por um objeto artístico insólito, o quadro de uma mulher nua cujo um dos seios fora apunhalado. O enigma suscitado pela tela — criada por um artista plástico famoso que cometera suicídio após uma excruciante desilusão amorosa — passa a ocupar o centro da ação que se desenvolve em poucas horas no apartamento de Helena em Copacabana.
Envolto em uma atmosfera lasciva e misteriosa, de carga erótica altíssima, a primeira narrativa de Anjo noturno já apresenta ao leitor alguns dos temas que marcam a profícua obra de Sérgio Sant’Anna. Aqui aparecem a indagação filosófica em torno da existência; o potencial que o desejo tem de conduzir à morte; as relações entre arte e vida, erotismo e melancolia, realidade e representação.
Augusta possui um narrador que, logo na primeiríssima frase, deixa claro o caráter de artifício da linguagem literária, desenganando o leitor realista. “Eles não são de verdade. Mas digamos que se conheceram há duas horas e meia numa pequena festa em Copacabana”. Apresentando uma economia narrativa que poupa detalhes comezinhos de enredo, sabe-se apenas que Helena é produtora cultural e Francisco, professor de história. Não é de agora que Sant’Anna se vale desse expediente formal tão caro à ficção contemporânea, presente em seus trabalhos ao menos desde os anos 1990.
Paralelamente, em outros momentos, o texto se assemelha a um roteiro de teatro, valendo-se da fórmula “ELE/FRANCISCO” e “ELA/HELENA” antes de algumas falas, como que para substituir os travessões convencionais da prosa. O já conhecido diálogo do autor com a dramaturgia ficará mais evidente adiante, em um conto intitulado Uma peça sem nome, que talvez destoe em qualidade dos demais.
A referência ao universo das artes plásticas reaparece na narrativa seguinte, Um conto límpido e obscuro, em que uma das personagens é o duplo ficcional da pintora e escultora Cristina Salgado. Estão presentes, novamente, um homem e uma mulher intelectualizados que discutem o binômio arte-vida. “Tenho fascinação por transformar o visual artístico em palavras”, confessou recentemente o escritor carioca.
Se em Augusta o registro textual guarda relações com a dramaturgia, aqui ele dialoga com o gênero ensaio no momento em que a personagem masculina passa a fazer uma análise crítica dos trabalhos da artista, com a qual já se relacionara antes. Também em A mãe, o autor preenche o texto com trechos literais da autobiografia do cineasta Luis Buñuel e do livro Inferno, da Divina Comédia, de Dante. Num certo sentido, a fusão de linguagens e registros faz de Sérgio Sant’Anna uma espécie de escritor pós-moderno avant la lettre (naquilo que há de positivo nesse termo).
O ponto alto de Anjo noturno talvez seja a narrativa Talk Show. Nela, vemos um escritor que busca sair do ostracismo participando de um programa de TV sensacionalista. Tragicômica, a novela, um tanto mais extensa do que costumam ser as narrativas de Sant’Anna, se concentra nos apuros pelos quais o escritor Célio passa no palco e nos bastidores do programa.
Pode-se dizer muitas coisas sobre Talk Show. Uma delas é que tematiza o modo como a literatura se relaciona no contemporâneo com a cultura do espetáculo. Inicialmente sentindo-se ultrajado por achar que o programa não estaria à altura de sua obra, Célio acaba por considerar vantajoso o “pseudo escândalo” proporcionado por ele em frente às câmeras.
Nos livros tanto do personagem quanto de Sant’Anna libido e criação andam muitas vezes juntas. “Para fazer arte é preciso estar com a libido desperta”, disse Sérgio em uma entrevista. Isso é levado muito a sério por Célio que aparece, numa fantasia fetichista, “assediando” uma boneca no camarim da apresentadora de TV.
Em parte Anjo noturno é também um livro de memórias. De memórias ficcionalizadas. Ou de autoficção, para usar o termo da última hora. Em contos como A mãe, A rua e a casa e Amigos a experiência pessoal do narrador-protagonista serve de matéria para o trabalho imaginativo. Na primeira dessas três narrativas, Sant’Anna parece fazer uma espécie de balanço afetivo da existência no qual a cidade do Rio, onde “se lê Proust ao som de tiros de grosso calibre”, é certamente uma das protagonistas.
Já em Amigos é possível entrever momentos importantes da história recente do país, com destaque para o golpe civil-militar de 1964, acompanhado por acaso pelo narrador. “O mais deprimente foi que, no caminho até Copacabana, rumo a um apartamento, cujo dono saiu com a família para que lá nos abrigássemos, vimos a chuva de papel picado atirado dos apartamentos desde o bairro do Flamengo, com a classe média comemorando o que chamava de revolução anticomunista”.
Interessante é que, nessa sequência de autoficção, a atmosfera erótica característica de suas ficções cede lugar a um sentimento difuso de nostalgia. “Fui recuperando tudo, a infância nas ruas do bairro de Botafogo, a juventude das farras em Belo Horizonte, a época de companheirismo com o pessoal que tentava fazer literatura e música. Até mesmo minha tímida participação política no golpe de 1964.”
Merece ainda menção a última história de Anjo noturno, intitulada O conto fracassado. Metalinguístico, comenta a si mesmo — sua construção como texto, em especial — o tempo todo. De novo o dilema de transformar em palavras a experiência aparece com bastante força.
“E mesmo que ele escrevesse, como de fato escrevia, a respeito disso tudo, também não se redimiria, por se tratar de um texto voltado sobre ele próprio, com uma surrada metalinguagem, ainda mais viciosa por ele tentar discuti-la e renegá-la dentro do conto”, reflete com ironia o narrador-escritor.
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Imagem principal deste post: Daniel Ramalho.
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Título: Anjo noturno (184 páginas)
Autor: Sérgio Sant’Anna
Editora: Companhia das Letras
Avaliação: ✩✩✩✩✩ (5 estrelas)
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Jornalista, doutorando em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ