Jack Vasconcelos é um esteta do absurdo. Hoje com 42 anos, o carnavalesco que neste carnaval idealizou plasticamente a homenagem feita à cantora Elza Soares feita pela Mocidade Independente estreou no então Grupo B em 2004, conquistando o 3o lugar com um desfile pela Império da Tijuca. O período mais marcante de sua trajetória foram os anos em que trabalhou para a Paraíso do Tuiuti, entre 2016 e 2019. Campeão da Série A no ano de estreia, ele amargou um 12o lugar do Especial no ano seguinte, por conta de acidentes (com várias vítimas, uma delas fatal) no desfile Carnavaleidoscópio Tropifágico. Naquele ano, outros problemas graves aconteceram em um carro da Unidos da Tijuca, e, para proteger esta escola, a Liesa optou por preservar ambas as agremiações do rebaixamento.
A concepção de Vasconcelos – confirmado como o carnavalesco da Tijuca para 2021 – não teve nenhuma responsabilidade pela tragédia e, apesar de ter sido um um ano com resultado desastroso, olhar retrospectivamente para o desfile de 2017 é fundamental para entender a contribuição que este artista tem dado ao carnaval carioca.
‘Caosnaval’ para a Tropicália revela conexão com Fernando Pinto
Vasconcelos define as respostas plásticas que deu ao enredo sobre a Tropicália como um “caosnaval”. Embasado por uma pesquisa profunda, cheia de desdobramentos, o cortejo da Tuiuti percorria tanto as origens do tropicalismo – com a inevitável menção ao Modernismo brasileiro, à Macunaíma e a obras de Tarsila do Amaral – mas chegava a reverberações atuais do movimento que tem em Hélio Oiticica, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Torquato Neto suas principais referências. A alegoria desgovernada, por exemplo, trazia elementos que citavam a obra da pintora Beatriz Milhazes, clara herdeira do tropicalismo e de todos os seus desdobramentos para o passado (Carmen Miranda, Anita, Tarsila, o Barroco mineiro) e para o futuro (op art, Bridget Riley). Mais do que fazer um enredo “correto”, desenvolvido ponto a ponto, Vasconcelos mostrava que seu desfile, além de um relato audiovisual como resultado dos conteúdos pesquisados, tinha um desejo de fala, de afirmação de algo.
Fui entender de modo mais profundo o que pode ser este “algo” apenas há pouco, durante o desfile sobre a cantora Elza Soares assinado por ele na Mocidade Independente de Padre Miguel.
Na Tropicália, Vasconcelos optou pelo uso de uma paleta explosiva, acalorada e flúor, e fantasias e alegorias propositalmente construídas com a sobreposição de cores opostas e complementares (vermelhos e verdes, sobretudo laranjas/gemas e azuis), o que gera um misto de atração e desconforto no espectador. Na ala Televisão, cachos de bananas explodiam das costas dos componentes, como pendentes no esplendor; na Urubus com girassóis, o componente vestia um boneco de urubu, cuja atmosfera soturna era “quebrada” pela natureza solar das flores. Tudo parecia estar banhado por uma atmosfera de sonho e pesadelo, já que este é um artista constantemente de mãos dadas do absurdo – e que tira partido desse absurdo onírico e nonsense para comunicar pautas culturais e sociais da máxima importância.
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Ainda em 2017, uma alegoria em homenagem ao tatu blindado de Tupinicópolis (1987), desfile da Mocidade que então completava 30 anos, revela uma referência importante para o carnavalesco: Fernando Pinto, que em 1980 fez Tropicália maravilha, vice-campeão por Padre Miguel, e marcou a história dos desfiles por trazer grande renovação plástica, sem, no entanto, abrir mão de um pensamento profundo sobre o enredo. Profundo e transgressor: ao lado do Joãosinho Trinta em seus melhores momentos, Pinto trouxe para o enredo a possibilidade da imaginação. O lugar da crônica histórica e biográfica pôde ser ocupado pela ficção. Como lembra Leonardo Antan em um ensaio sobre Pinto e o Império Serrano para o seu site Carnavalize (leia clicando aqui), a contribuição deste artista de Recife, morto precocemente em novembro de 1987, é bem diferente da realizada pela geração anterior a dele: “Ao contrário da revolução salgueirense, liderada por Pamplona e Arlindo, que se baseava em elementos da cultura acadêmica e erudita, Fernando Pinto bebeu na cultura de massas e no que era considerado ‘brega e cafona’, como as chanchadas, os teatros de revista e a era do rádio, sempre abusando de frutas, palmeiras e muita tropicalidade”. Creio que, de maneiras muito distintas, tanto Jack Vasconcelos quanto Jorge Silveira estão conectados ao legado do inventivo e pop do autor de Ziriguidum: 2001 (1985).
O desfile em que Vasconcelos revisitava a Tropicália trazia ainda a alegoria Favela canibal acertava no centro do alvo destas características: a favela se transformava numa espécie de “Pequena loja dos horrores”, uma estufa de plantas carnívoras que engoliam muito das referências artísticas que haviam passado aos olhos do público naquele desfile. Na boca central, jazia, sendo digerido, o Abaporu de Tarsila do Amaral.
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Vejo grande relação entre este carro e dois dos que o carnavalesco apresentou este ano no desfile da Mocidade – o abre alas do Planeta Fome, com os pratos vazios e a referência à apresentação de Elza no programa de Ary Barroso, e a alegoria final, Você tem fome de quê?, que trazia a cantora e várias bocas abertas, capturadas da identidade visual dos Rolling Stones. Neste desfecho, a insinuação de que a obra e a história da homenageada poderiam seguir nos alimentando. Embora o conjunto alegórico deste ano tenha sido menos feliz do que o de desfiles anteriores – creio ser exagerada a performance excepcional da Mocidade em alegorias, e despropositada sua avaliação superior a da Portela e da Mangueira -, ele reafirma a identidade de seu criador. Na espinha dorsal do que Vasconcelos deseja “continuar falando” está o entendimento do carnaval como um delicioso delírio antropófago, que afirma a cultura nascida nas periferias – a favela, Elza – como grande canibal, como grande fonte de digestão, transformação e alimento.
Em 2018, o enredo sobre a permanência da escravidão nos dias de hoje parecia não ser um chão propício para o nonsense do carnavalesco. E, de fato, nos primeiros segmentos do desfile o que se viu, ao menos em uma leitura superficial, foi uma abordagem mais linear e histórica. Um segundo olhar, no entanto, pode talvez compreender que a boca devoradora e faminta presente na Tropicália e no desfile de Elza também estava presente, de forma sutil – e por isso ainda mais arrebatadora – na comissão de frente daquele ano, com os componentes caracterizados como escravos sendo engolidos, em fila indiana, pela grande senzala, para delas saírem transformados como a figura mágica e ancestral dos pretos velhos. Esta transformação virava o jogo narrativo, já que as entidades faziam com o feitor que maltratava seus irmãos negros cair de joelhos, arrependido.
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A insinuação de uma boca também aparecia como metáfora em fantasias como Camélias do Leblon, com o corpo dos componentes brotando de uma flor como pétalas viradas para cima, e não para baixo, formando a saia, como era de se esperar. Nos últimos segmentos do desfile, o absurdo/monstruoso aparecia em fantasias como Guerreiros da CLT, em que braços tentáculos mostravam a multiplicação de tarefas de quem tem carteira assinada. Na fantasia dos Manifestoches, o pato inflado pela Fiesp na Avenida Paulista, durante as manifestações pelo golpe a Dilma Roussef em 2016, ornava o corpo dos componentes, palhaços paneleiros manipulados pelas cordões remexidos pelas mãos de alguém que veste terno. A ala dos Manifestoches seguia até a base e a composição da última alegoria, na qual o navio negreiro do início do desfile retornava transmutado em uma tumba neoliberal, de onde saíam gigantes mãos manipuladoras. No alto dela, Léo Morais, coordenador dos ateliês da Tuiuti, vinha como destaque.
A fantasia Vampiro neoliberal incluía uma faixa presidencial, em clara alusão ao presidente Michel Temer, um dos artífices do golpe contra Dilma. Ela seria suprimida pela diretoria da escola, a pedido da Liesa, do Desfile das Campeãs, o que não impediu que o vampirão se transformasse na imagem mais forte daquele carnaval, e também na mais compartilhada nas redes sociais, expandindo as discussões propostas pelo desfile tanto em termos espaciais/geográficos (com enorme repercussão em outros países) quanto cronológicos (afinal, estamos aqui, pensando no vampiro, até hoje). A Tuiuti “continuou falando” depois de o desfile terminar.
Em 2019, um desfile menos arrebatador, mas extremamente coerente com a estética proposta pelo carnavelesco, levou um outro personagem com faixa presidencial para a Sapucaí. Desta vez, a história do enredo O Salvador da Pátria falava de um bode eleito em Fortaleza, mas impedido de assumir o seu mandato. Ficou evidente a alusão ao ex-presidente Lula, naquele momento preso desde abril de 2018 pela farsa da Operação Lava a Jato e impedido de concorrer às eleições presidenciais. Vasconcelos não confirmava a relação, mas também não a negava, afirmando que seu desfile era “uma metáfora sobre democracia, representatividade e o direito de erguer símbolos aderentes ao imaginário popular”.
Muitos que olham para os desfiles realizados por este artista podem se fazer a pergunta: “Mas isso é bonito?”. A resposta precisa ser, necessariamente, complexa. A beleza, no sentido clássico ou do sublime de Kant, não é o que está em jogo aqui. O samba de Moacyr Luz para o desfile da Tuiuti falava de uma “lua atordoada” que “assistiu fogos no céu” depois que a Lei Áurea foi assinada. E é disso que estamos falando: de atordoamento, forma muito poderosa de mobilização, e não de uma beleza harmônica.
No vampiro criado pelo carnavalesco há fios que posso puxar para os outros dois núcleos que quero abordar neste texto: a noção de “aparição”, com tudo o que ela tem de assombro e alumbramento, presente nos desfiles de Leonardo Bora e Gabriel Haddad desde a Acadêmicos da Cubango, e a insistência na criação de imagens sobreviventes, a maior das inúmeras contribuições que Leandro Vieira tem dado ao carnaval carioca.
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