Na noite deste 19 de novembro, véspera do feriado da Consciência Negra e da escolha de seu futuro samba, o Império Serrano divulgou três figurinos de Leandro Vieira para seu próximo enredo, Mangangá, sobre o capoeirista baiano Manuel Henrique Pereira, o Besouro. O artista tornou pública uma quarta fantasia, tanto na imprensa quanto em suas redes sociais. Antes de comentar os figurinos, em si, é preciso reafirmar Leandro como um dos artífices de uma nova geração de carnavalescos – que tem também entre seus expoentes a dupla Leonardo Bora e Gabriel Haddad, Jack Vasconcelos e Jorge Silveira – que tem plena compreensão de que o enredo é a matriz irradiadora das potências de um desfile. É raiz de tudo, afinal.
Ao receber o convite para pensar um desfile para o Império, o artista primeiro entendeu a identidade da escola, para depois fundi-la aos seus próprios interesses como criador, parindo uma narrativa que é um impalpável caminho do meio entre a agremiação que o abriga e um possível espelho para si mesmo. É disso, afinal, que se trata a arte: do reconhecimento de si e do outro; da explosão comunicativa e visceral do ego, mas simultaneamente de sua morte parcial, de sua transmutação a partir de seu encontro com as parcerias na sua interlocução com o mundo.
Espelho para Império e sua ‘felicidade guerreira’
Mangangá consegue expressar perfeitamente a história do Império Serrano, uma escola que nasceu no sindicato dos estivadores da região portuária do Rio; um quilombo contemporâneo que abriga a linhagem real africana do jongo nas raízes da comunidade Serrinha. O Império, Besouro e a capoeira coagulam a trajetória de um corpo preto que cai, mas sempre se levanta; um corpo que luta através do canto e da dança.
Mangangá é o ressoar das batalhas com alegria, a ênfase de que as armas e o escudo do corpo podem vir tanto de um golpe de perna quanto do tilintar de uma bateria que, como Besouro, foi entregue a Ogum. O enredo é ainda a reafirmação dos levantes. Se, como nos ensina Didi-Huberman, uma insurreição está geralmente fadada ao fracasso (leia aqui texto sobre Levantes), também é certo que sua memória é a centelha para futuras convulsões. É disso, dessa “felicidade do negro como uma felicidade guerreira” (ouça Zumbi, de Jorge Benjor, aqui), que trata Besouro. De um espírito que, espero, vai contagiar o Império depois da passagem, por suas entranhas, de um vento renovador como a criatividade de Leandro.
Quando um amálgama bonito assim acontece, semelhante ao que ocorreu entre Bora e Haddad e a comunidade Caxias a partir da Grande Rio, há uma dupla iluminação: o artista se enriquece e é presenteado pela instituição, sempre muito maior que ele em seu transcorrer coletivo no tempo; mas a instituição, no caso uma escola de samba como o Império, também pode e deve agarrar a oportunidade de renovação que o artista oferece. Venho acompanhando, como pesquisadora e crítica, o trabalho de Leandro para o Império, assim como vou acompanhar o de outros criadores em suas agremiações.
No encontro entre o carnavalesco e a escola de Madureira, percebo que Leandro se enriqueceu com o Império e ganhou novas ferramentas para sua bendita insistência em trabalhar as identidades pretas e a cultura popular, veios marginalizados, como o maior patrimônio produzido pelo Brasil. A cultura popular vem sendo o coração de todos os seus desfiles. Esteve no primeiro, na Caprichosos de Pilares (2015), ganhou corpo na Mangueira (2016-2020) e agora se expande na direção de novos tons, nascidos das raízes imperianas.
Besouro diz junto com o Império: ‘Eu sou’.
O Império, por sua vez, tem a chance de costurar seus mitos, poderosíssimos, com as urgências e delícias do tempo presente. Poucas escolas sabem tão bem o que é o valor dos pretos, o que é o pioneirismo feminino e o que é a capacidade de luta quanto o Império Serrano. Mangangá oferece a possibilidade de os imperianos olharem para isso sem saudade, entendendo que tudo o que constitui sua escola é motor das principais bandeiras do Brasil de hoje. E é preciso estar com os pés muito plantados no presente para olhar para o futuro e seguir adiante. Besouro diz junto com o Império: “Eu sou”. E isso é mais poderoso do que
“Eu fui”.
Chego, finalmente, aos figurinos divulgados. No de Exu, que está no cabeçalho do post, no de Mestre Alípio, parágrafos acima, e no de Ossain, parágrafos abaixo, vê-se Leandro revisitar antigos vocabulários de um modo mais radical do que nunca – “radical” no sentido estrito, daquilo que vai à raiz.
Tanto em 2016 e 2017, respectivamente nos enredos sobre a religiosidade de Maria Bethânia e o sincretismo religioso nas festas populares; quanto em 2019, no segmento de heróis de origem africana de História para ninar gente grande, Leandro pôde dar sua resposta peculiar a uma linhagem específica do carnaval carioca: aquela que é vaga e inconsistentemente chamada de “afro”, como se as muitas Áfricas pudessem ser traduzidas pelo caminho escolhido pela trajetória de nossos desfiles.
No carnaval carioca, “afro” vem sendo, desde o aprofundamento da chamada “Revolução salgueirense” por Fernando Pamplona, um caminho estético que elege a geometria, a apropriação de um ícone (búzios) e o uso de dois materiais específicos (juta e palha) como signos da ancestralidade africana. No pêndulo entre estes dois figurinos, Leandro se filia e ao mesmo tempo expande e contraria esse legado.
O figurino de Mestre Alípio acolhe nas suas dobras, como brasa adormecida, a estética em preto-e-branco de Pamplona e Newton de Sá para o Zumbi dos Palmares do Salgueiro (1960,) que estabelecia um diálogo evidente com o Neoconcretismo e o construtivismo brasileiro do período*. Uma visualidade econômica, direta e sintética, que poderia também definir o grande poder de comunicação da obra de Leandro, não fosse a mistura proposta pelo artista algo bem mais complexo. E é aí que chegamos a outros figurinos dessa gangorra.
Uma fusão de duas linhagens do carnaval carioca
Na propostas para os orixás Exu (acima) e Ossain, é possível perceber que parte do encanto causado pelo trabalho de figurino de Leandro é unir dois caminhos muito distintos do carnaval do Rio em seus projetos. E quais seriam esses caminhos?
Por um lado, vê-se a sobreposição de estampas e padronagens (a geometria vibrante, os búzios, as peles de felino e de zebra) que o poderiam ligar ao termo “barroco” e a uma família que tem em Rosa Magalhães o seu apogeu e esplendor. Por outro, o artista encaminha essa profusão visual para um campo da comunicabilidade absoluta. É nesta comunicação que gostaria de me estender, pois ela é menos comentada e valorizada por aqueles que comentam carnaval nos grandes veículos de imprensa e sites direcionados ao tema.
Tal comunicabilidade, no caso de Leandro, é conquistada pelo aumento da voltagem na composição cromática, na paleta do pintor. Sim, Leandro é pintor. Ele frequentemente “afogueia” e a “acende” o figurino com o uso da teoria da cor (opostos complementares em convívio) ou tons flúor. Bons exemplos disso são as alas sobre Anhanguera, no enredo mangueirense de 2019, e sobre as Cavalhadas, em 2017. O outro alicerce plástico da comunicação de seus figurinos vem do desenho. Sim, Leandro é desenhista, e não atribui essa responsabilidade a outros profissionais do barracão.
O traço do papel vem sendo transposto materialmente para suas fantasias, através do desenvolvimento de acabamentos que já constituem uma linguagem. Em outro texto (leia aqui), comentei os esplendores de acetato com estrelinhas e a forma recorrente de meia-lua. No Exu para o Império Serrano, saltam aos olhos os punhos e as golas com o acabamento de tarucel, um fio cilíndrico de polietileno revestido com tecido elástico.
Usar o tarucel para finalizar as extremidades das fantasias tem sido uma recorrência na trajetória do artista, que age na terceira dimensão de seus protótipos como aquele que contorna figuras no papel. O contorno de uma silhueta é uma ênfase, mas também uma economia. É a opção pelo discurso direto, em vez dos rodeios. Ao afirmar seu contentamento com essa linha de cor crua e estruturante, que revela algo como que um esqueleto de seus desenhos iniciais, Leandro prescinde de elementos como paetês e diferentes adornos, e a escolha o aproxima de outra “família” de criação: a da síntese estrutural de Renato Lage, o grande catalisador de imagens da história do carnaval carioca.
De alguma forma, Leandro traz em si o que chamam de forma achatada de “barroco” – as sobreposições narrativas e visuais elípticas e às vezes contraditórias que marcam o legado fundamental Rosa – e o concilia com a síntese estrutural de Renato. Mais do que isso: é como se o artista passasse o “barroco” por uma espécie de filtro estrutural, condensando-o rumo à projeção de ícones**. E, por trazerem esse barroco em seu ventre, os ícones nascidos da condensação não são plácidos, e sim extremamente ruidosos e mobilizadores. Corpos barulhentos.
O trio de fantasias formado por Ossain (acima, uma fusão dos raciocínios das outras duas em termos cromáticos), Exu e Alípio também revela engenhos funcionais e estratégias de sobrevivência, presumo. Trabalhando no Império, hoje uma escola do Grupo de Acesso sem tantos recursos, o artista usa o tarucel e estampas ricas de elementos, mas impressa em um tecido contínuo. Isso enxuga a lista de materiais e conquista a exuberância plástica diminuindo os custos. Olhar para a manobra é entender que Leandro e seus companheiros de geração são filhos da crise financeira, de um novo momento para o carnaval. E os grandes criadores desse grupo são justamente aqueles que souberam lidar com a escassez e até mesmo tirar partido dela. Menos luxuosos, precisam trazer para os holofotes os seus discursos, e é por estas narrativas que se sustentam e que subvertem a história.
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Jagunço sugere diálogo com carrasco da Mangueira
Quarto figurino divulgado, o jagunço evidencia que tal economia não significa empobrecimento plástico. No conjunto apresentado até agora, é o protótipo que revela de forma mais clara a relação de Leandro com uma reincidência no uso de determinadas imagens, que são citações internas de sua obra e também pertencem a um repertório universal, enraizado no inconsciente coletivo.
A figura cadavérica do jagunço, sempre à espreita de Besouro, nos leva para a entidade PapaLegba (importante no Haiti e no Caribe, ela se confunde à encantaria maranhense), evocando também o Jaraguá de nossos Reisados. Por outro lado, ainda se filia a figurino recente do artista. Na bateria de 2020 da Mangueira, as máscaras de caveira representando os carrascos de Jesus Cristo apontam para a mesma direção: carrascos e jagunços representam a sombra da morte, o mundo de sombras à espreita.
Como PapaLegba, a um só tempo finalizador e abridor de caminhos, esses são momentos de figurino e enredo que propõem viradas de discurso. Um bom narrador, como Leandro, sabe que tanto Jesus quanto Besouro morrem para renascer mais fortes. Encená-los e cantá-los é reafirmar o poder de sua ressurreição.
Tanto na Bíblia quanto no canto das rodas no Recôncavo, a mensagem da ressurreição, espalhada boca a boca, foi muito menos uma “verdade” do que uma mensagem. Dizer “Jesus voltou” ou “Besouro vive” não aponta para o corpo real dos mitos, mas para a resistência de seus seguidores, para a repetição de suas vozes através de outras vozes.
No meu texto sobre a “geração de narradores” do carnaval (aqui), citei uma frase de Leandro dita à imprensa no Desfile das Campeãs de 2020, na qual ele afirmava que um enredo precisava “continuar falando” depois das Cinzas. Jesus e Besouro são essa possibilidade em dose dupla: dão o que falar e seguirão falando depois de terem encerrado, como desfiles, sua existência material efêmera. Simbolicamente, no entanto, as mensagens e as imagens são imantadas por essas escolhas míticas, talhadas para a sobrevivência.
Ao concluir o parágrafo acima, eu poderia esticá-lo linhas adiante, para argumentar um pouco mais sobre como Jesus e Besouro parecem ser nomes diferentes para um mesmo desejo artístico, presente em cada um dos desfiles de Leandro. Mas deixo isso para outro texto, quando eu mesma evidenciar minhas reincidências ao escrever novamente sobre esse inquieto e insistente criador.
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*Pamplona era professor da Escola de Belas Artes da UFRJ. Frequentava o meio de arte da época e as exposições dos artistas que compuseram o Grupo Frente (1954-1956) e assinaram o Manifesto Neoconcreto (1959), como Lygia Pape e Hélio Oiticica. Pamplona também participou, como artista, do Salão em Preto e Branco (1954), importantíssimo para a visibilidade de artistas ligados à geometria e ao construtivismo.
** Mal comparando, é com se o processo realizado por Leandro fosse o de alguém que bota uma fruta perfumada e exuberante para quarar no sol. Se por um lado essa fruta perde seus líquidos, tornando-se menor em corpo e detalhamento, por outro se adensam seus dulçor e outras características do paladar.