A mídia tática é um conceito que se firmou na década de 1990, na Europa e Estados Unidos, com a apropriação da lógica “do it yourself” (“faça você mesmo”), presente na ética punk como estímulo para criação de novas formas de comunicação com o público – é nesse contexto da cultura punk que se disseminaram fanzines e esquemas de produção fonográfica independentes, por exemplo. Uma frase proferida por Jello Biafra, vocalista da banda Dead Kennedys, resume essa lógica: “Não odeie a mídia, torne-se a mídia” (escrevi outro artigo na
Caju a partir dessa frase, leia aqui). Tal ideia incita não apenas a criação de meios alternativos de circulação de informação, como também a apropriação subversiva dos meios de comunicação hegemônicos, de modo a criar ruídos em sua programação, utilizando-os a favor de si.
Com a popularização da internet e dos dispositivos digitais entre as décadas de 1990 e 2000, diversificaram-se as formas de ativismo relacionado à mídia – midiativismo – com novas maneiras de confrontar o poder institucional na área de comunicação, sob influência de coletivos e movimentos de contracultura. Mas como isso se desdobra em um país como o Brasil, onde o acesso às tecnologias digitais ainda era restrito a poucos indivíduos na virada do milênio e, ainda hoje, possui tantas limitações?
Tendo em vista que a ideia de mídia tática nasce em países desenvolvidos, para pensá-la em nosso contexto é importante trazer para a discussão a história e as ideias do crítico cearense Ricardo Rosas (1969-2007), responsável pela realização de projetos que difundiram o conceito de mídia tática no Brasil e criaram aqui um campo fértil para discussões teóricas sobre esse tema. Aqui, a lógica “faça você mesmo” possui desenvolvimento próprio, a partir do conceito de gambiarra formulado por Rosas em alguns de seus textos, além de sua contaminação, segundo o crítico, pela cultura antropofágica.
Mídia Tática Brasil é legado de Rosas, que faleceu precocemente
Com intensa atuação nos campos da arte e do midiativismo na década de 2000, Ricardo Rosas faleceu precocemente em sua terra natal, Fortaleza, no dia 11 de abril de 2007. Embora ainda não tenha recebido o devido reconhecimento pela historiografia da arte brasileira, o crítico foi um dos principais pensadores e mentores de coletivos artísticos no Brasil, além de organizador de publicações e eventos seminais para a mídia tática e sua relação com a arte, como o festival Mídia Tática Brasil, que realizou em parceria com Tatiana Wells e Giseli Vasconcelos no ano de 2003, em São Paulo.
O Mídia Tática Brasil operou como um dos braços latino-americanos do Next Five Minutes (N5M), um festival de arte, política e mídia criado em Amsterdã, em 1993, ao qual é atribuído o início das discussões sobre a noção de mídia tática. O evento organizado por Rosas, Wells e Vasconcelos surgiu em um contexto de grande expectativa com a chegada da internet em áreas periféricas de grandes cidades, assim como a crescente viabilização de softwares livres, o que torna o Mídia Tática Brasil um importante momento de agrupamento, reconhecimento e conexão – contexto que explica a escolha do tema do festival: Comunidades em rede e inclusão digital. Não por acaso, logo depois surgiram novos projetos como Autolabs, findEtático, Digitofagia e Submidialogia.
A abertura do evento contou com a participação do então ministro da cultura Gilberto Gil, o que mobilizou a grande imprensa e atraiu curiosos ao evento, que recebeu, estima-se, 6 mil pessoas em quatro dias de atividades. Também participaram da abertura Richard Barbrook, autor de Futuros imaginários – Das máquinas pensantes à aldeia global e John Perry Barlow, da Electronic Frontier Foundation. Com entrada gratuita, o evento ocorreu entre 13 e 16 de março de 2003 em diversos pontos de São Paulo, onde se inclui a Casa das Rosas, que sediou palestras e debates cujos temas eram tática e resistência, ciberativismo, hacktivismo, lógicas de código aberto, copyleft e o próprio conceito de mídia tática.
Fazer a antropofagia das práticas de mídia
Juntamente ao evento, foi lançada uma revista-pôster que inclui o manifesto Que venha a mídia tática!, assinado por Ricardo Rosas e Tatiana Wells. No texto, os autores defendem a relevância da criação de um laboratório de mídia tática no Brasil e reconhecem na cultura antropofágica, característica do Brasil, o impulso para a adoção de táticas criativas:
Ocorre que muita gente tem produzido mídia tática por aqui, mesmo sem saber que o que fazem tenha um nome. Seja intervenção urbana, usos táticos da arte, da web, de rádios piratas, fanzines e por aí vai, o fato é que estamos assistindo a um verdadeiro boom de mídia indie no Brasil. Algo que não se poderia deixar passar despercebido. Além disso, urge uma inclusão digital que contemple, por exemplo, quem não possa bancar um micro. O conceito de mídia tática, então, pode ser adaptado à realidade brasileira ao propor alternativas, formas de mobilizações que propagam circuitos interdependentes. Essas buscas por autonomia falam sobretudo de educação, disseminação tecnológica inclusiva e relações centro-periferia.
Antropofagizamos práticas de mídia para, além de propor a coletividade e autonomia das relações produtivas, reconhecer igualmente a periferia – somos todos periféricos em relação ao Império – como realidade marginalizada e, antes de tudo, expressão primeira da lógica colonizada das culturas latino-americanas.
(Leia o texto completo clicando aqui)
O festival Digitofagia, realizado em 2004, que também contou com Rosas em sua concepção, visou aprofundar o conceito e questões da mídia tática no contexto específico do Brasil, pensando na urgência de “abrasileirar” tais práticas que eram teorizadas sob influência de teorias e objetivos que se distanciam de nossa realidade. O evento deu origem a um livro homônimo, organizado por Ricardo Rosas e Giseli Vasconcelos, cujo prefácio, escrito por ambos, aponta para elementos típicos da cultura brasileira que ficavam de fora das conceituações sobre mídia tática – que se concentrava em questões mais genéricas como o software livre, midiativismo e trabalho em rede. Tais elementos marginalizados seriam a pratica da pirataria, o modo de atuação dos camelôs, a gambiarra, a prática indiscriminada e ilegal da sampleagem espontânea e do remix na formação da cultura brasileira, a colaboração e a prática do mutirão. A partir dessa indagação, o festival propunha a atualização do tema da antropofagia, uma das pedras fundamentais da cultura brasileira do século XX.
O movimento antropófago, que na década de 1920 defendia o devoramento de realidades e culturas alheias ao Brasil como forma de reapropriação do poder do outro – tomando como base uma prática indígena – reapareceu algumas vezes ao longo do século passado, como em seus desdobramentos no movimento tropicalista dos anos 1960 e na Bienal de São Paulo de 1998, intitulada Um e/entre outro/s, que ficou conhecida como “Bienal da Antropofagia”. O Digitofagia trouxe a antropofagia para o contexto da cultura digital – influenciado, dessa vez, por discussões sobre propriedade intelectual e domínio de grandes corporações, como a Microsoft, na área computacional. O ato de abraçar práticas espontâneas do nosso contexto, como a pirataria e a gambiarra, seria uma forma de trazer a mídia tática para um campo mais familiar aos teóricos e praticantes brasileiros.
Gambiarra como prática política
A gambiarra é um tema aprofundado por Ricardo Rosas no texto Gambiarra: alguns pontos para se pensar uma tecnologia recombinante. Considerada um desvio ou improvisação aplicado ao uso de dispositivos, objetos e espaços antes destinados a outras funções – devido à falta de recursos, tempo ou mão-de-obra –, tal termo, segundo Rosas, possui sentido cultural muito forte no Brasil, designando soluções rápidas e feitas com as possibilidades à mão. O escopo dessas iniciativas é imenso, como levanta o crítico:
Gatos, ou puxadinhos, ou seja, as fiações de energia elétrica ilegais; as “TVs a gato”, pegando ilegalmente programações de TVs a cabo; as montagens de bicicletas com caixas de som para propaganda popular em Belém do Pará, chamadas “bikes elétricas”; o Triciclo Amarelinho do seu Pelé, no Rio de Janeiro, conforme Gabriela de Gusmão Pereira, que junta aparelho de som 3–em–1, TV, farol, baterias, capa de chuva, despertador e luzes de Natal; os já “estabelecidos” trios elétricos, com sua mistura de caminhão e caixas de som de soundsystem; as transformações de soundsystems em verdadeiros painéis de controle de naves espaciais nos bailes funk cariocas, entre outras variantes.
(Leia o texto completo aqui)
Para entender a gambiarra como arte ou intervenção na esfera social, Rosas chama atenção para alguns elementos quase sempre presentes: a precariedade dos meios; a improvisação; a inventividade; o diálogo com a realidade circundante; a possibilidade de sustentabilidade; o flerte com a ilegalidade; a recombinação tecnológica pelo reuso ou novo uso de uma dada tecnologia, entre outros. Mais do que mero improviso, o crítico considera a gambiarra uma prática política, na medida em que pode negar a lógica produtiva capitalista e sanar uma falta, uma deficiência, uma precariedade.
Algumas ações de mídia tática no Brasil traduzem as ideias de Rosas sobre gambiarra e política, como o Movimento dos Sem Satélite – MSST. Fazendo referência em seu nome a movimentos sociais como o Movimento Sem Terra (MST) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o MSST questiona a relação dos indivíduos comuns com a tecnologia dos satélites. A principal obra atribuída ao movimento é o documentário de Bruno Vianna intitulado Satélite Bolinha – nome dado a um grupo de satélites militares norte-americanos que, por seu acesso simplificado, foram utilizados ilegalmente por brasileiros (principalmente por caminhoneiros) durante anos para comunicação por rádios-amadores, por meio de materiais e técnicas low-tech e de baixo custo. Trata-se de uma “ocupação satelital”, como se refere Vianna em depoimento cedido à Revista Global Brasil (leia entrevista completa aqui), reforçando a relação com os movimentos que lidam com a ideia de ocupação.
A seguir, o documentário Satélite Bolinha no YouTube:
Já o MetaReciclagem tinha a proposta de reutilizar computadores considerados obsoletos para a criação de laboratórios de informática em áreas empobrecidas. Indo além de um projeto de inclusão digital – categoria contaminada por uma visão liberal do acesso à tecnologia, cujo objetivo é treinar pessoas de baixa renda para o uso de softwares adotados por empresas potencialmente empregadoras. O MetaReciclagem desmascara a obsolescência programada, além de contribuir com a diminuição do lixo tecnológico. O projeto também prevê o desenvolvimento de soluções livres em software, da concepção à escritura do código, transformando o usuário em sujeito propositivo em vez de mero cliente passivo.
Outro exemplo é o projeto Recicle um político, realizado pela primeira vez no período pré-eleitoral de 2002, quando grupos mobilizaram uma campanha online que convidava pessoas a retirar o material publicitário dos políticos que sujam as cidades e reutilizá-los para outros fins. Dezenas de novas aplicações foram dadas ao plástico de galhardetes recolhidos das ruas.
Difusão e desdobramentos da mídia tática no Brasil
Além da produção do Mídia Tática Brasil e outros eventos, e da contribuição teórica de Rosas em relação à mídia tática e coletivos artísticos no contexto brasileiro, um dos mais importantes projetos do crítico cearense é o site Rizoma (acesse o acervo completo do Rizoma clicando aqui), que fundou ao lado de Marcus Salgado. O Rizoma constituía um extenso acervo online de textos sobre ativismo, cibercultura, intervenção urbana, situacionismo, cinema, antiarte e outros temas, de autores nacionais e internacionais traduzidos para o português e disponibilizados gratuitamente. Era possível encontrar desde ensaios clássicos dos situacionistas até textos pouco difundidos no Brasil, de autores de diversos tempos e nacionalidades, como Michel Foucault, Giorgio Agamben, Marcel Duchamp, Jacques Rancière e Suely Rolnik – além do próprio Ricardo Rosas. Influenciado pela cultura hacker, o Rizoma foge da lógica mercadológica e adota a política do livre acesso, que vai ao encontro das ideias da mídia tática.
Cada edição do Rizoma apresenta um título, como Afrofuturismo, Anarquitextura, Intervenção, Câmera-olho, Neuropolítica, Potlach, entre outros. Tendo como base um tema específico, os editores faziam uma espécie de curadoria de textos, aproximando na mesma publicação autores de diferentes campos do conhecimento, o que incentivava a formação crítica dos leitores. Além disso, o Rizoma contribuiu com a difusão de manifestações artísticas e divulgação de coletivos que naquele momento estavam emergindo.
Uma série de iniciativas similares ou distintas surgiu depois, como o projeto Desarquivo (conheça aqui), uma plataforma online colaborativa, fundada pela artista Cristina Ribas, com o intuito de hospedar e difundir práticas artísticas e discussões sobre mídias livres no Brasil (arquivando textos, folhetos, catálogos, etc.). O Midiatatica (conheça aqui), criado por Giseli Vasconcelos, Tatina Wells, Ricardo Rosas e Ricardo Ruiz, que narra a trajetória coletiva construída ao longo das últimas décadas. O projeto Arquivos Táticos, desenvolvido em parceria por Cristina Ribas, Giseli Vasconcelos e Tatiana Wells, compila cartograficamente, em uma plataforma online, publicações sobre processos colaborativos e abertos de arte e mídia brasileiras, dos anos 2000 em diante, vistos sob a perspectiva das mulheres (clique aqui para conhecer).
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Este texto integra minha dissertação de mestrado, “Entre a (auto)destruição e a sobrevivência da imagem: intervenção urbana, mídia tática e a performatividade do registro do efêmero”. Clicando aqui você pode ler a íntegra.
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Imagem do cabeçalho: BijaRi, Cartazes feitos na ocupação Prestes Maia, 2004.
Autor
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.