Revista Caju

Uma das performances mais conhecidas do artista belga Francis Alÿs intitula-se Às vezes fazer alguma coisa não leva à nada (1997, veja aqui). O artista empurrou um imenso bloco de gelo pelas ruas da Cidade do México, uma ação cansativa e desgastante que resultou em nada além da própria experiência da ação. Paradoxo semelhante é percebido em Construção civil, concebido e apresentado pela companhia cearense Inquieta Cia no festival Panorama Raft de 2021.

Misto de performance, dança e teatro, o trabalho apresenta atores e atrizes erguendo uma inusitada construção de tijolos no gramado da área externa do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, um dos principais espaços dedicados à arte em Fortaleza. À medida em que a construção é erguida, cria-se uma expectativa sobre seu propósito e seu resultado. Eventualmente os corpos gesticulam, dançam, posam para a câmera, empregam meios provavelmente heterodoxos da cartilha dos trabalhadores de construção civil, como, por exemplo, posicionar e ajustar um tijolo com os pés. Aos poucos, notamos que esse “fazer alguma coisa” está relacionado mais ao acaso e à improvisação do que a um projeto definido previamente.

O que está sendo erguido em cena é o ato de erguer

O modo como os tijolos são dispostos, ora na horizontal, ora na vertical, resulta em uma forma que parece estar sempre por terminar. Em determinado momento, uma virada na trilha sonora introduz um tema agourento. Ao mesmo tempo, vemos a dificuldade de dois performers deslocando um carrinho de mão cujo pneu está furado. Parte da construção deixa de ser um “desenho lógico” e passa a ser um amontoado desordenado de tijolos. Diante dessa tensão, que parece anunciar uma ruína, intensifica-se nossa dificuldade de reconhecimento de alguma utilidade e sentido prévio na construção. O improviso realizado coletivamente resulta em uma forma cujo sentido é a experiência de sua própria construção, isto é, a forma resultante é o sentido dela mesma.

Também é necessário – leia-se urgente – dizer que esses gestos inusitados e improvisados não acontecem na indiferença do espaço neutro, mas sim em um contexto histórico e social específicos. Há pelo menos dois aspectos em Construção civil que inevitavelmente nos arrastam para a nossa realidade mais imediata, aquela que tem, nos últimos tempos, nos provocado cansaço, irritação, frustração, às vezes falta de ar. O primeiro deles é representado pelas máscaras dos performers-trabalhadores. Aos nossos olhos, de quem atravessa a pandemia causada pelo covid-19, tal acessório já não é apenas uma EPI (equipamentos de proteção individual) pertencente ao contexto do trabalho. As máscaras foram ressignificadas, com elas agora estamos familiarizados e as usamos quase em tempo integral, inclusive nas situações de lazer. Se antes elas caracterizavam algumas práticas profissionais e lugares sociais, agora elas operam como desidentificadores, diluindo identidades em um estado de emergência que atinge a todes. A ficcionalização de Construção civil complexifica-se em dobras: trata-se de atores performando trabalhadores, trabalhadores performando atores, atores performando trabalhadores atores, ou ainda trabalhadores performando atores trabalhadores?     

Máscaras destinadas a trabalhadores de construção civil foram ressignificadas na pandemia e criam fricções no trabalho. Foto: Igor Cavalcante Moura.

O trânsito da máscara pelos corpos dos atores e trabalhadores da construção civil nos remete às dificuldades de se estabelecer critérios, tendo em vista as restrições de circulação de pessoas e ocupação de lugares no contexto pandêmico. Como definir quais eram as atividades essenciais e quais não eram; quais profissionais deveriam trabalhar e quais deveriam parar; quais lugares poderiam ser ocupados e quais deveriam ser esvaziados? Considerando que o setor do teatro não foi considerado essencial, diferentemente da construção civil, significaria que essenciais são apenas as atividades que constroem algo concreto, com uma utilidade definida previamente? Qual o lugar da imaginação, do acaso e do improviso nessa adversidade? Não seriam também essenciais?

As máscaras utilizadas pelos performers compõem uma tentativa irônica de mimetização e ficcionalização da construção civil. Parecem questionar: e se o teatro imitasse um trabalho considerado essencial, seria possível contestar e burlar as restrições à sua atividade? Trata-se de colocar em prática algo que é característico dos procedimentos das artes dramáticas: a embriaguez que provoca a sensação da presença de Dionísio, ou, em termos mais gerais, a representação ficcionalizada a serviço da verossimilhança.

Mas até onde vai essa embriaguez, essa ilusão? Ao longo de Construção civil experimentamos a ficção e nos habituamos em perceber os corpos brancos e jovens de homens e mulheres, cujas roupas coloridas ressaltam a individualidade de cada um, trabalhando com tijolos e cimentos, como se fossem trabalhadores da construção civil. Entretanto, a presença de corpos negros, aparentemente não habituados à presença da câmera – como os corpos profissionais do primeiro grupo de performers –, abre uma fissura na nossa experiência ficcional: estamos diante de trabalhadores da construção civil de fato. Essa constatação denuncia nossa cultura na qual a colonialidade ainda persiste e impregna o modo como experimentamos e percebemos relações raciais e de classe.

Essas novas presenças nos alertam para o fato de que a encenação era, então, uma encenação, de que os atores eram atores, e de que a representação será sempre uma tentativa falida de dar forma ao outro. Nos deslocamos e nos perdemos na verossimilhança interna da obra. Seria uma acusação acerca do nosso desejo demasiado por realidade e verdade? 

Parece que exigimos verdades e certezas demais, e a arte está aqui para chutar esse balde de cimento, furar o pneu desse carrinho de mão e destruir essa construção insólita de tijolos como o fazem os trabalhadores “reais” ao final de Construção civil – sugerindo que a “desconstrução” pode ser mais do que um cacoete de monopólio dos intelectuais. O trabalho nos desestabiliza, puxa o tapete sob nossos pés e desdobra questionamentos. Quem pode ficcionalizar, imaginar e construir? E quem está relegado a executar aquilo imaginado por outros? A autonomia não poderia estar tanto na concepção quanto na execução? Imaginar não seria também uma ação física? É fundamental nos atentarmos para a artificialidade dessas fronteiras e reivindicar seus atravessamentos. Ainda, nesse cenário não ficcional de terra arrasada onde vivemos, precisamos dizer que é essencial ficcionalizar, imaginar e inventar outros futuros possíveis.

Filmado em Teresina, ‘Vapor’ debate o direito de morar

A construção também é tema importante no espetáculo Vapor, do grupo piauiense Original Bomber Crew. O trabalho é composto por cinco partes, nas quais são apresentadas diferentes experimentos coreográficos resultantes da experiência de residência do grupo em ocupações que reivindicam moradia nas periferias de Teresina. Integrando manifestações do skate, do breakdance e do pixo, os performers ocupam e se confrontam com espaços como casas – que não sabemos se em construção ou em demolição –, terrenos baldios, ruas não asfaltadas e baldrames (ou vigas de fundação). Trata-se de um cenário que oscila entre a construção e a ruína, entre um mundo em construção e um cenário pós-apocalíptico.

Vapor © Mauricio Pokemon-1
Vapor © Mauricio Pokemon_Foto2
Vapor © Mauricio Pokemon2
Vapor © Mauricio Pokemon-1 Vapor © Mauricio Pokemon_Foto2 Vapor © Mauricio Pokemon2

Trabalho do Original Bomber Crew emula um processo de reconstrução ao coreografar duetos com o próprio espaço em ruínas e encarnar movimento de urubus. Imagens de Mauricio Pokemon.

Nas partes intituladas Estado de guerra e Brasa: dança das carniças, são notáveis o modo como os performers executam duetos (e/ou trios) que têm como parceiros fogo, sombras, entulhos de obra/demolição e urubus. O espaço e seus elementos constituintes integram as coreografias, redimensionando as potencialidades do próprio modelo de residência artística. Essa coreografia com também é expressa nas outras partes, quando também são incorporados à dança pessoas que sobem e descem uma ladeira e materiais de canteiros de obras, como tijolos, areia e pá.

Podemos evocar o vapor expresso no título do trabalho como metáfora para essas ações que se instauram e se espraiam por esses espaços, produzindo tensões, confrontos e sentidos diversos. Para além da dimensão física, essas ações-vapor interagem e incorporam a dimensão cultural desses espaços, participando do modo como são significados, ressoando e reverberando outros olhares sobre o mundo, moldados por culturas fruto da vivência cotidiana – e não previamente estruturadas, como lembra a narração do trabalho em determinado momento. Também, Vapor amplifica protestos e reivindicações, especialmente por moradia e abrigo, de vidas que não foram valorizadas e que importam. 

As coreografias do trabalho, particularmente aquelas que parecem mimetizar urubus, experimentam a alteridade entre o humano e o animal, evocam a dimensão ritualística dos processos de depuração e cura, seja como dispersão de todas as pandemias que estamos vivenciando, seja como algo próximo do que Eduardo Viveiros de Castro chama de “perspectivismo ameríndio”. A experimentação da troca de perspectivas aparece como processo de compartilhamento de experiências a partir da troca de corpos. O eu no outro, o eu como abrigo do outro como princípios fundamentais para o cultivo da solidariedade.

Nesse sentido, Construção civil e Vapor são propositivos e estão impregnados pelo desejo de (re)construção. Lembram que tudo isso que aí está, esse projeto raivoso e suicida de (auto)destruição intensamente compartilhado e impulsionado, “vai passar”. Ambos os trabalhos operam como uma “rua que cruza”, não de modo indiferente, mas de modo a instituir a diferença, reconfigurar o sensível e atuar sobre o mundo através da dança, da performance, da experimentação e do compartilhamento de perspectivas de subjetividades diversas. Parafraseando o texto O tempo, a linguagem, a transgressão, de Marcus de Lontra Costa, a respeito da obra do artista Carlos Mélo (leia o texto no catálogo, clicando aqui), a arte pode nos lembrar de que a vida pode ser algo mais do que silêncio e medo. Então, depuremos e gritemos: basta! Fora!    

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IMAGEM DO CABEÇALHO

Construção civil, trabalho da Inquieta Cia. Foto de Lua Alencar.