Revista Caju

Isso é e não é um editorial, porque poderia ser também o aplauso de alguém que sempre ocupou um lugar na plateia. Mas este ano, como no anterior, não houve cadeiras, arquibancadas e pedaços de chão para que pudéssemos figurar essa presença – a de espectadores presenciais do Panorama. Desde 1992, quando foi criado pela coreógrafa Lia Rodrigues, o festival nos presenteia com as atrações de uma programação sempre ruidosa e plural. Para além disso, com um pensamento desdobrado sobre o corpo e as possibilidades de sua encenação, sua movimentação no espaço e no tempo.

Lia é uma artista que vem coreografando sua passagem pelo mundo de mãos dadas com o risco, a experimentação e os corpos e histórias que pressionam as bordas da nossa sociedade. A coreógrafa sabe que é preciso essa pressão para que tudo amadureça, para que frutifiquemos a partir de certo incômodo, mas também irrigados pela alegria da diversidade. E esta é, de alguma forma, a identidade fundante do Panorama, que precisou de uma outra alma inquieta para atravessar os tempos e ser atravessado por eles. A pesquisadora Nayse López, mais de duas décadas de dedicação à escrita da dança, assumiu o festival e percorreu todos os anos 2000 até o presente nos ensinando o que é curadoria. Pensar em diálogo com os artistas; evidenciar o processo para que a obra de arte ou a reunião delas se torne também um processo formativo; não fugir das pedras que atravessam o meio do caminho, e sim fazer delas um poema.

“Pororoca”, de Lia Rodrigues, no Panorama de 2010: inquietude da coreógrafa marcou o festival

Jangada e pescaria com rede de amor

O Panorama Raft é um poema. A jangada que o festival joga no mar da internet com 10 criações pensadas especialmente para a exibição virtual, além de um conjunto de conversas e pesquisas em processo, comprova que nem só de deriva vivem nossos algoritmos. A programação pensada por Nayse, em sintonia com sua valiosa equipe e a participação direta do artista Rafael RG e o do coreógrafo Marcelo Evelin, desenha um horizonte para nossa embarcação da cultura. Em meio ao açodamento superficial de lacrações, cancelamentos, gramas-mais-verdes-com-filtro e hashtags, o trio aponta para a flutuação ativa nessa deriva. A partir da vontade e das ações possíveis, o Panorama observa e aproveita o vento para navegar, afirmando que mesmo essa maré pode trazer peixes bons e alimentar o bem-querer (Ah, Caymmi). Sim, é preciso falar do desejo e do amor, porque é impossível pensar a arte sem a necessidade de se permitir afetar pelo outro. Não deixa de ser amoroso, então, o combo internacional das 16 instituições patrocinadoras da programação.

É uma honra e um privilégio para a Caju realizar com o Panorama o seu primeiro projeto especial. Temos uma história que é igualmente jangada, riscando a água com trilhas para a formulação e a difusão de um pensamento crítico sobre todas as linguagens artísticas. É preciso alimentar a crítica; é preciso fazer dela o peixe bom e o alimento que vai fermentar nos intestinos dos artistas, e por sua vez será de novo nutrido por suas criações.

Para mirar nisso, na página dedicada ao festival resenhamos criticamente as 10 criações do Panorama Raft, divididas em seis textos. Dois deles abrem nossas postagens e serão escritos por duas pensadoras convidadas: a crítica de dança Adriana Pavlova analisa Matéria escura, trabalho do Cena 11 (leia aqui), e a artista, performer e pesquisadora Luana Aguiar escreve sobre as encenações do Grupo Mexa e de Iara Izidoro (leia aqui). Da equipe da Caju, que se espalha como rede em pescarias diversas, nessa jangada embarcamos eu, o curador Lucas Albuquerque, o escritor Marcelo Moutinho e o crítico e pesquisador Pedro Ernesto Freitas Lima na autoria dos outros quatro textos sobre a programação, que serão publicados sempre alguns dias após a exibição online – respostas digeridas no tempo necessário aos banquetes.

Comecei o texto, que é e não é um editorial, dizendo que sempre ocupei um lugar na plateia. Sigo nele; seguimos. Gostaria que nosso aplauso chegasse aos criadores do Panorama Raft. Eles têm nos oferecido obras como o testemunho da imensa capacidade de reinvenção do processo artístico, subversões de todas as dificuldades, as vindas de uma doença que atingiu o país e as de um país doente que vem ferindo a si mesmo. Imagino então que as palavras escritas por aqui ganham som e também flutuam pelo ar, chegando como navegantes aos ouvidos de quem nos deu a vibração do corpo. 

Vamos chamar o vento? 

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IMAGEM DO CABEÇALHO

A disposição do assombro, de Wellington Gadelha, parte da programação do Panorama Raft. Foto de Priscila Sousa.