Revista Caju

Na primeira cena, à entrada da casa, Vera Lu toma um picolé. Logo passamos a Lara Luz, que se mexe, delicadamente, tendo à frente um porta-retrato lá está ela, mais jovem e, ao fundo, dois móveis de vime, uma planta que floriu. Tetê Souza é a terceira a encarar a câmera. Passa as mãos no rosto, nos ombros, como que sentindo os poros da pele, os vincos. A consciência sobre o próprio corpo. Raimunda Flor do Campo está sentada ao lado de 16 pares de sapato, que calça e logo descalça, antes de se aboletar numa rede. Então os créditos: Serenatas dançadas

O espetáculo concebido e dirigido por Soraya Portela tem como protagonistas essas quatro mulheres. Todas elas, senhoras com mais de 70 anos e moradoras da periferia do Nordeste brasileiro. Fruto da pesquisa sobre a velhice que a artista desenvolve já ha alguns anos, é um trabalho que se abstém do tom dissertativo para simplesmente mostrar.

Nos corpos marcados pelo decorrer do tempo, Soraya capta uma alegria. “Quis buscar algo que ainda deseja, que ainda quer”, diz a diretora. Essa alegria é, também, liberdade.A acertada opção pelos planos fixos permite que o movimento caiba às protagonistas, não à câmera. O enquadramento emoldura sem aprisionar. À medida que entramos nas casas das mulheres, com suas panelas, caixas de remédio,uma gaiola com passarinhos,a imagem de São Cosme e São Damião, lençóis dependurados, parece se dar uma progressiva intimidade em mão dupla. Das personagens com quem assiste à cena, do espectador com aquelas vidas aparentemente comuns.

A ideia de processo se sedimenta na opção de Soraya por registrar os atos preparativos. Vera Lu coloca o vestido rosa. Tetê Souza veste suas luvas,a peruca. Todo o arranjo é filmado como uma outra dança, complementar. É o aprumo para dançar que as retira do ramerrame do cotidiano e as investe em outra persona,artística, transformando-as sem que deixem de ser elas mesmas. “Me tornei Lara Luz”, conta Laura, ao comentar, em conversa posterior, sua participação no espetáculo.

A consciência do poder sobre o próprio corpo

Nesse transcurso, a autonomia sobre o próprio corpo é uma conquista. Imersas num universo conservador do ponto de vista dos costumes e fundamentalmente machista, as quatro mulheres se permitem, por meio da dança, romper o bom-mocismo tão cristalizado entre nós. Raimunda Flor do Campo toma banho de roupa, rebola sob o chuveiro, depois brinca com um vaso de plantas sobre a cabeça. Tetê Souza põe um lençol à sua frente, faz leves meneios sob o filtro improvável. Lara Luz acende um sinalizador. Vera Lu improvisa por detrás de uma máscara de flores.

Num espetáculo que transita entre a música e silêncio, a única fala evoca justamente essa questão. É Vera Lu quem diz, ecoando o nome da planta à qual se atribuem os poderes de afastar mau-olhado e atrair positividade: “Comigo ninguém pode…”. E, em seguida, elenca: “ninguém pode proibir”, “dizer que não consigo”, “dizer pra não amar”, “dizer o que vestir”, “mandar parar”, “se meter”. As duas últimas expressões ecoam na tela como um recado emancipatório e cheio de vigor: o tempo é hoje. E é meu.

Um tempo dos encantados

É de tempo, igualmente, que trata Assombros e trincheiras: o que acontece depois que o mundo acaba (?), de Tieta Macau, Abeju Rizzo, Elton Panamby e Inaê Moreira. Mas o tempo, aqui, é aiônico, como uma membrana que cobre todas as coisas. De caráter coletivo, o espetáculo nos oferece uma experiência multissensorial. Dança, música e imagem se fundem para saudar o saber da encantaria cabocla. Não cabe entender, cabe sentir.

Tal premissa se efetiva, por exemplo, nos muitos momentos em que os atores se movimentam à frente de um tecido no qual imagens são projetadas. A sobreposição é de tessituras e de histórias, uma fusão em que ascendência e futuro se amalgamam, águas de uma mesma água. 

Ao discorrer sobre o trabalho, Elton Panamby fala de um “invisível que não é transparente”. Esse oculto a que não é dado ver com olhos se faz presente na mata, no rio, e também nos objetos que são mais do que objetos, porque dotados de axé. Logo no início do espetáculo, três mulheres os depositam no chão de terra, com cuidado e reverência.Ebós.O caráter sagrado do elemento simbólico se estende à indumentária vestidos, colares e, ainda, à dança. Quando giram suas saias, as atrizes emulam o movimento do mundo.

“Assombros e trincheiras”: espetáculo multissensorial que trata o tempo como membrana

“Incorporar é lembrar”, dizem as letras que subitamente irrompem na tela. Compõem termos e nomes indígenas e surgem embaralhadas, onduladas, sem muito foco. Mais uma vez, a alusão ao que está inscrito fora da fôrma rígida da palavra escrita.Vozes que são ecos e que se misturam aos sons da natureza.

O que acontece depois que o mundo acaba?, podemos nos perguntar, reverberando o título do espetáculo. Mas que mundo é esse,perto do fim,a que nos referimos? Talvez aquele que se fia na razão, exclusivamente nela. 

Para além de responder à indagação proposta, o trabalho de Tieta Macau, Abeju Rizzo, Elton Panamby e Inaê Moreira desvenda um outro mundo, que não se acaba. Como a chama que queima, etérea, e cujas fagulhas parecem por vezes invadir as cenas do filme, em ato-reflexo.

Nesse mundo,a encruzilhada é o lugar do encontro, a natureza é divindade. E o Tempo, um orixá.

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IMAGEM DO CABEÇALHO

Serenatas dançadas. Foto de Taíssa Araújo.