Revista Caju

A fala de Wellington Gadelha é concisa: “A vacina contra o assombro é o sonho! Sonho é ação”.  Entre atos desejantes de ação e em defesa da imaginação, Gadelha e o Coletive Danças em Transições apresentam, respectivamente, as criações À disposição do assombro e E MAR ANHA DO, partindo de discussões que colocam o corpo no centro da experimentação. Em ambos os filmes, o tom confessional e declamativo é convocado a partir de confissões e reflexões a fim de criar campos de força atuantes no exercício de existência e reinvenção que dá o tom nas duas criações. 

Delineado os problemas sociais que afligem e oprimem seus corpos marginalizados, a prática da dança se institui como um ato de criação coletiva de uma outra realidade para aqueles que são atravessados não apenas pela precariedade promovida pelo atual momento pandêmico, mas por todas as práticas de sufocamento e apagamento de ancestralidades, magias e performatividades exercidas ao longo da história. De modo a discutir essas práticas de extermínio e suas formas de resistência, Gadelha traz à discussão a ideia de assombro, que seria uma força paralisadora e uma ferramenta de opressão. Essa assombração, no entanto, é convocada para a dança pelo Coletive, que busca expandir os limites de seres em constante transmutação.

UM ANDARILHO DA CURA

 “O assombro sempre foi o constituinte da vida negra ao longo da história”. Assim Gadelha inicia sua incursão sobre o conceito de assombro, partindo de uma noção de que esse elemento seria uma ferramenta de poder do estado a fim de violentar e subjugar corpos negros. Enquanto anda pela cidade do Ceará com sua bicicleta (por vezes carregando uma mochila de delivery nas costas), realiza trabalhos de cura por meio de práticas umbandistas ou acompanha rituais junto aos povos originários, Gadelha apresenta maneiras de sobreviver à morte – dos seus antepassados, da sua e dos que o acompanham. O ato se torna ainda mais simbólico ao momento em que ele se põe a hastear uma pipa cuja estampa carrega a bandeira brasileira, fazendo lembrar daqueles que fazem o Brasil voar, apesar de tudo. 

© Allan Diniz
A disposição do assombro © PRISCILLA SOUSA1
© Wellington Gadelha
© Allan Diniz A disposição do assombro © PRISCILLA SOUSA1 © Wellington Gadelha

Rituais de cura são realizados na criação ‘À disposição do assombro’, de Wellington Gadelha. 

Diante de todas as adversidades infligidas à população negra e às urgências materiais impostas, o ato de sonhar se estabelece como a única maneira possível de habitar o presente. Surpreendentemente, Gadelha nos mostra entre ritos de grito e de cura, performados em meio a favelas hipersaturadas em cor ou em matas verdejantes, que o ensejo de criar novos mundos aliado ao manejo de saberes ancestrais é capaz de instituir fendas no tempo. Evocando mais um de seus aliados, o performer responde com seu corpo alocado frente à bandeira Okê Oxóssi, de Abdias Nascimento, onde declama: “Eu, William Gadelha, vivo!”. A saudação destinada ao orixá inserida dentro da bandeira nacional de Abdias testemunha que a história do Brasil é feita da caçada e só por ela pode ser salva. Em uníssono, Gadelha afirma: “O proceder para nós é ligeiro, feito flecha” – uma resposta às mazelas politicamente afirmadas contra a sua sobrevivência. 

Nesse exercício de vida, o performer parte em busca da caçada, que só pode ser realizada em conjunto. Neste filme, compartilham a luta a comunidade remanescente quilombola de Água Preta, a comunidade indígena Pitaguary e Tremembé da Barra do Mundaú, o Terreiro das Pretas, o GRUNEC, Mestre Tarina, Mestre Antônio e o Reisado de Caretas, Mestre Françuli, Rabelo, Dim Briquedim, Alécio Fernandes, Abdias Nascimento e outros, que fazem sua contribuição à magia através de rituais de agradecimento às forças da natureza, no soltar de uma pipa, no plantio do Baobá ou no simples ressoar das palavras de Gadelha. Ações que carregam em si não apenas a resistência dos corpos dos que vivem, mas a potência de fazer coabitar a memória dos ancestrais que adentram a casa de Gadelha e se colocam a dançar com espadas de São Jorge. O Assombro torna-se um elemento partilhado, energia motriz para instituir o sonho como força criadora de espaços e situações. Arma de combate para refazer o assombro, positivando-o.

EU, UMA QUIMERA

Como transmutar o assombro, desvirtuando-o em uma prática de contra-ataque? A essa pergunta, o Coletive Danças em Transições devolve a dança como um espaço de cura e de passagem. Resultado disso é a criação E MAR ANHA DO, onde 11 pessoas trans, não-bináries e bixas fundem suas vivências, alegrias e traumas em um movimento performático disruptivo, quase amorfo, na qual o corpo torna-se objeto de investigação. O assombro é produzido como uma chave de ação para um processo de pesquisa dos limites do corpo, capaz de produzir estranhamentos e realidades incapazes de serem capturadas em sua transitoriedade.

© Brisas RIbas
@ Brisas Ribas 1
© Brisas RIbas @ Brisas Ribas 1

Janelas de zoom convocam o espectador a repensar sua relação com o corpo.

Jacques Rancière afirma que a arte é a “alteração da semelhança”. Ou seja, pode ser tomada como um modo de induzir fissuras na percepção sensível do mundo. Em E MAR ANHA DO, essas fendas são instituídas em 11 janelas de vídeo-chamadas, nas quais cada integrante do coletive é convocado a narrar suas experiências corpóreas e a travar batalhas através da performance. Fazer uso da transmissão em vídeo e das possibilidades de enquadramento do meio os permite dançar a casa e os objetos que as compõem, tal qual é possível perceber na cena em que umx dxs integrantes propõe um movimento por entre os cocos de seu quintal. De modo expansivo, o grupo faz uso do extracampo como uma maneira de ativar outras potências de imaginação. Para ampliar o não-visto, utilizam-se de materiais sobre as câmeras que permitem um jogo entre o visível e o invisível, criando estratégias de visibilidade capazes de instaurar aquilo que não é capaz de ser apreendido. O corpo virtualizado encontra sua força na propagação e no emaranhado de vivências plurais que integram o coletive. 

Como evocado por umx dxs integrantes, os relatos de vivência e transições adquirem uma figura quimérica: híbrida, monstruosa e abissal, cuja dessemelhança é composta pela composição de inúmeras semelhanças – tal qual a malha de janelas transmitidas e capturadas que preenchem as cenas. A busca pela transitoriedade, contudo, só é capaz de ser velejada mediante a instituição de um espaço de fala e escuta, realizadas ao longo da quarentena, onde xs participantes tomam para si a possibilidade de traçar suas próprias narrativas, colocadas à prova posteriormente no campo da dança e da performance. 

TRANSFORMAR A DENÚNCIA EM ANÚNCIO

“Como enfeitiçar o mundo para a cura, senão transicionando-o”? A pergunta que fecha a criação do coletive estende ao público um convite para imaginar novas possibilidades de mundo partindo da reinvenção de si. Seja em E MAR ANHA DO ou em À disposição do assombro, fica a certeza de que o caminho para lançar tais feitiços reside na agregação de forças e saberes, capazes de convocar o outro a repensar outras experiências sensíveis e uma nova reconfiguração social e ética. Como apontado por Judith Butler, a ideia de uma reparação a partir de um movimento de inclusão dos excluídos em um sistema já estabelecido não basta, sendo necessária uma revolução no nível ontológico. Cabe-nos perguntarmos: o que é real? E de que modo essa mesma realidade pode ser refeita?

A essas perguntas, Gadelha e o Coletive respondem não apenas com a denúncia das mazelas já impostas, mas com o anúncio de uma outra sensibilidade porvir. Seja nas superposições dos espíritos que dançam com o seu duplo em À disposição do assombro ou nas experimentações entre casa e do corpo em E MAR ANHA DO, são produzidas imagens imersivas que, como uma flecha lançada ao futuro, rasga o contemporâneo e permite vislumbrar outras realidades. 

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IMAGEM DO CABEÇALHO:

Cena de À disposição do assombro, de Wellington Gadelha.