Cantor, compositor, escritor e pintor, por 96 anos Nelson Sargento viveu com intensidade e com bom humor o Brasil de seu tempo; adoeceu e morreu dessa vivência
Aniversariante deste 27 de maio, Sergio Cabral sempre disse, em uma de suas hipérboles típicas, que Nelson Sargento seria o homem mais inteligente do Brasil.
Hiperbólico até pode ser, afinal, Nelson sempre foi apenas um confesso aprendiz, um seguidor dos grandes poetas de Mangueira, notadamente Cartola, a quem dedicou um belo samba glosando seus versos, Homenagem ao mestre Cartola, e para quem cunhou frase lapidar: “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”.
Mas errado, propriamente, Sergio Cabral não está. Dos muitos hinos do samba, criados por seus poetas no decorrer do tempo, não há hino propriamente mais inteligente do que o seu, Agoniza mas não morre, quase um tratado sobre a força e a eternidade do samba serem causadas justamente por sua inocência, por sua “fraqueza” de cultura popular e perseguida; perseguida mas admirada. São, sim, profundamente inteligentes os versos de Agoniza mas não morre, feito em 1979 quando mais uma vez o samba era acarinhado pela sociedade e pelo mercado, mas nunca deixando de correr riscos de descaracterização.
Samba,
Inocente, pé-no-chão,
A fidalguia do salão,
Te abraçou, te envolveu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você não percebeu
E com que melodia Nelson vestiu tais versos, sua obra-prima, sua grande contribuição para a história do samba.
Porque operário na vida e no samba, pintor tanto de paredes como de bonitos quadros no estilo naïf (na tradição do gênio Heitor dos Prazeres), Nelson Sargento é autor de sambas, digamos, menores (nunca menos importantes). Que bebum não se identificou com o sincopado de De boteco em boteco, no qual ao final “as garrafas então batem palmas / me embriago elas pedem bis”. Como resistir a um samba como Idioma esquisito, satirizando a fala difícil de certos poetas tortos, todo feito com palavras inventadas por ele e com o fecho de ouro: “É isso aí, é isso aí, ninguém entendeu nada, eu também não entendi”. Ou aquele Falso amor sincero, também finalizado com uma touchstone da letra de música em língua portuguesa: “O nosso amor é tão bonito / Ela finge que me ama / E eu finjo que acredito”.
Como bom sambista e fiel mangueirense, ganhou pelo menos um samba-enredo histórico para a Verde-e-Rosa, em 1955, Primavera, feito com seu padrinho e parceiro Alfredo Português, mostrando que também tinha seus momentos de lirismo. Teve a honra de representar Mangueira – e isso não é pouco, pelo contrário, talvez seja o máximo – no histórico conjunto A Voz do Morro, ao lado de Paulinho da Viola representando Portela, Elton Medeiros (Aprendizes de Lucas), Anescarzinho do Salgueiro e outros mais.
Escreveu livros, como Um certo Geraldo Pereira, pintou quadros, atuou em filmes como O primeiro dia, de Daniela Thomas e Walter Salles, Orfeu, de Cacá Diegues, e o curta de Estevão Ciavatta sobre ele, Nelson Sargento de Mangueira. Mas, principalmente, viveu muito, o suficiente para ser o principal baluarte do samba da década de 1990 até hoje, animador de rodas, referência para os mais novos, porta voz do samba.
Mas o que fica de sua longa trajetória, ancorada na tal inteligência percebida nele por Sergio Cabral, o traço marcante de sua personalidade e de sua obra, é o humor.
Essa é a grandeza que o samba nos legou:
Em cada tristeza erguer nosso copo ao humor
Resumiu tudo Aldir Blanc no samba em sua homenagem que fez com Moacyr Luz, Flores em vida (para Nelson Sargento). Não dever ser por acaso que perdemos, para a pandemia de Covid-19, Aldir e Sargento. Ambos viveram intensamente o Brasil no seu tempo, adoeceram e morreram dessa vivência. Só nos resta agora dizer os versos de um para o outro.
Se o riso é mais do que o cansaço
Mangueira cabe em nosso abraço
E toda dor deste mundo enfeita nossa fantasia.
Em outras palavras, no achado de Nelson Sargento para o samba, e que agora serve para ele: “agoniza, mas não morre”. Em cada terreiro, em cada quadra que um samba estiver para acontecer, um brado de “Nelson Sargento, presente” será sentido por todos, como se sente a presença de seu ídolo Cartola.
Autor
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Hugo Sukman é jornalista, escritor, roteirista e crítico de música. É o curador da nova sede do Museu da Imagem e do Som e autor de livros sobre música popular, como "Martinho da Vila - Discobiografia e “Histórias paralelas - 50 anos de música brasileira”, além de peças de teatro sobre a obra de Vinícius de Moraes, Sidney Miller e Nara Leão
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Hugo Sukman é jornalista, escritor, roteirista e crítico de música. É o curador da nova sede do Museu da Imagem e do Som e autor de livros sobre música popular, como "Martinho da Vila - Discobiografia e “Histórias paralelas - 50 anos de música brasileira”, além de peças de teatro sobre a obra de Vinícius de Moraes, Sidney Miller e Nara Leão