Desde que o homem aprendeu a registrar visualmente imagens de seu cotidiano temos representações de cenas onde se veem pessoas cantando e tocando instrumentos. Existem registros de cantores e instrumentistas na arte da Mesopotâmia, Egito, Grécia, China, Índia e outras civilizações da antiguidade; em pinturas, esculturas e desenhos. Há um enorme interesse em saber que tipo de música se fazia nesse passado longínquo, o grande problema para os musicólogos é que essas representações visuais são irremediavelmente mudas e os povos antigos não desenvolveram uma escrita musical que pudesse transcrever o que esses músicos cantavam e tocavam.
A partir da idade média tudo se transforma com a criação de um sistema de notação musical. Essa gramática, inicialmente muito precária, se desenvolveu até chegar a um método de escrita musical que permite a execução das obras com uma razoável fidedignidade aos intuitos dos compositores e também proporcionou a preservação da música através dos tempos. Entretanto os pintores e escultores continuaram sem conseguir transmitir a mágica dos sons em suas obras e isso não quer dizer que tentativas de representar o fenômeno musical deixaram de existir. Os artistas visuais sempre se esforçaram em tentar resolver o problema de representar o som e vamos analisar aqui três trabalhos que tratam do tema da execução musical em diversas épocas da civilização ocidental.
Piero della Francesca (1415-1492) em uma pintura realizada em torno de 1470-75 nos traz uma imagem da natividade de Cristo com todos seus elementos tradicionais: o estábulo, Maria, José, o menino Jesus, os pastores, o boi e o burro. O artista não se preocupa em apresentar a visão de uma Judéia imaginária, muito pelo contrário, transporta a cena para uma paisagem italiana e as personagens da história sagrada são apresentadas com vestimentas e adornos da sociedade contemporânea ao pintor.
Chama nossa atenção o grupo de cinco anjos que ocupa o lado esquerdo da pintura, não são representações clássicas dos seres celestiais com suas asas e vestes esvoaçantes, muito pelo contrário, Piero della Francesca apresenta os anjos como cinco jovens de carne e osso com os pés firmemente apoiados na terra e vestidos como seres humanos comuns. A conexão com o celeste é dada pela atuação desses anjos na composição, são eles que louvam o nascimento de Cristo com música como descrito no Novo Testamento, curiosamente o burrinho também parece cantar junto aos anjos enquanto o pastor de vermelho ergue o braço apontando para o céu. Os instrumentos com os quais três anjos executam a música celestial são dois alaúdes e o que parece ser um pequeno violino, o mais interessante são os dois cantores que são representados cantando notas diferentes em sílabas diferentes da música. Provavelmente um deles está entoando uma vogal aberta como um “a” e o outro uma fechada como um “i”, podemos imaginar isso pela conformação da boca de cada um e fica claro que os anjos cantam um dueto com acompanhamento instrumental. Nessa época estavam se desenvolvendo vários estilos de música polifônica e ao ver a pintura não conseguimos deixar de imaginar o que esses anjos estariam cantando nessa cena tranquila.
Nesse vídeo onde se apresenta uma obra do compositor renascentista Claudio Monteverdi (1567-1846) fica nítida a diferença na entoação das notas pelas cantoras que fazem melodias diferentes e observando de novo a pintura vemos como o artista foi perspicaz em diferenciar os dois anjos cantores.
William Hogarth (1697-1764) publicou em 1732 uma pequena gravura onde retrata um grupo de músicos ensaiando e aqui não há dúvida sobre qual música está sendo executada, pois o artista faz questão de identificar a obra na folha em frente ao regente e de escrever as notas que os cantores estão se esforçando para ler nas partituras. Trata-se de uma Judith, provavelmente de um dos compositores ligados à escola de Georg Friedrich Haendel (1685-1759). Ao contrário da pintura italiana analisada acima, na cena imaginada pelo artista inglês o que reina é a confusão. O regente parece estar enfrentando dificuldades para decifrar a partitura e ergue a mão em direção aos músicos, não sabemos se é para marcar o compasso ou pedir que cesse a balbúrdia. Os cantores com as fisionomias contorcidas se esforçam em executar a peça, mas pela configuração espacial o que está acontecendo é uma performance caótica, nada se encaixa, cada um olhando para um lado diferente, as testas franzidas e as bocas contorcidas. O desenho é uma crítica aos excessos da música barroca que exagerava nas complicações contrapontísticas e na exibição de virtuosismo dos cantores.
Críticas como a de Hogarth atingiram popularidade de Haendel
Nessa época o compositor mais famoso na Inglaterra era o alemão Haendel que reinava no meio musical inglês. Haendel estudou na Itália e aprendeu a compor no estilo da música italiana, conseguindo unir a expressividade da linha melódica mediterrânea à complexa estrutura harmônica da música alemã. Em Londres se tornou um fenômeno de popularidade com suas óperas, mas foi vítima da mudança de gosto do público. As óperas de Haendel deixaram de fazer sucesso após uma série de críticas ao estilo barroco como a de Hogarth e produções teatrais que satirizavam suas composições. Devido a esses percalços o compositor passou a se dedicar à música sacra compondo oratórios que traziam para a igreja seu estilo operístico. Quem saiu ganhando fomos nós que temos no repertório até hoje obras fundamentais como “O Messias” e “Saul” onde ouvimos a maravilhosa melodia para harpa que Davi toca para acalmar o rei:
Henri Matisse (1869-1954) pintou em 1916 um quadro intitulado A lição de piano, na qual vemos seu filho Pierre sentado ao instrumento, provavelmente executando alguma peça ou estudo. Não fica claro se há alguma ação na pintura além da execução musical uma vez que todas as figuras parecem estar imóveis, as mãos do jovem ao piano estão escondidas e só podemos ver sua cabeça que não esboça nenhum outro tipo de expressão a não ser a concentração nas páginas do livro de partituras à sua frente. Uma análise mais profunda demonstra que as duas figuras femininas presentes na pintura são referências a obras do próprio Matisse. A figura no canto superior direito remete a uma pintura de 1914 intitulada Mulher no tamborete e a pequena figura no canto inferior esquerdo se refere a uma escultura de 1908 Figura decorativa. Em um excelente artigo sobre a obra, Robert Kudielka explicita essas relações e nos pergunta se a pintura de Matisse estaria colocando pintura, música e escultura em uma equação visual em que não há resolução.
A forma com que Matisse resolve os problemas pictóricos nesse quadro de aparência tão simples é impressionante, tudo se inicia com um jogo de horizontais e verticais que definem a tampa do piano, uma janela entreaberta e figura da mulher ao fundo. Duas diagonais formam estruturas trapezoidais em verde e rosa que avançam sobre o cinza predominante e encaminham o olhar para outras diagonais que sugerem a janela entreaberta e apontam para duas formas retangulares verticais em azul claro e laranja que tocam a estante do piano e a cabeça do menino, integrando as partes superior e inferior da pintura. A estante do piano onde vemos a marca Pleyel invertida, pois a mesma está sendo vista por trás, tem um padrão decorativo que é interrompido por uma forma negra que sinaliza a continuação desses arabescos no que pode ser a grade de um balcão, para onde se abre a janela. Outras diagonais formam uma série de triângulos que formam a lateral do piano, um metrônomo e um castiçal que projeta uma sombra triangular no rosto do menino, cujo vértice unido à ponta do metrônomo e à chama da vela cria mais um triângulo virtual horizontal que concentra a atenção na área do piano sem pesar a composição. Matisse brinca com nosso olhar num jogo rítmico, numa geometria que reflete padrões musicais. Aqui já não cabe perguntar que música está sendo representada, a música é a própria pintura.
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Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.