O término do projeto Arte como trabalho: estratégias de sobrevivência – 2ª edição coincidiu com o início do ano de 2023 e com a esperança de que dias mais prósperos viriam para nós, trabalhadores da cultura. A conclusão do projeto foi praticamente coincidente, em termos cronológicos, com a recriação do Ministério da Cultura e a expectativa de reestruturação, a nível federal, das políticas públicas voltadas ao setor cultural no Brasil. O término do Arte como trabalho teve também, como pano de fundo, os atos golpistas de 8 de janeiro, em Brasília, quando uma multidão de verde e amarelo, incitada por meio das redes sociais por lideranças de extrema-direita, invadiu a Praça dos Três Poderes e depredou o patrimônio público e histórico presente na sede do governo, exatamente uma semana após a posse do novo presidente,
São inúmeras as implicações políticas desse terrível acontecimento. Para nós, artistas e trabalhadores culturais, amantes, estudiosos e produtores de imagens, essa guerra iconoclasta é uma afronta direta. Um olhar panorâmico e mais apurado é o suficiente para percebermos que tudo isso não aconteceu de um dia para o outro e que as forças que detonaram tal bomba “patriota”, além de estarem há bastante tempo em ebulição, são as mesmas que precarizam o setor cultural no Brasil, o que afeta principalmente os artistas e trabalhadores da cultura mais vulneráveis: pessoas negras, pobres, periféricas, indígenas e membros da comunidade LGBTQIA+. Esse texto é um breve comentário sobre possíveis relações entre essas forças extremistas e a precarização do setor cultural.
Uma dinâmica de certa forma sutil, mas que bem pode ser vista como fomentadora das estruturas do conservadorismo no Brasil e parasitária dos nossos esforços como trabalhadores da cultura, é a obsoleta separação entre ciências exatas e humanas, como se os seres humanos e, logo, as disciplinas dos saberes que criamos, não fossem plenas de complexidades. O termo “economia criativa” vem de imediato à mente como um exemplo de conjunção entre os saberes exatos e os humanos. De fato, pensadores de norte global têm desenvolvido teorias nesse sentido há algumas décadas, e muitas dessas teorias têm sido utilizadas por instituições em todo mundo em suas políticas culturais. O termo “economia criativa” seria uma espécie de guarda-chuva responsável por reunir tanto o meio das artes, quanto os setores de comunicação e de tecnologia da informação. Esse termo hoje é de fama global e, assim, gestores de instituições culturais do sul também têm importando políticas culturais similares às que países do norte adotam desde os anos 90, como por exemplo, parcerias público-privadas para o fomento de grandes eventos culturais e esportivos, construção de grandes museus e intervenções drásticas nos espaços urbanos, dentre outras.
Munidos desse conceito de “economia criativa”, grandes conglomerados com o apoio de políticas estatais têm defendido investimentos no capital humano e no que entendem por criatividade para o desenvolvimento de suas iniciativas. O pesquisador em estudos culturais e de mídia Toby Miller, a partir de suas avaliações do cenário norte-americano, chama tais grupos de Nova Direita. Assim, essa Nova Direita se utiliza dos conhecimentos advindos das ciências humanas para promover inovações no cenário econômico, bem como compreende que as desigualdades sociais dificultam a produção, o acesso e o consumo de bens culturais, e tais fatos não contribuem para o desenvolvimento de uma sociedade. A partir dos estudos de Miller e outros autores, vê-se que, num mundo globalizado, não é possível pensar em cultura hoje de modo descolado da economia e não é mais uma realidade, se é que foi algum dia, a separação entre os campos exatos dos saberes e das humanidades.
País sob nuvem patriota que troca Constituição pela bíblia
Acontece que, no Brasil, a maior parte da direita parece ter se deixado levar, nos últimos anos, por uma incompreensão do que acontece globalmente em termos de valorização das ciências humanas e das artes para o desenvolvimento das economias. Os esforços de sediarmos uma Copa do Mundo, uma Olimpíada e alguns grandes festivais internacionais, parecem ter sido em vão no sentido de alinhar cultura e economia com amplitude nacional. Se Miller e outros autores voltados aos estudos culturais, em meados dos anos 2000, avaliam que países em desenvolvimento tem procurado ascender ao capital intelectual para competirem em pé de igualdade com países do norte, boa parte dos setores da direita nos últimos anos no Brasil passaram a defender valores ultra-conservadores e anti-globais, formando, assim, uma espécie de nuvem patriota e religiosa estacionada sobre o país, capaz de trocar a Constituição pela bíblia.
Para complexificar ainda mais a situação, um conhecido fantasma parece ressuscitar quando os filhos, netos e simpatizantes dos chefes dos porões da ditadura aliam-se aos defensores da família tradicional, da moral e dos bons costumes, do status quo e de uma pseudo fé cristã. Formou-se, assim, no Brasil uma extrema-direita quase que totalmente dissociada da Nova Direita global de acordo com Miller, cujos líderes, em busca de recompensas egóicas, estimulam continuamente que seus seguidores abram mão de suas faculdades mais nobres do pensar ao obedecer um comportamento de manada, fomentado pelas milícias digitais. Assim, todo esse grupo projeta seus mais profundos ressentimentos no comportamento odioso às diferenças de modo que, para tais pessoas, só é possível enxergar o mundo a partir de uma lente restrita e desconexa da realidade circundante. O ataque iconoclasta à capital federal evidenciou o quanto grupos conservadores no Brasil foram orquestrados pelas artimanhas do ego de seus líderes perversos, aos moldes da extrema-direita norte-americana.

O historiador e professor João Cezar de Castro Rocha remonta à redemocratização, o processo histórico que teria “gerado” a extrema-direita contemporânea no Brasil. Ainda segundo o professor, a distopia dessa extrema-direita é uma mentalidade que recusa o outro de maneira absoluta, a favor do ego. Uma característica dessa mentalidade seria: “uma visão de mundo binária e agônica e consiste em identificar constantemente inimigos a serem eliminados”. Tais inimigos são, obviamente, as camadas mais vulneráveis da população brasileira e, tal perseguição, tanto simbólica quanto efetiva, não é nova, apenas tem assumido novos contornos, traços conservadores com as cores de nossa bandeira.
Nesse cenário, a exposição Arte como trabalho tratou, sobretudo, de resistência: resistência ao racismo, às opressões de gênero e classe, e à intolerância religiosa. Resistência, também, àquilo que, em nossa sociedade, impede artistas de criarem seus trabalhos e demais trabalhadores da cultura de prosperarem. A exposição reuniu 15 artistas de poéticas distintas, a maior parte deles racializados, no Museu da História e da Cultura Afro-brasileira localizado na Gamboa, conhecida como região da Pequena África, na cidade do Rio de Janeiro. Narrativas outrora invisibilizadas ou que sofreram tentativas de invisibilização foram, em nosso projeto, evidenciadas e, assim, o Arte como trabalho, em sua segunda edição, demarca seu espaço na cena carioca como um projeto cultural que tem alcançado um público cada vez maior e mais descentralizado.
Arte acrescenta dimensões à realidade
Passados 33 anos da redemocratização, o ataque do grupo de “patriotas” – enfurecidos, ressentidos e entorpecidos – à democracia e aos seus símbolos, denota a fragilidade das instituições brasileiras. Quando acessamos as listas das inúmeras corporações que se alinhavam ao governo derrotado na última eleição, é possível perceber que nem mesmo aquelas que poderíamos classificar como pertencentes a algo próximo da Nova Direita de Miller, no Brasil, conseguiram compreender, de fato, o que estava em jogo. Arrisco dizer, portanto, que a maior parte da iniciativa privada, no Brasil tem fomentado direta ou indiretamente, a atuação extremista nos últimos anos. E, quando forças conservadoras atrapalham a produção cultural de uma sociedade, se dá a precarização no meio e, algo tido como essencial hoje, como a formação do olhar e o aprendizado acerca da tolerância sobre distintas visões de mundo por meio da arte, passa a ser não apenas supérfluo, mas passível de destruição. Se escavamos mais a fundo, veremos ainda como fertilizante desse processo, a ferida colonial.
E o que resta a nós, então, artistas e trabalhadores da cultura? Sob uma perspectiva micro, como artista, professora e pesquisadora, vejo, há anos, pessoas ampliarem suas perspectivas de vida por meio da arte, seja produzindo, apreciando, estudando manifestações artísticas, contemporâneas ou não. Vivemos em um mundo no qual o poder está concentrado em pequenos grupos por onde circula massivamente o capital. Mas, quando a visão é capaz de mudar os rumos do poder, em relação a este, ela é mais importante. A arte, ao acrescentar dimensões simbólicas à realidade, é capaz de tocar os espíritos de modo profundo e transformador, seja em relação a indivíduos ou coletivos. Artistas não são capazes de mudar o mundo, mas contribuem, com suas invenções, para mudanças de pontos de vista. Enquanto os poderes dominantes se absterem de fomentar, valorizar, incentivar a produção artística e sua circulação, estarão sujeitos a seu próprio flagelo, pois somente modelos de invenção são capazes de fomentar a manutenção das economias e, em última instância, da vida nesse planeta. A manutenção do estado democrático de direito continua sendo um dos nossos desafios mais emergenciais e os artistas continuam tendo um papel fundamental nessa luta.
Imagem do cabeçalho:
Estandarte doméstico (2022), de Thaís Basílio. Foto de Ximenne Freitas.