A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões. Não nos esqueçamos das cicatrizes feitas pela morte. Nossa plenitude, eis o que importa. Elaboremos em nós as forças que nos farão plenos e verdadeiros.
LYGIA FAGUNDES TELLES, As meninas
“Voar” foi a palavra com que a mãe, Queila Moura, escolheu rasurar o silêncio que cobria a boca da filha, Thamires Nogueira. Esta, por sua vez, desenhou sobre o esparadrapo que vedava a voz de Queila: “Ar”. Com caneta hidrocor, outra mãe, Drika Santos, escreveu sobre o retângulo colado ao rosto de Gabriela Evangelista, de apenas 13 anos: “Uma vida sem violência”. Gabriela, a filha, retribuiu criando uma fenda na janela opaca e autocolante que represava a fala de Drika: “Livre”. Duas filhas reescrevendo suas mães; duas mães reescrevendo suas filhas — ninhos possíveis. Quatro moradoras do Conjunto de Favelas da Maré, elas foram ao Sesc Ramos como participantes de uma atividade do Clube de Leitura Lima Barreto, motivada pela experiência Sacar o silêncio da boca, criada por Luana Aguiar.
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Inspirada na videoperformance Preparação I (1975), de Letícia Parente, a ação de Luana ganhou muitas bifurcações com a participação do clube da Maré. Filmada em preto-e-branco naqueles plúmbeos anos 1970 brasileiros, a obra de Letícia mostra a artista usando as tiras de esparadrapo para cobrir e redesenhar sua boca e seus olhos, criando em frente ao espelho uma espécie de boneca, cega e muda, alegoria de si mesma. Esta mulher esvaziada de sentidos, interditada nas percepções, aludia à repressão do corpo feminino na sociedade de então (persistente, de muitas maneiras, até hoje). Mas também se referia à longa ditadura civil-militar brasileira, já que o trabalho veio à tona no período mais agudo do regime.
Seria muito difícil pensar as obras de Letícia, Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Wanda Pimentel e outras artistas mulheres latino-americanas do mesmo período sem considerar o contexto histórico das ditaduras que dominam a América do Sul. O corpo em confinamento, costurado, apunhalado e tesourado, será representado inúmeras vezes, e escreverei sobre isso algumas linhas à frente.
Antes, porém, gostaria de pensar no esparadrapo herdado de Letícia e atualizado pelas integrantes do Clube de Leitura Lima Barreto. Um retângulo branco cobrindo a boca dessas mulheres, um grupo de maioria negra, em que muitas são nordestinas ou descendentes de migrantes da região. Uma origem correlata à da cearense Letícia, mas com acessos e oportunidades bem distintos daqueles obtidos pela artista.
No texto que abre esta publicação, Viviane Matesco e eu assinalamos a necessidade de repensarmos as obras e o indiscutível pioneirismo das artistas que integram Escritas do corpo levando em conta aquilo que aprendemos até o século XXI. Em um país como o Brasil, é impossível falar de feminismos — assim mesmo, no plural — desconsiderando que a base da nossa pirâmide social é estruturada por mulheres não-brancas. E que também são elas que chefiam a maioria dos lares brasileiros, movimentando seus saberes e tecnologias para a transformação de suas comunidades.
Em seu ensaio, Matesco discute ainda o corpo da mulher interditado pela história da arte, um recalque que a geração de artistas que integram a mostra busca transgredir e curar. O retângulo branco me levou ao território e às circunstâncias de luta e de conquistas arrancadas no dente por essas mulheres com esparadrapos na boca, que movem seus corpos na sala retangular que é a galeria do SESC Ramos. Que lacunas históricas, perímetros invisíveis, espaços higienizados, instrumentos de silenciamento, janelas vedadas ele pode evocar?
Escrevo em meados de maio e, apenas esse ano, o Conjunto de Favelas da Maré já experimentou 13 operações policiais. Além do saldo de mortos, feridos e presos fora de situações de flagrante, as operações significam lares invadidos sem mandado judicial, moradores surrados no meio da rua e a interrupção da rotina de trabalhadores e estudantes. Na maior parte das vezes, as operações acontecem sem nenhuma justificativa do governo e da Polícia Militar do Rio de Janeiro, no que diz respeito às motivações e aos objetivos de uma mobilização tão violenta e grandiloquente. Quando levamos em conta que a Maré é um bairro formado por 16 comunidades distintas e tem densidade demográfica superior à de mais de 90% das cidades brasileiras, conseguimos imaginar a multidão que vivencia o terror como rotina. A justificativa é o mínimo que o Estado deve aos cidadãos.
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Queila, Thamires, Drika e Gabriela, as quatro mulheres que me ajudaram a começar este ensaio, trazem a memória dessa violência policial em seus corpos, e ela comprova que o Estado segue e seguirá sendo um instrumento de repressão neoliberal, mesmo durante os períodos democráticos. A partir da provocação de Luana, elas experimentaram vivenciar o esparadrapo sobre suas bocas, para depois recusá-lo com a verbalização dos desejos. Repensar a tira (e a retirada) do esparadrapo a partir de Letícia e, depois, do Clube de Leitura Lima Barreto é trazer à tona as evidências de que o poder público trata lugares como a Maré tal qual o (muito) mencionado retângulo branco, um território de contenção e de sufocamento, mas também um espaço de reinvenções, de linguagem nas frestas.
É preciso perturbar as Escritas do corpo. O ponto de partida da exposição foi um mergulho nas representações e alegorias do corpo feminino em obras indiscutivelmente fundamentais e pioneiras, mas já reconhecidas por um sistema canônico. Ainda que tenham recebido menos aplausos, e mais tardiamente do que alguns de seus colegas homens, Anna Bella, Anna Maria, Letícia e Wanda já são enxergadas na escala gigantesca daquilo que nos proporcionaram. Mas, para além das luzes nestas quatro mulheres artistas, qualquer exposição, sobretudo uma que acontece em território como o do SESC Ramos, precisa se oferecer ao público como se fosse um corpo vulnerável; um corpo em metamorfose, que pode ser fertilizado por novos sentidos a partir de quem o visita.
Meu texto tenta dar conta de um pouco dessas sucessivas gestações, deflagradas pelo convívio com os públicos que vivem em regiões geralmente tratadas como bordas menos relevantes pelo centro de poder. Além das leitoras da Maré, penso sobretudo nas vizinhas da galeria, mulheres de Ramos e outros bairros da Zona Norte, com variadas faixas etárias, que são a maioria absoluta em todas as atividades educativas e culturais oferecidas pelo SESC.
Abrindo meu próprio corpo à escuta da Maré, posso entender que ela é um bairro que espelha a denúncia feita por Achille Mbembe. Nas favelas do Rio, vê-se claramente o pacto da máquina estatal contemporânea com o capitalismo decrépito, mas insistente. Uma aliança que continua tornando o Estado e seu aparato repressivo um herdeiro dos períodos coloniais, mas também o transforma em uma engrenagem que se alimenta dessa herança para construir novas armas. A maior delas: a coação a partir da manipulação da morte e do medo de morrer.
Sob a sombra desse pavor, os que vivem em territórios-alvos, que Mbembe chama de “novos campos”, são empurrados para uma rotina de cada vez mais trabalho, mais silêncio e mais precarização social e econômica. A polícia e o Estado são os agentes que têm assegurado a manutenção da desigualdade abismal, instrumentalizada pelos “choques de ordem” e pelas “operações”.
A guerra sempre buscou a expansão territorial e o acúmulo de riquezas como formas de garantir a imobilidade social. Uma espécie de margem de segurança ou reserva de domínio daqueles que já estão em posição hegemônica. Em nosso tempo, esses grandes conflitos não são necessariamente travados por países distintos disputando interesses. Mbembe argumenta que, hoje, a guerra é deflagrada e mantida pelo máximo de tempo possível por “grupos armados que agem atrás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado”, e ambos os lados “têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como milícias”.
As palavras com que ocupo estas páginas são assombradas pelo retângulo branco, e por isso volto à imagem. Ela também pode dar corpo às lacunas na história da arte e nos museus, que foram cristalizados como espaços de privilégio para grupos hegemônicos.
Françoise Vergès afirma que é preciso assumir que a tarefa de decolonizar o museu é impossível, já que ele é a cristalização, na área cultural, de um pensamento e de uma estratégia de subjugação colonial: “O museu é um grande túmulo onde mortos anônimos permanecem insepultos”, escreve ela. A pensadora e ativista francesa diz que só será possível seguir imaginando um “contra-museu” ou um “pós-museu” se abandonarmos as tentativas de simplesmente criar uma alternância de protagonismos que não mudam o sistema por dentro.
Para Vergès, o antirracismo conseguirá mudar muito pouco enquanto for somente um discurso quantitativo, restrito a uma ideia de representatividade que apenas substitua quem está sob os holofotes. A autora pondera que, se o antirracismo não vier acompanhado de uma memória histórica e de uma decolonização da própria sociedade, será inócuo: “O antirracismo neoliberal é amnésia e, fazendo pressão para seguirmos sempre em frente, ele nos faz abrir mão de memórias que ele considera incômodas”. Meramente pendurar na parede obras de grupos historicamente recalcados, quantificando o que seria uma reversão de proeminências, seria apenas, argumenta a autora, dar uma “roupagem” ou “uma tentativa de sequestrar a teoria e a prática decoloniais para neutralizá-las”.
Rascante, a pensadora afirma ainda que o museu é “uma estrutura capaz de dissimular formas de exploração” e que será impossível imaginar um “pós-museu” se a luta social não for levada para o centro da discussão, com a atenção às condições de trabalho de copeiras, bilheteiros e vigias contratados por essas instituições ganhando a mesma ou maior relevância que os debates sobre o que será exibido nas exposições. Os objetos e suas autorias, assim como as mostras e suas comunicações midiáticas, não deveriam ser mais importantes que a vida humana, afinal.
A 35ª edição da Bienal de São Paulo, realizada em 2023 com um programa supostamente decolonial, foi denunciada pelos prestadores de serviço de várias categorias em razão dos abusos trabalhistas da Fundação Bienal. Um exemplo bastante contundente do que Vergès argumenta. Infelizmente, está longe de ser um caso brasileiro isolado de “roupagem” — repito aqui o termo da autora — e de captura neoliberal das importantíssimas lutas afirmativas, mas pode nos oferecer uma oportunidade de reflexão.
Penso que as pautas raciais precisam ser as mais prioritárias em qualquer discussão política ou artística em nosso país, o último a abolir a escravidão nas Américas. Mas talvez seja importante trazer outras questões para um amadurecimento do debate sobre as reparações. Duas delas, cruciais, são a desigualdade social e a captura neoliberal dos trabalhadores. Isso mesmo: trabalhadores. Em um meio que, como Vergès explica e exemplifica, está estruturado pela prática colonial, não me parece supérfluo entender que os artistas, curadores, bilheteiros, vigias, iluminadores, educadores, montadores, faxineiros e cenógrafos que atuam em museus são trabalhadores.
Desdobrar as lutas afirmativas nas necessárias articulações de classe poderia ser um início de combate à enorme precarização em que estamos mergulhados. Ela atinge tanto os contratados por instituições quanto os profissionais independentes, que precisam se arriscar em editais e premiações que muito raramente levam em conta projetos de média e longa duração — iniciativas para um aprofundamento de diálogo e de formação vertiginosa do público. Ela aparece de forma radicalmente agressiva nos barracões das escolas de samba, onde centenas de pessoas trabalham para nos oferecer uma das mais vigorosas manifestações de nossa cultura visual.
Volto ao retângulo branco, meu companheiro nessa linha de montagem, meu fantasma nada camarada. Como Paula de Oliveira Camargo aponta em seu texto nesta publicação, ele também pode nos levar aos espaços de paredes uniformes e silenciosos das galerias de arte, nos quais frequentemente o ruído — real ou figurado — dos frequentadores das bordas das cidades é hostilizado ou até purgado.
Como argumenta a arquiteta e ensaísta, que assina a expografia de Escritas do corpo, a Zona Norte é um deserto de equipamentos culturais, e uma mostra como a que realizamos na região da Grande Leopoldina talvez precise ter como principal objetivo criar um lugar de acolhimento para pessoas geralmente refugadas por esse elitismo totalitário que ainda vigora no meio de arte. Além do abrigo, talvez um objetivo adicional seja o da inversão de fluxos.
Não se pode discutir identidade com um descolamento das questões territoriais e sociais, ou não estaremos mexendo na organização de poder. Isso não vale apenas para os prioritários debates raciais, estende-se também para projetos que buscam reverter o apagamento de mulheres, indígenas e pessoas LGBTQUIA+. Quando penso Escritas do corpo junto com a Maré, busco trazer esse problema à tona. Então me pareceu importante entender, e compartilhar com quem me lê, que o que parecia uma longuíssima introdução a um ensaio que pensaria o impacto da ditadura civil-militar na geração de artistas mulheres da qual fazem parte Anna Bella, Anna Maria, Letícia e Wanda já não é mais uma introdução, e sim o próprio ensaio. As bordas invadiram o centro de minha escrita.
Ainda assim, me dará muita alegria trazer essas e outras criadoras do período para tudo o que desfio. Volto então ao “Voar”/“Ar” e “Uma vida sem violência”/ “Livre”. Com essas palavras, as mulheres do Clube Lima Barreto expressaram seus desejos depois de “sacar o silêncio da boca”. Esse ar que liberta foi proposto e conquistado a partir de uma camada de palavras e desenhos sobreposta ao branco do esparadrapo, uma rasura da mordaça conquistada pela manifestação do imaginário.
O véu que cobre o véu, inundando com poética e política o silêncio e os confinamentos, foi uma estratégia comum de artistas mulheres de variadas linguagens durante a ditadura.
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Em 1973, durante o governo Médici, Lygia Fagundes Telles (1923-2022) lançou As meninas. O romance, pleno de inovações de linguagem a partir do próprio ato de narrar, trançava o curso de sua história a partir das diferentes visões de mundo de um trio enunciado pelo título — as jovens Ana Clara Conceição, Lia de Melo Schultz e Lorena Vaz Leme, estudantes hospedadas no mesmo pensionato de freiras na São Paulo da década de 1970.
As inúmeras qualidades estéticas do livro, que guardam certo frescor mais de 50 anos depois de sua publicação, não são as únicas razões para As meninas ter se transformado em um marco da literatura brasileira. Também contou para isso a imensa coragem de Lygia, que, em plena vigência do regime totalitário, transpôs para a sua história, de modo metalinguístico (um panfleto com o relato feito por um botânico preso durante uma distribuição de panfletos na porta de uma fábrica), a denúncia das torturas que estavam sendo realizadas nos porões do Dops.
(…) Pensei que fosse então morrer. Mas resisti e resisti também às surras que me abriram um talho fundo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar choques em mim mesmo e em meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos.
(TELLES, 2009, p. 148).
O depoimento dentro de um panfleto fez com que ficção e realidade se tocassem de modo sincrônico, para que a leitora e o leitor da primeira edição de As meninas pudessem ser avisados: enquanto eles absorviam a história de Ana Clara, Lia e Lorena, alguém poderia estar sendo morto, mutilado ou estuprado numa sessão de interrogatórios, na capital paulistana, mesma cidade onde viviam ficcionalmente as personagens.
Na sessão de tortura imaginada (e denunciada) por Lygia, os gritos do prisioneiro são abafados por um sapato posto em sua boca. Sapatos e bocas ajudam a entender Escritas do corpo.
Os calçados são recorrentes na série Envolvimentos, de pinturas e serigrafias de Wanda Pimentel. Nela, o corpo feminino expandido é representado como algo que já não cabe mais no ambiente cotidiano que o confinava, seja ele um quarto, uma cozinha ou um carro. Nesse agigantamento da mulher, permanecem visíveis na imagem um ou dois pés da figura, geralmente usando sapatos. É como se o corpo retratado, embora ainda plantado no ambiente que o continha — outro retângulo branco, se considerarmos a “janela” formada por uma imagem em pintura ou gravura — , já tenha se levantado acima ou para o lado da cena, enxergando além dela. Uma membrana foi rompida; um horizonte, conquistado.
Sim, é preciso falar das fronteiras ultrapassadas por essas identidades e esses corpos oprimidos, silenciados e torturados através da imaginação. A boca que fala, devora e começa a digerir o que come é uma imagem recorrente. Ela aparece no coro irônico de Burocracia (1978), de Anna Bella Geiger; e em inúmeros trabalhos de Anna Maria Maiolino. Em Escritas do corpo, está em In/Out — Antropofagia (1973), vídeo da artista em que uma boca feminina e uma masculina se alternam engolindo e cuspindo objetos, em diálogo que prescinde das palavras e cria linguagem a partir do vai e vém das imagens.
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A boca como primeiro passo da digestão e de uma metamorfose dá a pista de que está em jogo uma releitura e uma atualização das propostas modernas. Nestas neovanguardas dos anos 1960 e 1970, a deglutição antropofágica deixa de ser um enunciado teórico para se tornar uma alegoria vivida como imagem e como duração no corpo. Maiolino fez da boca uma grande síntese para seu desejo de criar linguagem. Ela aparece como porta de entrada para a garganta e as vísceras de Glu-glu (1966), um dos trabalhos mais emblemáticos da chamada Nova Figuração; ela está em O que sobra (1974), “fotopoemação” em que a artista insinua o corte e o silenciamento da língua; ela é o diálogo entre gerações (mãe, que é filha, que é mãe) e um mito de origem em Por um fio (1976).
A boca também é um elemento que percorre período significativo da obra de Lygia Pape, artista que não pudemos incluir neste projeto. Se aparece retratada e violentamente calada em Língua apunhalada (1968), vídeo da artista que, do mesmo modo, pode ser montado como série fotográfica, ganha contornos de alegoria antropófaga na instalação Eat me: a gula ou a luxúria? (1976) e é o vetor da experiência Roda dos prazeres (1968). Como os Bueiros de Wanda Pimentel, a boca é um portal ou fronteira por um universo interior, inatingível pelo olho, cheio de fluxos e transformações.
Acima – LYGIA PAPE | Frame de Eat me – A gula ou a luxúria (1976) e Língua apunhalada (1968)
Se a boca é o início da digestão, é nas vísceras que se conclui a transformação do devorado em energia para manter o corpo e em excremento, refugo que retroalimenta o ciclo de transformação. A Série Visceral, de Anna Bella Geiger, é um conjunto de trabalhos em Escritas do corpo que sintetiza muito do que nos mobilizou a fazer a mostra: afirmar que o corpo é o nosso universo em constante metamorfose e que Anna Bella e suas contemporâneas entenderam que poderia vir das pequenas transformações realizadas no ventre — as digeridas e as paridas — o início de uma revolução.
No livro A revolução molecular, de 1980, recém-traduzido no Brasil, Félix Guattari lembra que “uma revolução, em qualquer domínio que seja, passa por uma liberação prévia de uma energia de desejo”. Para o filósofo francês, apenas uma reação em cadeia articulada fora dos meios institucionais, que conseguisse atravessar as “estratificações existentes”, poderia “catalisar um processo irreversível de questionamento das formações de poder às quais está acorrentada a sociedade atual”.
Uma obra mais recente de Anna Bella, Sobre nácar (2003), traz outra abordagem para a mesma questão. O mapa mundi parece repousar dentro de uma concha, com se outra humanidade estivesse sendo gerada nas profundezas do mar, revolvida pela água, lambida pelos peixes, cristalizada pelo sal. A concha que contorna Vênus, que acompanha Iemanjá; concha como o útero onde outra cartografia existencial pode ser redesenhada, afetuosamente. “Mesmo calada a boca, resta o peito”, cantaria Milton Nascimento. E é ele que amamenta o corpo que nasce, rega novos mundos semeados.
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“Fui salva pelo amor”, diz Maria do Carmo Brito em Que bom te ver viva (1989), filme em que a diretora Lúcia Murat mistura um texto de ficção interpretado magistralmente por Irene Ravache aos depoimentos de ex-presas políticas torturadas pela ditadura. Maria do Carmo foi uma liderança da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e “caiu”, isso é, foi presa, no ponto de encontro com outro companheiro, que vinha a ser seu marido, Juarez Brito. Os dois tinham um acordo: caso fossem encurralados pelos agentes da repressão, um atiraria no outro e depois se mataria. Quando o cerco aconteceu, Maria do Carmo rompeu o pacto: em vez de atirar em Juarez, mirou nos policiais. O companheiro tampouco alvejou a mulher, mas tirou a própria vida para não ser torturado. Temia não aguentar e entregar companheiros ainda livres. Mesmo violentada de múltiplas formas na cadeia, Maria do Carmo conseguiu construir outro núcleo familiar e ter filhos.
“Amor”, escreveu Maria Rizonete da Silva no esparadrapo sobre a boca de sua dupla, Fernanda Medeiros. Na resposta com hidrocor, Fernanda misturou “mar” e “amar”, desenhando o “m” do verbo como se fossem ondas. As duas colegas de clube de leitura são estudantes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Fernanda, criada na Maré e mãe de quatro filhos, faz o curso de Letras e Literatura; Rizonete, ex-doméstica, moradora da Rocinha e alfabetizada já na maioridade, tem 60 anos, e acumula a faculdade de Pedagogia e cursos livres de teatro.
“Viver sem medo” foi a frase que Wellington Virginio escolheu pôr sobre a boca de seu companheiro, Tiago Carlos. Depois do exercício com Luana, os dois percorreram a galeria abraçados, olhando demoradamente cada trabalho da exposição.
No fim das contas, é aí que a escrita se apresenta. Na troca do medo pelo amor, o retângulo branco talvez desapareça como perímetro invisível ou mordaça, e volte a ser um esparadrapo. Na troca do lacre pelo ar, quem sabe o esparadrapo vire lembrete, uma espécie de post it que adere ao mural que mantemos em nosso lado de dentro. Ali, ele nos lembraria da capacidade de o corpo imaginar, e de poder ser a duração e o continente para que a imaginação se manifeste.
Imagem do cabeçalho:
Frame de In/Out – Antropofagia (1973), de Anna Maria Maiolino. Foto de Clara Miloski.