Essas três palavras foram extraídas da música Comida dos Titãs. No original, “Desejo, necessidade, vontade” se comunicam para dizer que “a gente não quer só comida”, quer outra coisa: diversão, arte, balé, amor, prazer e felicidade. E o que isso tem a ver com o desejo?
A proposta deste texto foi a de estabelecer uma conversa a partir daquilo que animou a curadoria de Fernanda Lopes – em seu delicado trabalho de visitar a pesquisa de aproximadamente 30 artistas de diferentes gerações, recolher e montar na galeria Athena uma exposição sob o título: Necessidade Vontade Desejo.
O título recebeu uma grafia específica: as três palavras foram escritas com letras maiúsculas e sem vírgulas. O que as separam? Há entre as palavras algo que as diferencia. Um espaçamento estranho, no sentido antitético do termo: um intervalo curto, produzido por um único toque na barra de espaço, mas que indicaria um abismo profundo entre elas. Esse espaço abre também uma possibilidade de diálogo entre a curadoria e as produções desses artistas com outros campos da cultura, tais como a psicanálise, que tem algo a dizer sobre essas palavras, sobretudo o desejo que Freud revelou em seu trabalho sobre os sonhos em 1900 e que Lacan fez ecoar ao longo de seu ensino. É aqui então que propomos um litoral.
à primeira vista
A primeira sala, dentro da casa, foi dedicada ao gênero da natureza-morta. Ao entrar, o olhar alcança uma tela do século XIX do pintor Estevão Silva. Fernanda conta que o artista colocava as próprias frutas retratadas atrás dos quadros, ampliando a experiência para além do campo visual.
O pintor parece evidenciar com isso a função do véu, que segundo Lacan seria “uma das imagens mais fundamentais da relação humana com o mundo”. O véu (ou a cortina) como aquilo que se põe diante de alguma coisa seria a melhor imagem para a situação fundamental do amor e assim ele completa: “com a presença da cortina, aquilo que está mais além, como falta, tende-se a realizar como imagem. Sobre o véu, pinta-se a ausência.”
O que Estevão Silva pretendia mostrar com esse jogo entre o véu e a coisa?
Em Mercado de artes/Mercado de bananas (2012) o artista Paulo Nazareth leva uma Kombi para dentro de uma famosa feira de arte em Miami (EUA). Dentro dela há bananas, muitas bananas. A medida que o tempo passava, as frutas amadureciam e produziam odores, “atraindo mosquitos e gente”, nas palavras do artista. Cai um pouco o véu e algo da coisa aparece. Faz um furo no suporte imaginário.
Em Postal (2019), vídeo-performance de rafael amorim, o artista senta na beira da piscina do Parque Lage, abre a sua mochila, pega uma marmita e começa a comer. O que o faz não passar desapercebido nesta cena absolutamente simples e cotidiana? Fernanda Lopes conta que o artista faz uma provocação. Sua câmera se posiciona de maneira a promover o mesmo enquadramento que muitos visitantes fazem com suas câmeras e celulares. Estudante da Escola de Artes Visuais, amorim sabe que há ali uma tentativa de transformar o pátio da escola em um cenário qualquer: para os chamados books fotográficos, por exemplo. Forma-se uma fila e as pessoas posam dentro de um enquadramento repetitivo que busca a arquitetura do palácio e a paisagem que o cerca. Este trabalho de Amorim nos remete àquilo que Lacan propôs como uma mancha na cena: onde se busca um fundo com uma bela paisagem, onde se pretende uma certa assepsia na imagem, como na imagem da propaganda com o real foracluído – e o artista, perturba, agita, incomoda (Unheimlich) aparecendo com sua marmita e almoçando, propositalmente, dentro da cena. Trata-se de um furo na imagem.
Abracadabra… (2017) é um trabalho e, por que não, um truque visual de Nelson Leirner que ocupa a mesma sala de Estevão Silva. Fernanda Lopes antecipa algo da intenção do artista com a tapeçaria: a presença da mão do artista. A ironia, sempre presente na obra de Leirner, aparece aqui como um pedido de reflexão às produções contemporâneas sob às críticas em relação a um certo desaparecimento da mão do artista e as consequências disso no mercado de arte.
E as frutas de plástico? “As flores (e as frutas) de plástico não morrem”, outro verso dos Titãs que nos ocorre. Se com a tapeçaria o artista nos incita a discutir a unicidade da obra e a presença da mão do artista na sua realização, com as frutas ele questiona o caráter de eternidade de um objeto de arte. Embora não perecível e inodoro, há um truque aqui: trompe-l’oeil, um efeito de tapeação-do-olho ou, para não perder o contato com o jogo de palavras que Fernanda Lopes usou no texto curatorial: uma casca de banana por onde escorrega o olhar. Segundo Lacan em 1964, trata-se de um recurso pictórico que provoca certa confusão ou hesitação entre imagem e o objeto representado. Na década de 1960, em seu seminário dedicado ao objeto olhar, Lacan não se esquivou de notar um certo efeito provocado por esse recurso da pintura, o que o levou a dizer que “o que eu olho não é jamais o que quero ver”. Para explicar melhor esse jogo do olhar, ele retoma uma lição antiga envolvendo um duelo entre dois personagens da Grécia Antiga: Zêuxis e Parrásios.
A história conta que ambos se apresentaram perante uma comissão que decidiria, dentre os dois, qual seria o melhor pintor. Assim, com suas obras oferecidas ao crivo de tal juízo, Zêuxis suspende um tecido que velava seu quadro, expondo uma natureza-morta. Lacan diz que o mérito de Zêuxis foi ter pintado um cacho de uvas capaz de atrair os pássaros, em suas palavras: “O que é enfatizado, não é, de modo algum, o fato de que essas uvas seriam uvas perfeitas, o que se enfatiza é o fato de que se tenha enganado até o olho dos pássaros”. Confiante de que vencera seu adversário, Zêuxis pede para que Parrásios revele sua obra, contudo, para surpresa de todos, ele havia pintado o próprio tecido. Lacan conclui que esta vitória revelaria, para além do duelo, o triunfo do olhar sobre o olho.
sobre o Desejo
O Desejo pelo qual a psicanálise se interessa apareceu pela primeira vez em 1900 como algo realizável na obscuridade dos sonhos, é o Wunsch que Freud se refere. Sua frase paradigmática “o sonho é a realização de um desejo inconsciente” nos faz pensar que há um trabalho de composição no sonho, entre um conteúdo inconsciente moralmente censurado e a sua manifestação em imagens oníricas relatadas pelo analisante no divã.
Em seu retorno à Freud, Lacan marcou a diferença entre necessidade, demanda e desejo para nos comunicar que há alguma coisa que não se resolve no campo da necessidade/satisfação: “a gente não quer só comida, a gente quer a vida como a vida quer”. O que a vida quer de nós? ou “o que o Outro quer de mim?” nos parece a pergunta que Lacan propõe para sustentar o desejo como desejo do Outro.
Lacan chega a dizer mais para o final de seu ensino que a “propriedade da demanda é não poder situar o que vem a ser o objeto de desejo”. Existe algo na própria estrutura do desejo que não se esgota nas palavras, nas imagens e nas coisas, embora esbarre em um determinado objeto que lhe causa.
Em resumo, o desejo é desejo do Outro e a demanda não aponta a sua causa. E mais: a demanda é sempre uma demanda de amor. O amor é a resposta para a pergunta do desejo? Uma resposta à pergunta que Lacan recolhe do conto escrito no século XVIII por Jacques Cazotte, sob o título “O diabo enamorado”: o que queres?
Che vuoi ou “você tem fome de quê?” poderia ser a pergunta do desejo, do desejo que interessa a psicanálise, em sua condição inesgotável, incessante e indestrutível. Não há satisfação completa, pois ele desliza, escorrega nas demandas, de lá pra cá, o que levou Caetano Veloso a cantar em seu Pecado original: “a gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo”. Onde encontrá-lo então? Se a psicanálise nos convidou para conceber a vida “além do princípio do prazer”, em uma espécie de fenda aberta no sentido do Outro, é o desejo que encontra o sujeito (e não o contrário), e uma vez guiado por ele só haveria uma coisa a fazer, segundo Lacan: “não ceder”.
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Psicanalista e pesquisador de arte