Ritual, oferenda, profanação, encontro, festa, política, diversos termos podem ser evocados para designar as ações de Ronald Duarte, inclusive arte. Talvez este último seja o menos importante, pois sua produção é de tamanha força e complexidade, ocorrendo no cruzamento dos mais diversos saberes e práticas, que chamá-la de arte seria mera formalidade. A diluição de suas ações no cotidiano, na cidade, nos corpos que se unem para executá-las, levam-nas a situações tão singulares que talvez a palavra arte não lhe baste. Ronald vai além.
A produção de Ronald tem como pano de fundo o fracasso do projeto de modernidade, bem como a crise do ser e das coletividades no mundo globalizado. Diante das pautas obscurantistas que regem o planeta, e em especial o Brasil, o artista propõe respostas imediatas, apostando no poder das multidões e dos encontros. Para contextualizar as ações de Ronald, é preciso ter em mente que o Brasil é historicamente um país autoritário, como analisa muito bem a antropóloga Lilia Schwarcz no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Com o advento da República, no final do século 19, foi mantido o mandonismo patriarcal que marcou os tempos da colônia e do império. A hierarquia e a força política dos senhores de terra continuaram (e continuam) a regular a distribuição do poder. Mesmo com as reformas empreendidas nos anos de redemocratização após a ditadura militar (1964-1985), o Brasil não deu conta de deter a contaminação da esfera pública pelos interesses privados e tampouco os processos de exclusão social.
Vivemos a eterna caça à cultura popular, bem como a perda da vitalidade de nossos espaços públicos. O Brasil entrou no século 20 com projetos de modernização que almejavam exibir ares franceses e esconder seu passado colonial, por meio de reformas urbanas controversas inspiradas em Paris. A cultura popular era vista como ameaça para a ordenação do espaço urbano, sendo criminalizada e perseguida: as rodas de capoeira, o samba, as religiões afro-brasileiras. No século 21 a história não é tão diferente. O neoliberalismo e o avanço do domínio neopentecostal na política desenvolvem novas formas de controle e de apagamento epistemológico. As resistências aos diversos tipos de opressão têm encontrado lugar privilegiado nas ações de artistas como Ronald Duarte. E por resistência não entendemos um mero estar contra, mas a invenção de outras formas de existência, a criatividade que surge nas frestas. São ações que se configuram como pequenos levantes ou microcomunidades temporárias, que não visam revoluções, mas são maneiras de reencantar espaços dominados, disciplinados e controlados. Pois o contrário da vida, concordando com o historiador carioca Luiz Antonio Simas, não é a morte, mas o desencanto, ou seja, as formas de desvitalizar os espaços, de subalternizar indivíduos, ou de produzir esquecimentos. O encantamento, em oposição, é a política da vida plantada nas margens, implicado na dimensão da comunidade e do rito. Ele quebra qualquer senso produtivista e utilitário atribuído à existência.
Não devemos alimentar a nostalgia da cidade tradicional, da ágora ateniense, de um ideal de espaço público que parece romântico diante da atual configuração do mundo. Valendo-se desta consciência, as ações de Ronald, mesmo efêmeras, produzem lugares que são temporariamente qualificados como espaços políticos ou de encantamento. Atuam contra a homogeneização das sensibilidades e dos usos da cidade, assumindo não o consenso, mas o dissenso na ocupação e produção de lugares. Suas ações, muitas vezes, são movidas pela violência urbana e pelas contradições do espaço público, surgindo como um grito, sem rodeios, deixando claro para que vêm. Sua obra transborda, se mistura às impurezas da rua, lava caminhos, expurga as calçadas, contagia o mar, se dissolve no ar.
Muitas ações de Ronald partem da vontade de trazer à tona o impacto de uma violência que está perto e longe ao mesmo tempo, pois é constantemente midiatizada e vitimiza, em maior parte, corpos periféricos. A presença simbólica desses corpos é evocada por meio das intervenções em territórios onde eles não se fazem visíveis, a não ser por meio da midiatização que transforma sua morte em algo banal, quando não em entretenimento. O que vemos em muitos trabalhos do artista são experiências variadas de pintura em campo ampliado, desde a série Planares da década de 1980, que já trazia a ideia de transbordamento da cor e quebra da moldura ou, mais especificamente, do chassi (e que poderíamos pôr em diálogo com as experiências cromáticas de Hélio Oiticica), até suas ações realizadas a partir dos anos 2000, que lançam mão dos mais diversos elementos e suportes, da água ao fogo, das ruas ao mar, transformando a paisagem e as cores da cidade. Ronald interfere nos espaços como maneira de revelar o que foi tornado opaco ou espetacularizado de tal maneira que inibe a sensibilidade de quem vê.
A isso soma-se a dimensão ritual que pode ser encontrada em todos os seus trabalhos, misturando-se com o teor poético e festivo. Pois é na festa que se recupera o sentido de comunidade despedaçado pelo colonialismo e pelo autoritarismo. As ações de Ronald Duarte são potências vivas que encantam a cidade e os corpos que nela habitam. Elas transformam o mundo em terreiro.
Autor
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
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