O corpo feminino se configura como elemento fundamental na história da arte europeia, central para um olhar supostamente universal da arte até meados do século XX. O nu constitui o gênero artístico-metafísico por excelência, criado na Grécia em momento no qual a própria imagem de corpo pode ser pensada. Por isso, o corpo é idealizado, modelizado e julgado por princípios externos a ele, transcendentes, mais pensados do que vividos. É precisamente por causa dessa vontade obstinada do homem de dar forma visível ao humano que o nu seria o signo distintivo da sociedade ocidental, de sua metafísica milenar à procura de uma imagem sensível do ideal. Para Jean-Luc Nancy, o nu não representava um corpo, mas a ideia abstrata da humanidade; no entanto, essa universalidade é problemática, pois supõe ponto de vista masculino. Tal premissa está na base do questionamento artístico nas décadas de 1960 e 1970, quando o corpo se torna cerne da reversão de valores defendidos pelas mulheres. Isso porque a representação da mulher na arte confunde-se com a própria repressão feminina: pudor, bondade, piedade são as expressões permitidas às mulheres até o século XIX.
A importância de problematizar a universalidade do gênero nu e de acentuar a sublimação da sexualidade feminina, tanto na representação como no discurso da história da arte, tem duplo intuito: enfatizar como a presença da mulher na arte europeia é majoritariamente centrada em sua ‘objetificação’ e demonstrar como a questão da sexualidade impõe limites. A partir do descompasso, no mundo das artes, entre a abundância do objeto-corpo feminino e a rala presença da produção das mulheres, compreende-se a importância estratégica da nudez como arma das artistas feministas dos anos 1960/70. Portanto, a tarefa necessária é examinar como o corpo torna-se cerne da reversão de valores defendidos pelas mulheres na conjuntura das décadas de 1960 e 1970: é por intermédio da relação entre corpo e arte que elas rompem com uma repressão milenar e se colocam em posição de luta.
![](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2024/06/anna-bella-brasil-viviane-1.jpeg?resize=820%2C579&ssl=1)
Da representação idealizada e desencarnada até o século XIX, passando pelas revelações transgressoras do movimento surrealista até às investigações da body art, delineia-se um processo que muda o estatuto do feminino na arte. O cenário artístico da segunda metade do século XX acentua a crise da visão antropocêntrica e da sublimação do corpo, que aparece em ações, performances, vídeos e fotografias — o que revela uma mudança significativa nas formas de sua percepção. Os artistas exploram sua temporalidade, contingência e instabilidade, abordando-o como conteúdo, tela, pincel ou imagem. Os happenings, a body art e as performances acarretam uma tensão entre corpo literal e imagem, o reconhecimento da corporalidade do sujeito; a percepção de que nossa experiência e nossa presença se tornaram cruciais questiona a noção de um corpo enquadrado, distanciado pela perspectiva: a ressurreição da carne implica a quebra da moldura e a intenção é quebrar o especular para afirmação de um corpo primário. Também o processo de liberação sexual, impulsionado pelas teorias psicanalíticas, muda a posição da mulher, sua relação com o corpo, seu estatuto na sociedade. Na década de 1960, surgem importantes fatos que transformam os valores e códigos da sociedade patriarcal; a pílula anticoncepcional dissocia o sexo da função de gerar filhos, os movimentos feministas eclodem em várias partes do mundo, novos comportamentos e posicionamentos políticos fazem do período um exemplo de contestação. O happening foi difundido nos meios de massa como figura de liberdade, tornou-se parte das maciças convulsões políticas e culturais do decênio. Como afirma Sally Bannes, os artistas não pretenderam refletir passivamente a sociedade em que viviam: tentaram mudá-la, produzindo uma nova cultura. A incorporação do corpo pela arte significava uma subversão dos tabus e interditos e fazia, do espectador, testemunha de uma transgressão de arranjo agressivo e crítico das regras sociais, religiosas. Nos Estados Unidos, desenvolve-se no final dos anos 1960 e início dos 1970 uma teoria e uma arte feminista que situa a sexualidade feminina como o componente definidor das experiências e identidades da mulher vivendo numa cultura patriarcal. Forma-se uma coalizão para combater o patriarcalismo na assunção de que as mulheres dividem experiências sociais, culturais e pessoais. Postura bem diferente será adotada pelo feminismo pós-estruturalista dos anos 1980, que rechaça a prática artística de uma noção biológica da feminilidade. São artistas militantes que, embora não defendam uma natureza feminina, objetivam evidenciar os processos de dominação masculina nas instituições.
Na virada dos anos 1960/1970, a distância imposta pelo vídeo ou pela fotografia muda o estatuto dos trabalhos corporais, uma vez que o corpo se torna um meio entre outros. Na década de 1960, o corpo era o material da arte apenas enquanto durava o gesto, o acontecimento, e fotografias e filmes foram usados para documentar esse momento transitório. A relação entre ação e imagem adquire novo caráter a partir dos processos conceituais, pois, ao invés de registros, muitos trabalhos passaram a ser concebidos enquanto imagem; isso implica uma série de condicionamentos que esgarçam o efêmero e o instável, marcas da identidade inicial da arte corporal. Nas performances posteriores ocorre distanciamento e suspensão temporal impostos pela relação com o vídeo ou a fotografia. A performance legitima-se buscando o sentido em si mesma e materializando conceitos de arte através de investigações sobre questões como o corpo com dor e as relações com o espaço ou com o social; ou, ainda, analisando a relação entre o artista e o público.
A introdução de câmeras de vídeo portáteis enfatiza a relação com o corpo do artista no intuito de explorar ideias sobre seu entorno. No Brasil, toda uma geração de artistas, como Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Letícia Parente, para citar somente as mulheres representadas na mostra, foi pioneira na assimilação da nova tecnologia e também usou seus corpos como um meio de discussão conceitual. No entanto, nesse momento a conjuntura política brasileira em relação à internacional explica o quanto o tópico da sexualidade permanece em segundo plano, embora tais artistas também questionassem a objetificação do corpo da mulher. Não há cenas de nudez explosivas como nas poéticas das europeias e estadunidenses, não se explora o erotismo, como analisa Roberta Barros (2016) em Elogio ao toque ou como falar de arte feminista à brasileira. O período de ditadura militar no país fez com que as artistas plásticas se ocupassem mais com o corpo materno e social, enquanto internacionalmente era focalizado o corpo/sexualidade da mulher. Também Luana Tvardovskas (2015) observa que nas décadas de 1960 a 1990 inexistia um movimento feminista organizado nas artes visuais no Brasil, embora houvesse ressonância das tendências internacionais. Analisa o modo como, no cenário latino-americano, as ditaduras civil-militares interferiram diretamente no movimento feminista, sugerindo que, por isso, não encontramos no Brasil uma corrente de arte feminista tão bem demarcada como a estadunidense e a europeia.
Essa especificidade brasileira pode ser observada na mostra Escritas do corpo. São quatro exemplos de uma arte de resistência, de uma arte feminista, ainda que as artistas não empunhassem uma bandeira ou seguissem algum tipo de movimento. Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Wanda Pimentel e Letícia Parente não se compreendiam como feministas, embora tivessem poéticas que se contrapunham à sociedade patriarcal, ao poder político masculino.
Letícia Parente (1930-1991) foi uma das pioneiras da videoarte no Brasil. Seus trabalhos envolvem questões do feminino em situações domésticas. Nos anos 1970 e 1980, realizou uma série de performances em vídeo que não implicavam público. Seu vídeo Marca registrada sintetiza a conjuntura política brasileira na época da ditadura, com a artista escrevendo no pé, com agulha e linha, as palavras Made in Brasil.
LETÍCIA PARENTE, Marca Registrada, 1975, 10’17”
Preparação I, vídeo de Letícia, é exemplo de subversão da imagem estereotipada da mulher: a artista se coloca diante do espelho preparando-se para sair, mas, em vez de se maquiar, cobre os olhos e a boca com esparadrapo, e sobre ele desenha outros olhos e outra boca, como para revelar que são pura máscara assujeitada pelas convenções. Aqui a arte explicita ironicamente a coisificação da condição feminina bem como o silenciamento imposto pela ditadura. Também no vídeo In, de 1975, a objetificação da mulher é evidenciada. A artista entra em um armário e se pendura em um cabide, tal qual um objeto manipulável que pode ser guardado. Uma mulher que ali permanecerá, quieta e à disposição de quem dela quiser se servir, se vestir. O trabalho de Letícia Parente faz uma conexão entre corpo e espaço doméstico subvertendo ou colocando a nu o tradicional papel da mulher na sociedade brasileira. Essa transgressão da conformidade à norma social e política é expressa por intermédio de uma linguagem que desafia os meios tradicionais da arte: uma das pioneiras da videoarte no Brasil, ela faz uso da câmara e de seu próprio corpo para parodiar o cotidiano da mulher no país. Seja encapsulada no armário, passada como roupa em cima da tábua, na frente de um espelho, atua para denunciar o papel de objeto no qual a mulher estava conformada. Denunciar o papel objetificado da mulher presa a um espaço doméstico significa romper com essa armadura. Para Letícia, segundo Katia Maciel “a casa é o lado de dentro” e o corpo é “o corpo da mulher todo escrito com suas fissuras” .
Anna Bella Geiger (1933), pioneira da arte abstrata no Brasil, tem uma obra inovadora que transpassa várias linguagens, sejam objetos, vídeos, gravura, fotografia, pintura, desenhos. O experimentalismo de sua obra envolve diversas dimensões, com entrecruzamento do político, do social e do corporal. Em seu trabalho, o corpo é um território no qual se discutem as noções de fronteira, geografia, identidade e cultura. Filha da diáspora judaica, Anna Bella evidencia um corpo em estado de exílio que busca novos espelhos, mapas e pertencimentos. Sua série de gravuras Viscerais, dos anos 1960, evocava partes do corpo humano, fragmentos, com uma crueza convulsiva que dialogava com a repressão militar à qual o Brasil sucumbia. Na década seguinte, já utilizando novos meios, como vídeo e fotografia, esse caráter crítico se acentua: Brasil nativo Brasil alienígena é um marco da arte brasileira pelo seu caráter crítico e antropológico. A artista se apropria de postais que idealizam povos indígenas, evidenciando a crueldade das suas relações com o governo militar brasileiro. Para cada postal, faz uma releitura de si mesma, de sua família, articulando as dimensões domésticas da mulher à realidade social do país. A utilização de sua imagem justaposta àquela do indígena faz um contraponto antropológico da diversidade de costumes, mas por intermédio de uma paródia, de uma ironia à objetificação exótica do indígena e, da mesma maneira, da coisificação da mulher.
Wanda Pimentel (1943-2019) trabalhou com diversos meios, como pintura, desenho e gravura. Nas suas obras, o cotidiano do universo feminino é figurado por uma linguagem pop em diálogo com a imagem em meios da cultura de massa do Brasil. Os corpos na série Envolvimento não tem cabimento: a sensação é a de que as pernas e braços das retratadas pretendem ultrapassar o espaço delimitado pela cena e vivem em confinamento. Wanda faz da sua obra um espelho simbólico para a condição da mulher durante a ditadura.
Anna Maria Maiolino (1942), artista plástica ítalo-brasileira, desenvolveu igualmente diversos suportes, como pintura, desenho, escultura, filme e vídeo. Participou da Nova Figuração, movimento que se afirmava uma linguagem pop no Brasil dos anos 1960 e 1970, tendo integrado a Nova Objetividade Brasileira (MAM-RJ), uma das mostras mais importantes do cenário artístico nacional. Em sua obra, a utilização da boca, olhos, língua e linguagem são meios visuais revolucionários frente à política. No trabalho In-Out (Antropofagia), a boca toma toda a imagem. Os jogos com adesivos e a relação entre masculino e feminino, que busca a comunicação não efetivada, marcam simbolicamente essa impossibilidade. Em vez de uma fala, se vê uma boca que engole um fio preto, transborda fios vermelhos e acolhe um ovo. O corpo é a via de uma atividade transformadora, símbolo de uma linguagem que envolve alimentação, digestão (como no emblemático trabalho Glu–glu), deglutição da cultura e conjuntura brasileira nos anos 1960/70. Em 2024, Maiolino participou da Bienal de Veneza e recebeu o Leão de Ouro pelo conjunto da obra.
Artistas pioneiras em vários aspectos, na utilização de novos meios e na denúncia da objetificação da mulher, Anna Bella, Wanda, Letícia e Maiolino abrem caminho para novas gerações. A questão do corpo da mulher nas poéticas artísticas da atualidade se pauta por viés distinto daquele do século anterior. Atualmente a experiência do corpo é reterritorializada pela arte a partir de uma perspectiva ativista e política rumo a um feminismo negro e decolonial. As afinidades entre corpo, sexualidade e arte são examinadas sob novas formulações de gênero e concepções de mulher, compreendendo o feminismo em sua diversidade, levando em conta as múltiplas perspectivas e a amplitude do ativismo artístico feminista. Se o ativismo e a diversidade de concepções feministas marcam as novas gerações, encontram, por outro lado, uma liberdade conquistada por mulheres que viviam em um mundo totalmente dominado pelos homens e em uma conjuntura ditatorial que sublinhava com sangue essa repressão.
Autor
-
Crítica de arte, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Relacionado
Crítica de arte, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF).