Às vezes entro em exposições que quero morrer.
Anna Maria Maiolino. Entrevista para a Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, nº 29, junho de 2015.
Por quê?
Porque saio igual como entrei.
I
Qual é o lugar da arte?
A pergunta, além de essencialmente filosófica e muitas vezes retórica, é tratada neste ensaio de maneira, também, bastante objetiva. Para isso, vou compartilhar aqui algumas experiências, pensamentos e caminhos que me levam a indagar:
Em que lugares, em que espaços físicos, você, que lê este texto, pensa quando pensa em arte?
Embora eu não possa responder essa pergunta de maneira generalizada, posso falar por mim. Passei boa parte da minha infância e adolescência transitando entre Cachambi e Méier, bairros em que minha avó e meu avô maternos viviam e onde viria a morar com minha mãe dos 8 aos 21 anos, e Botafogo e Copacabana, onde ficavam as casas do meu pai, e da minha avó e do meu avô paternos.
O Cachambi e o Méier, situados na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, não eram entendidos por mim como “lugares de arte”. Veja: não é que não houvesse arte nesses lugares. A questão é que os lugares que, por condicionamento, acabamos por decodificar, entender e aceitar como “lugar de arte”, via de regra materializados na figura de galerias e museus, não estavam lá. Eu, pelo menos, nunca ouvi falar da Galeria de Arte Contemporânea do Cachambi ou do Museu de Arte do Méier. Essa arte, que fui adestrada a ver, reconhecer e compreender como tal, estava em outros cantos da cidade. No Centro, na Zona Sul, em espaços determinados como “de arte” e que minha avó paterna frequentava com amigas. O “lugar de arte” estava em alguns poucos e seletos locais que reuniam certas características, algumas das quais enumero aqui, buscando recuperar o olhar da menina no museu, sabendo de antemão que é possível que deixe de fora algo terrivelmente importante:
- uma arquitetura grandiloquente, seja por ser um ícone do modernismo brasileiro, tal como o Museu de Arte Moderna | MAM-Rio; um imóvel imponente do século XVIII, como o Paço Imperial; ou uma mansão majestosa dos anos 1920, como o Parque Lage;
- muitas paredes, quase sempre brancas;
- espaços amplos e muito limpos, ou “artisticamente” sujos (já que a bela sujeira de tintas, telas, pincéis, madeiras e goivas me parecia bem diferente daquilo que eu estava acostumada a chamar de “sujeira”);
- o necessário afastamento entre quem observa a arte e a arte em si: a demanda de reverência ao espaço — e ao objeto — de arte;
- a atmosfera tácita de silêncio contido, a obrigatoriedade e a tensão de colocar à prova todas as regras de etiqueta que haviam sido exaustivamente ensinadas para que se pudesse frequentar, justamente, aquele tipo de ambiente;
- a prerrogativa de nunca, em hipótese alguma, se aproximar ou sobretudo tocar em nada;
- talvez a característica mais marcante do “lugar de arte” admitido como tal: a constante sensação de insegurança ao olhar embasbacada para um objeto e não saber se se tratava de uma “obra de arte” ou não. A pressão por “entender”, por buscar significado na arte. Uma frustração por acreditar que não estava alcançando algo muito importante que todas as outras pessoas estavam percebendo e eu não. E nunca, jamais, perguntar nada, por medo de parecer burra ou ignorante em relação a algo que, certamente, pessoas cultas já deveriam saber. O “lugar de arte” sendo um lugar de opressão.
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Voltar a esse lugar da infância, adolescência e início da vida adulta para dialogar com a exposição Escritas do corpo me fez revisitar muitas dessas sensações, que vivi com grande frequência. Uma certa inadequação, um não pertencimento, um deslocamento físico e uma percepção de inferioridade intelectual captadas por mim enquanto me cobrava um comportamento socialmente aceitável e a compreensão do que queria, afinal, dizer a arte.
Isso tudo acontecia a despeito de eu não poder afirmar que a arte fosse uma estranha à minha família. Meu bisavô era pintor; minha mãe, artista plástica; meu pai, um apreciador das artes visuais e da literatura, assim como meu avô. Eu frequentava uma escola que valorizava o ensino de arte de maneira geral, e tinha acesso a toda uma base de formação que acreditava em sua fruição não como acessória, mas essencial à vida.
Ainda assim, minha enorme insegurança e o constante mal estar nos espaços assumidamente “de arte” eram paralisantes. O medo de falar bobagem. De não me comportar adequadamente. De não responder “certo” quando perguntada o que eu achava de uma obra. Bonita? Desconcertante? Esquisita? Que palavras poderiam ser ditas sobre a arte no “lugar de arte”?
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II
A exposição Escritas do corpo, com curadoria de Viviane Matesco e Daniela Name, foi contemplada pelo edital Sesc Pulsar e ocupa, de 9 de março a 2 de junho de 2024, a galeria de arte do Sesc Ramos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Trazendo uma seleção de obras de Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Letícia Parente e Wanda Pimentel, incluindo esculturas, vídeos, entrevistas e gravuras, a mostra à primeira vista parece pequena, mas apresenta um conteúdo tanto denso quanto politicamente engajado. As peças selecionadas de cada artista trazem críticas à ditadura militar no Brasil, ao papel da mulher na sociedade, ao espaço reservado a uma artista que carregue consigo o signo “mulher”. Ao espaço reservado a uma artista, ponto. Ser mulher e ser artista aparecem como condições conflitantes em muitas das obras, seja na entrevista de Anna Maria Maiolino, nas intervenções sobre o próprio corpo executadas por Letícia Parente, na representação de órgãos humanos de Anna Bella Geiger, ou nas imagens carregadas de Wanda Pimentel.
Realizar essa exposição em Ramos, no espaço do Sesc, é de uma importância imensa. Melhor dizendo: a existência do Sesc Ramos com toda a extensa programação que oferece, entre cursos, esportes, biblioteca, apresentações culturais diversas, incluindo sua galeria de arte, é de uma importância imensa. Sei que é chover no molhado discorrer sobre a ampla relevância do Sesc como fenômeno sociocultural, assim como sobre seu importante papel enquanto espaço de formação e cidadania.
A unidade de Ramos, além de ser tudo isso, se configura, também, como um raro “lugar de arte” na Zona Norte carioca. Um lugar de arte que existe onde outras institucionalidades não chegam. Em meio ao casario e ao comércio do bairro, a galeria no segundo andar do edifício é um espaço pelo qual é preciso passar para se acessarem algumas das salas de cursos da unidade, sendo próximo à biblioteca e a um espaço de convivência, workshops e oficinas. A galeria de arte do Sesc Ramos é o “lugar de arte” que, na minha memória dos tempos de Cachambi e Méier, não estava onde eu estava.
III
Fui ouvir o nome de Anna Maria Maiolino pela primeira vez já na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na UFRJ, na década de 1990, quando assisti uma palestra dela no Auditório Archimedes Memória, situado no terceiro andar do edifício projetado por Jorge Machado Moreira. O nome de Anna Bella Geiger me soava familiar, mas eu não sabia identificar direito sua obra naquela época. Talvez confundisse as duas Annas. Do trabalho de Wanda Pimentel, o mais perto que já tinha chegado, sem o saber, havia sido pela televisão. Algumas obras da artista serviram à caracterização da personagem Heleninha Roitman, uma “artista atormentada” representada por Renata Sorrah na novela Vale tudo em 1988. De Letícia Parente eu simplesmente nunca tinha ouvido falar até a virada do século, ou não tinha prestado atenção o suficiente.
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Nada disso quer dizer que eu nunca houvesse visto nada de tais artistas, mulheres, cujas obras compõem a exposição Escritas do corpo. Significa, tão somente, uma coisa básica e recorrente no sistema em que vivemos (e, porque não dizer, também no sistema da arte): os nomes de artistas homens eram muito mais familiares aos meus ouvidos do que os de artistas mulheres. Ivan Serpa, Franz Weissmann, Van Gogh, Picasso, Richard Serra, Salvador Dalí, Rodin, Monet, Manet, Debret, a lista é longa. Esses nomes povoaram durante anos meu imaginário infantil sobre que era arte. Estavam estampados em quadros, gravuras, lombadas de livros. Apareciam nas conversas. Você soube do fulano que doou um livro assinado pelo Picasso para a Casa de Ruy Barbosa, em vez de vender? Hoje não consigo deixar de achar que o sujeito que passou anos sendo ridicularizado por essa ação estava certo, e todo mundo que dizia o contrário, errado.
O ponto é que, até eu ouvir falar em Frida Kahlo, demorou tempo demais. Camille Claudel, fui ver num filme triste sobre sua vida. Amélia Toledo, quando inaugurou a estação Cardeal Arcoverde do metrô, em Copacabana. Louise Bourgeois, em alguma celebração, talvez de 200 anos da Revolução Francesa. Niki de Saint Phalle ganhou bastante projeção quando alguém, acho que uma criança, fez xixi no interior de uma de suas obras no Paço ou no Museu Histórico Nacional, não me lembro bem. Esses fatos são tão imprecisos quanto a memória que tenho deles, de uma jovem em formação antes da virada do século. Deixo assim porque acho importante manter como registro não necessariamente a acuidade das datas e dos locais exatos, mas do que a minha cabeça se lembra dessas passagens.
Resumindo, a lista das mulheres artistas que conheci tarde demais é, também, extensa. Brasileiras, então, mais ainda.
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IV
As questões que quis trazer para este ensaio passam por inquietações para as quais não tenho respostas, ou pelo menos não as respostas “certas”. Até porque, a essa altura, já aprendi que esperar saber as respostas certas em relação à arte pode levar à paralisia. Ou, pior ainda, à mediocridade. À segurança do “correto”, daquilo que “funciona”.
Escritas do corpo exibe quatro artistas de relevância ímpar para a história da arte brasileira. Cada uma à sua maneira, Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Letícia Parente e Wanda Pimentel desafiaram o status quo e traçaram seus próprios caminhos não com, mas apesar do sistema da arte.
A equipe composta desde a produção, passando pela curadoria, expografia, pelo design e ações de ativação, até a montagem da mostra, corrobora o compromisso de Escritas do corpo com a valorização do trabalho produzido por mulheres na arte brasileira.
V
Quando pergunto sobre o lugar da arte e sobre o lugar de arte, quero questionar também o que é considerado arte. Que espaços, que lugares da cidade, são reconhecidos, afirmados e defendidos como tal? Que tipo de arte se exibe, e onde? Se há hoje um grande movimento que leva a “arte periférica” — guardadas todas as ressalvas a tudo que esse termo carrega de pejorativo no sentido de querer afirmar que uma “arte periférica” não seria tão somente “arte”, configurando, assim, uma arte necessariamente “menor” — para os espaços mais estabelecidos da cidade, como CCBB, MAM, IMS, MAR e afins, invariavelmente na Zona Sul e no Centro, qual seria o movimento contrário? É preciso considerar que a chamada “arte periférica”, ou seja, a arte realizada nos espaços periféricos, nunca se enquadrou exatamente nos “lugares de arte” de que trato aqui. Se a “arte periférica” vem ganhando espaço, ou sendo capturada por uma narrativa de inclusão, esse discurso só pode existir porque se assume de fato que esses espaços vêm sendo historicamente excludentes. Onde estão as iniciativas que levam as exposições do mainstream da arte para a periferia? Tais espaços existem? Seriam desejáveis?
Este ensaio busca, sobretudo, afirmar que a existência de uma sala como a do Sesc Ramos deve ser celebrada. Chega a ser quase ridículo, porque estou falando do mínimo: uma sala com infraestrutura, equipe comprometida, orçamento e projetos selecionados por editais.
Que não haja espaços como esse em mais bairros das zonas Norte e Oeste do Rio é afirmar que o “lugar da arte” não é onde as populações periféricas estão e que seria seu papel se deslocar seja para conhecer, seja para exibir arte.
Essa sala não existia nos bairros da minha infância, adolescência e juventude.