O livro Tia Amélia – o piano e a vida incrível da compositora, escrito por Jeanne de Castro e lançado pela editora Tipografia Musical, resgata a memória de uma figura ímpar no cenário musical brasileiro. Mais do que isso: mostra como Amélia Brandão Nery, imortalizada como Tia Amélia, precisou reinventar a própria vida para poder exercer sua vocação musical, se transformando em um grande exemplo de artista mulher que superou as limitações e restrições impostas pelo machismo.
A pernambucana, nascida em Jaboatão dos Guararapes em 1897, era filha de um casal que tinha a música no cotidiano, o pai gostava de tocar clarinete e a mãe dedilhava o piano como todas as moças de família da época. Amélia foi impedida de seguir a carreira de pianista, apesar de ter aprendido o instrumento aos 4 anos de idade, aos seis já executar um bom repertório e aos doze começar a compor. Aos 17, teve um casamento arranjado com o filho de um fazendeiro próspero e se mudou da casa dos pais para o engenho do marido, o piano em sua vida ficou limitado aos saraus no ambiente familiar.
Nossa história da música no século XIX e início do século XX seguia um padrão eurocêntrico, que apartava os cenários da música erudita e da música popular. Fora desse eixo formado por uma música predominantemente urbana havia a música então chamada de folclórica, as tradições orais vindas dos portugueses e outros povos colonizadores, que aqui se misturaram com a cultura das diversas nações indígenas e as memórias musicais trazidas pelos povos afroconfluentes. Em seus períodos na fazenda, Amélia teve contato com a música reinventada no Brasil pelos povos da diáspora africana. Também ouviu os violeiros e os caboclos do sertão, e essa convivência instigou sua curiosidade sobre a música de tradição oral brasileira e influenciou toda sua produção musical.
Viuvez “de mentira” para poder tocar
Não suportando a vida sem música, tomou a decisão de abandonar o marido e voltar para Recife, para justificar sua situação criou a história de que teria ficado viúva, “mentira” que manteve durante toda sua vida. Conseguiu um emprego na rádio Clube de Pernambuco onde apresentava o programa A roça em que contava casos e executava ao piano arranjos com melodias da tradição popular. Amélia, intuitivamente, se aliava a pesquisadores como Mário de Andrade e Villa Lobos, que fizeram um inventário de temas musicais brasileiros recolhidos por todo o país.
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Em 1930 deixou o trabalho no Recife e fez uma viagem para o Rio de Janeiro, na época capital do Brasil, onde foi reconhecida por seu talento, se apresentando nos grandes teatros e gravando sua obra pela Odeon. Ainda se apresentava como Amélia Brandão. A biografia evidencia como fato marcante o convite de Ernesto Nazareth para um sarau em sua casa. Jeanne de Castro relata que, após ouvir Amélia executar suas composições, Nazareth fez um pedido: “Não deixe o choro morrer”. A compositora aceitou a missão, e a cumpriu até o fim da vida.
Menos encorajador foi o encontro com Chiquinha Gonzaga. A biógrafa lembra, a partir de depoimentos recuperados para a feitura do livro, que a grande maestrina falou das dificuldades e sacrifícios enfrentados por uma mulher na carreira de compositora, problemas que perduram até hoje. Chiquinha teria desejado que Deus protegesse Amélia, e que ela tivesse sorte.
Técnica e repertório inovadores
Mais do que com a sorte, Amélia contou com o desenvolvimento de um estilo muito singular: no piano, sua mão esquerda (a do acompanhamento) emula os instrumentos do choro ou o fraseado do cancioneiro popular, como uma espécie de resposta. A técnica apurada e o ritmo incrível, inovador, fizeram com que a pianista ganhasse notoriedade entre os músicos e na imprensa especializada.
Animada com as críticas positivas, Amélia começou a viajar pelo Brasil. Apresentou-se nos maiores teatros do país e assumindo sua posição de pesquisadora, recolhendo um imenso material sobre a música de tradição oral brasileira. Fez ainda, com apoio do Itamaraty, uma turnê pelos Estados Unidos, Costa Rica e Venezuela e ficou seis anos morando no exterior, se apresentando e divulgando nossa música.
De volta ao país, continuou sua rotina de apresentações até o início da década de 1940, quando sua filha Silene se casou e Amélia foi morar com ela em Goiânia. A compositora então decidiu parar de se apresentar e dedicar-se à composição e estudos. Este momento mostra que não foi à toa que Chiquinha Gonzaga quase a desencorajou a seguir sua carreira de compositora. O recolhimento de Amélia corresponde uma discrepância entre o reconhecimento como pianista e a validação de sua pesquisa musical. Seu imenso trabalho como pesquisadora nunca foi incluído nos registros da história da cultura brasileira. Não resta nada desse período, além de uns poucos fonogramas gravados entre 1930 e 1931; não existem partituras, gravações de apresentações nem estudos sobre o seu trabalho.
Uma segunda vida: nasce Tia Amélia
Em 1953, por meio de Carmélia Alves, a compositora voltou ao Rio de Janeiro e iniciou uma nova fase em sua vida, assumindo o nome artístico de Tia Amélia. Com 56 anos, dizia ter 66, para parecer uma velhinha lépida. Depois da viuvez do marido, ela inventava nova face biográfica para buscar frestas de sobrevivência artística e social.
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A estratégia deu certo e Tia Amélia voltou a se apresentar, recebendo críticas elogiosas e arregimentando uma legião de admiradores entre os quais Ary Barroso e Vinícius de Moraes. Com esse aval Tia Amélia começou a aparecer na televisão, que estava em seus primórdios, até que em 1958 estreou seu próprio programa “Velhas estampas” na TV Rio, onde contava histórias e apresentava suas composições ao piano. O programa foi um sucesso, que continuou na TV Tupi com o título de Tia Amélia, suas histórias e seu piano antigo. As apresentações na TV levaram sua música para toda uma geração de músicos que teve uma influência única, Tia Amélia fazia uma conexão entre o choro tradicional e uma nova geração de compositores que estava surgindo. Egberto Gismonti destaca a importância desse contato em sua formação e como homenagem compôs Sete anéis, dedicada a ela.
Tia Amélia fazia jus à fama que ela quis inventar, a de velhinha animada. Além dos programas na TV e no rádio e apresentações ao vivo, ainda conseguia tempo para visitar as rodas de choro do Rio de Janeiro. Uma das mais famosas era a que acontecia na casa de Jacob do Bandolim, frequentada por músicos como Pixinguinha, Dilermando Reis e Canhoto. Nesse raro registro, Jacob do Bandolim faz a introdução para as peças interpretadas por ela.
Em 1959, gravou um disco com o mesmo nome do programa televisivo onde tocava suas composições. Com o vinil Velhas estampas, recebeu o prêmio de melhor solista e compositora do ano. Em seguida gravou Músicas da vovó no piano da titia e Recordações de Tia Amélia. Dos programas na TV infelizmente não há nenhum registro visual, mas o Instituto do Piano Brasileiro, que realiza um trabalho de resgate da memória musical brasileira, descobriu um áudio da época.
Sua última gravação, em 1980, foi A benção, tia Amélia, a convite do selo Marcus Pereira. O disco registrou 12 composições inéditas.
Em 2020, o pianista Hércules Gomes gravou o disco Tia Amélia para sempre onde interpreta composições da autora ao piano solo, piano/regional e piano/banda. Hércules faz uma leitura com um olhar sensível e transita com desenvoltura sobre as dificuldades técnicas escondidas nas partituras. Cheio de truques mostra uma engenhosidade no entrelaçamento das melodias que fascina o intérprete e o ouvinte, ecos de Chopin e da escola romântica são presentes no desenvolvimento das progressões da mão esquerda e nas harmonias refinadas.
Em Bordões ao luar a famosa mão esquerda de Amélia se faz presente o tempo todo numa composição “cheia de bossas”, como dizia Vinicius de Moraes sobre as músicas dela. Aliás foi o próprio Vinicius quem deu o título da composição.
Chuvisco soa atualíssima na interpretação do conjunto, com destaque para o solo do violão de sete cordas de Gian Correa.
Hércules Gomes ainda fez um trabalho de transcrição e edição das obras num songbook, disponibilizado para download gratuito:
Amélia Brandão/Tia Amélia morreu em 1983 com 86 anos. Sua música atravessou o século XX, sem perder a qualidade e originalidade. É preciso que nos perguntemos sobre as razões para seu apagamento na história da música brasileira. O fato de ser mulher já é um indício, mas Amélia também não teve as obras publicadas durante sua vida. O importante trabalho na TV e no rádio, através do qual formava plateias como uma tia que contava casos e tocava piano, não deve ter sido levado a sério após sua morte, isso apesar da incrível unanimidade das críticas desde a sua estreia no cenário musical.
Felizmente, agora temos acesso ao universo dessa pianista e compositora através do livro de Jeanne de Castro e do piano inspirado de Hércules Gomes.
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Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.