A ideia da editora Companhia das Letras de fazer uma coletânea com 50 poemas de revolta acerta por roçar numa espécie de Zeitgeist convulsivo que toma conta do mundo. No Brasil, desde 2013 estamos envoltos em uma crise que ainda não sabemos direito como e onde começou, tampouco onde vai terminar. Sabemos que houve levantes, jovens tomaram as ruas – alguns foram presos por causa de uma garrafa de Pinho Sol, tratada como arma perigosíssima. E naquela época ainda tínhamos um governo democrático. Sabemos que estamos sendo atravessados por várias lutas que modificam a história das famílias e de outros núcleos da sociedade, caso do movimento LGBT+, dos muitos feminismos, da busca por representatividade da população negra brasileira. Ler a coletânea agora, quando a democracia parece ter se despedido de nós por um tempo, me deu a consciência de que o calor dos anos e meses passados – com as primeiras manifestações e outras posteriores bipolares e um tanto histéricas – passa por um resfriamento compulsório. Mas nele ainda dormem, subterrâneas, as brasas das insurreições, que podem vir à tona como versos murmurados.
Em sua forma escrita, a poesia sempre deu um corpo em carne viva para a memória de palavras faladas e cantadas. Nada mais salutar para os dias que correm, portanto, do que relembrar momentos em que os poemas brasileiros se transformaram em lira molotov, em vozes catalisadoras de diferentes bandeiras. A edição de bolso de 50 poemas de revolta, do tamanho aproximado de uma palma da mão, amplia o aspecto simbólico da coletânea: a palavra como pedra a ser jogada na vidraça, morteiro lançado à explosão.
Sem um organizador nomeado (a seleção é assinada por “os editores”), o livro passeia por poemas já clássicos de Oswald de Andrade (erro de português, capoeira), Drummond (A flor e a náusea, Carta a Stalingrado, Teus ombros suportam o mundo), Mário de Andrade (Descobrimento e Ode ao burguês) e Ferreira Gullar (Não há vagas e Subversivas) e joias não tão incluídas em antologias, caso de Poemas de nosso tempo I e II, de Hilda Hilst; Não digam que fui rebotalho, de Carolina Maria de Jesus; ou Epitáfio para um banqueiro, de José Paulo Paes.
Há ainda boas obras de poetas maduros e em atividade, caso de Armando Freitas-Filho (o belíssimo Corpo de delito – “Escuto a marcha dos colossos/ por cima dos ossos/ por cima dos mapas de mar e grama/ escuto as botas dos passos/ nas poças do corredor/ cada vez mais próximos/ dos calcanhares nus de meu futuro) e Francisco Alvim (Quem fala – “Está de malas prontas? / Aproveite bastante/ Leia os jornais não ouça rádio de jeito nenhum/ Tudo de bom/ Não volte nunca”). Potências de gerações mais jovens não ficaram de fora: estão no livro Angélica de Freitas (porto alegre, 2016 – “agora a colher cai da boca/ e o barulho de bomba é ali fora/ e a polícia pra cima dos teus afetos/ munida de espadas, sobre cavalos”) e Bruna Beber (Barragem – “deve ser perigoso/ esse gosto recorrente de incêndio na boca/ mas não há saliva para apagar/ e não há saliva que apague/ por isso falo pouco), entre outros.
Seleção brilha quando ousa mais
As virtudes do livrinho – o chamo assim de forma elogiosa – aparecem justamente quando ele consegue ser tão caloroso quanto o bom uso do diminutivo, signo de intimidade em nossa língua. E isso ocorre especialmente quando o leitor consegue ser surpreendido pelos já citados autores mais jovens ou pela inclusão de poetas reconhecidos, mas com algumas de suas obras menos recorrentes, fazendo com que a seleção tome um caminho enviesado, uma trilha na trincheira .
Chamo a atenção para as presenças de Torquato Neto e Waly Salomão, este último com o épico Tarifa de embarque (“Retire da tela teu imaginário inchado/ de filho de imigrante/ e sereno perambule e perambule desassossegado/ e perambule agarrado e desgarrado perambule/ e perambule e perambule e perambule./ Perambule/ – eis o único dote que as fatalidades te oferecem. / Perambule -as divindades te dotam deste único talento.”) O poema ganha novas possibilidades de leitura a partir de tudo que tem acontecido na Síria – fatos que o poeta morreu sem ver.
Fui capturado, ainda, pela leitura de Conceição Evaristo e suas Vozes-mulheres, em que a revolta vai sendo curtida e cada vez mais vocalizada pelas gerações femininas de uma mesma família; pelo respiro não-óbvio de Socorro, de Alice Ruiz, popularizado ao se transformar em canção com música de Arnaldo Antunes; pelos versos sem título de Ana Cristina César: “Minha boca também/ está seca/ deste ar seco do planalto/ bebemos litros d´água/ Brasília está tombada/ iluminada como o mundo real/ pouso a mão no teu peito/ mapa de navegação/ desta varanda/ hoje sou eu que/ estou te livrando/ da verdade.
Talvez pela ausência de um organizador dedicado vertiginosamente à tarefa de selecionar as obras, falta ao livro uma identidade curatorial clara, seja pela afinidade entre os poemas arranjados em uma sequência, seja pela coragem de ampliar as escolhas mais ousadas na publicação. Mesmo que os poemas de Gullar, Drummond, Vinicius, Oswald e Mario reunidos no livro sejam inquestionáveis em suas qualidades, havia outros menos convencionais e talvez mais surpreendentes e carismáticos para o leitor.
No caso de Drummond, em especial, fica clara a opção por obras em que a política é abordada de forma literal, e o poeta teria fartas alternativas, como A morte do leiteiro. São ainda mais radicais, no mau sentido, os casos de Vinicius de Moraes (presente com o lindo, mas batido Rosa de Hiroxima e com Operário em construção) e Paulo Leminski (dentre tantas obras possíveis, a seleção aposta em para a liberdade e luta, poema que talvez fosse a primeira escolha, impensada, de qualquer um).
No prefácio, “os editores” lembram que toda poesia pode ser política e que fazer poemas é, em si, um ato de resistência. Talvez o livro cometa pequenos deslizes justamente ao relutar na busca de um escopo mais sutil e abrangente, que comprove esta declaração de intenções. Ainda assim, os bônus são bem maiores que os ônus e 50 poemas de revolta é, em seu conjunto, uma leitura mais do que adequada para os dias que correm.
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Imagem no alto do texto:
Escritora Hilda Hilst. Data e autor desconhecidos. Daremos o crédito caso seja requisitado.
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Corpo e resistência:
Esta resenha faz parte da série, que já publicou o ensaio Incorporo a revolta, de Daniela Name. Leia aqui.
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Jornalista, mineiro, rato de biblioteca.