A versão reduzida deste texto foi publicada na capa do “Segundo Caderno” de O GLOBO no dia 2 de agosto de 2018, celebrando a obra de Antonio Dias (1944-2018) no dia seguinte à sua morte (leia aqui). A Caju publica agora o texto integral.
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A obra de Antonio Dias é uma possível síntese para a história da pintura e das transformações que ela sofreu e causou ao longo dos últimos cem anos; também é um panorama das experiências mais relevantes que a arte contemporânea apresentou ao mundo. O imenso legado deixado pelo artista paraibano aprofunda e redimensiona as rupturas propostas por Matisse, Picasso, Magritte e outros grandes nomes das vanguardas do alvorecer do século XX. Por outro lado, é notável e importantíssima a influência da obra de Dias nos processos criativos de artistas mais jovens, em especial Leonilson, Leda Catunda e outros artistas da chamada “Geração 80”, além do impacto de sua obra em todos os pesquisadores e criadores de mapas, arquivos e territórios na arte contemporânea brasileira.
Nos anos 1960, o artista e os amigos Rubens Gerchman, Carlos Vergara e Roberto Magalhães fizeram parte do movimento que seria conhecido como Nova Figuração. Um grupo não-programático, mas que manteve investigações em comum por boa parte da década. A principal delas, a reaproximação renovada da pintura figurativa, alimentada por uma iconografia vinda de manifestações populares como o cordel e o futebol, mas também de uma cultura de massa já bastante desenvolvida no país. O artista e sua geração fizeram a descoberta da multidão, de uma vida aglomerada e veloz nas cidades que ainda não tinha feito parte da obra de arte brasileira na forma radical e profunda como será vista nas obras deste grupo.
Obra seminal de Maiolino é um dos diálogos mais potentes
Outra artista importantíssima para este momento é Anna Maria Maiolino, e talvez seja com ela que a obra de Dias estabelece os mais ricos e profundos diálogos neste momento de sua carreira, em que, além da iconografia urbana, ele se dedica um novo entendimento da representação do corpo na pintura, que também passa a compreender a própria pintura como um corpo. Os estufamentos que o artista insere na tela, memória de órgãos e entranhas e vizinhos do Glu glu glu (1967) de Maiolino (clique aqui para ver), comprovam isso.
Este começo será profundamente marcado pela cultura de massa, fazendo com que a arte braisleira tenha características bastante peculiares em relação à arte produzida pelos outros países latino-americanos do mesmo período. Isso se explica em parte pelo fato de que o Brasil já era dono de um parque gráfico muito superior ao de seus vizinhos, criando uma enorme cultura de publicações e revistas dos mais variados assuntos entre os anos 1960 e 1970. Paralelamente, é o momento em que a televisão se enraíza como linguagem, inventando novas narrativas para as transmissões esportivas, especialmente das partidas de futebol, e para a dramaturgia, com o reconhecimento e a explosão das telenovelas.

Aproximação com a ‘Pop Art” gera análises equivocadas da obra
O ambiente brasileiro atravessa e influencia não apenas a obra de Dias, mas as de Gerchman, Nelson Leirner, Wesley Duke Lee e Geraldo de Barros, entre tantos outros artistas importantes para a época. Por conta disso, esta geração tem sido continuamente taxada como a expoente de uma “pop art à brasileira”, mas há inúmeras distinções entre o trabalho realizado aqui e as obras criadas por norte-americanos como Andy Warhol (1928-1987) e Roy Lichtenstein (1923-1997). A Nova Figuração está inserida em um contexto sócio-político de um país latino-americano que vivia sob uma ditadura: entre 1965 e 1968, anos fundamentais para o trabalho dos artistas do grupo, já havia a percepção de que o estado brasileiro era uma máquina censora, torturadora e assassina.
Na obra de Dias, a atmosfera opressora do país vai se misturar às suas referências nordestinas e às investigações a respeito da própria pintura. A emblemática Notas sobre a morte imprevista (1965) é um bom exemplo. O contorno preto é uma espécie de acolchoado e a forma inserida pelo artista na parte inferior do quadro também tem volume. Neste e em outros trabalhos do período, o artista mistura violência urbana, repressão política e sexualidade, além da estética dos quadrinhos. É um trabalho de forte carga narrativa, que insinua uma história a ser contada, mas jamais a entrega linearmente. Vemos os andrajos da história, nas figuras da tela, assim como vemos os despojos de um corpo, nos volumes estofados que o pintor acrescenta ao trabalho. Se na Pop Art Warhol reproduz a foto do desastre de automóvel ou o retrato da celebridade N vezes, reafirmando assim a imagem por ela ser mais da mesma, Dias desdobra um acontecimento em outros tantos, tornando a sua apreensão menos imediata e mais elíptica.

Notas sobre a morte imprevista parece apontar ainda para questões que serão desenvolvidas posteriormente em sua trajetória. Esta história em quadrinhos despedaçada traz uma marca em “X”, que a divide em quatro seções, como se fosse, além de um story board, um mapa. O “X” e a cruz presentes na obra, somados à possibilidade de enxergá-la como uma como uma rosa dos ventos, já trazem o fio que levará Dias para um outro tipo de investigação.

Na década de 1970, cria a série Anywhere is my land, que sobrepõe uma grade esquemática – o grid, tão caro aos modernos – à indeterminação das galáxias. Além de falar de si mesmo, e de um exílio em tempos difíceis política e economicamente para a maioria dos artistas brasileiros (a esta altura, ele já morava em Milão, depois de passar pela França), com Anywhere is my land Dias somou sinais gráficos, retículas e palavras em um mapa virtual, construindo um território subjetivo, que tem mais a ver com tempo do que com espaço. A land que pode estar anywhere – o lugar que pode ser em qualquer em qualquer lugar – é o território contido em nossos lados de dentro. E tem a ver com a cultura, suas fabulações e pertencimentos herdados, transformados, compartilhados. Anywhere is my land se relaciona com outros trabalhos com palavras, caso de History (1968-69), objeto formado por uma caixa de plástico transparente, onde se lê a palavra “history” gravada em vermelho na parte de cima. Dentro do invólucro quadrado, vê-se os resíduos recolhidos pelo artista nas ruas da capital francesa durante as barricadas estudantis do Maio de 1968. Se é perturbadora a constatação de que Dias sabia que se tratava de história, no momento em que ainda participava ativamente daqueles acontecimentos, perturba ainda mais sabermos que o registro da história nos chega nas forma de ruínas.
Trocas com Iole são notáveis na produção dos anos 1970
As ideias contidas em Anywhere is my land reverberam em trabalhos recentes e são revisitadas e radicalizadas em dois outros trabalhos-síntese para entender 0 percurso do artista: Faça você mesmo: território liberdade (1968) e País inventado: Dias-Deus-dará (1976).

Antes disso, porém, é importante registrar que, nestes anos 1970, o diálogo intenso com a obra de Iole de Freitas já se faz notar com muita força. Primeira mulher de Dias, a artista é uma das pioneiras da experimentação em vídeo, a artista foi e segue sendo uma pesquisadora inquieta das questões conceituais e das possibilidades de criação de espaço a partir do enfrentamento com os materiais. Em um meio de arte ainda profundamente marcado por uma visão masculina, tanto no que diz respeito aos artistas quanto à crítica, creio ser importante reconhecer a reverberação e influências recíprocas entre estes dois grandes criadores. São de Iole as fotos do rosto do parceiro no álbum Kiss n´hiss (1972) e é notável a reverberação das inquietudes da artista na série de papéis do Tibet e em todo o trabalho cartográfico do então companheiro.
Faça você mesmo: território liberdade é um conjunto da adesivos com signos (cruzes, cantos, a forma de “T” insunuando bifurcação) e o título do trabalho. Os colantes podem ser usados de qualquer maneira por quem quiser experimentar a obra, deixando à mercê da imaginação de quem manipula o projeto a construção desse “território liberdade”. O trabalho era o primeiro dos dez diagramas incluídos por Dias no álbum Project book – ten plans for open projects, que teve texto de apresentação de Hélio Oiticica.

País inventado: Dias-Deus-dará leva a geometria contida no perímetro do território para o perímetro da bandeira. Dias subtrai um retângulo de dentro do retângulo principal, criando uma imagem que passará a integrar muitos trabalhos posteriores ao País inventado. A indeterminação territorial e geográfica, migrada para o campo da bandeira, passa a falar também de uma incompletude na ideia de estado nacional, daí o título do trabalho se referir a um “país inventado”, que será dado por suas possibilidades de caminho: o título informa que tanto “Dias” quanto “Deus” podem “dar”.
Dias, Antonio; Dias, o tempo; Dias, fronteira. Pintor da multidão, cartógrafo da liberdade, o artista permanece como um imenso território da arte brasileira a ser reconhecido e visitado.
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O olho nas ruas e espaços culturais do Rio e de São Paulo, sempre clicando e filmando cenas e eventos com rara sensibilidade para as redes sociais da revista.
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