Ao folião Roberto Souza Leão, que só existe porque existe o Bola
Um dia o telefone tocou: quer dar uma olhada no acervo do Cordão da Bola Preta?
É mais ou menos como perguntar se uma criança quer entrar em uma máquina de fazer pipoca. É claro que eu queria dar uma olhada no acervo do Bola. Eu queria mesmo era morar dentro do Carnaval, afinal, a vida é isso que acontece entre um mês de fevereiro e o outro. Não sendo possível, passar uma tarde vendo as antigas fotografias da agremiação, lendo os convites de bailes a fantasia e desfolhando velhos estandartes já estava de bom tamanho.
Nascida no Carnaval de 1981 e renascida em todos os seguintes, às vezes morta pelo caminho, o Bola sempre foi a referência de partida do meu Carnaval (mesmo nas tantas vezes em que não fui). O “valendo” esperado desde o início do verão. O sábado muito cedo, e muito quente, a roupa preto e branca separada de véspera, a ansiedade do primeiro dia de folia quase a estragar tudo: eis o Bola Preta, o ponto mais distante do fim de qualquer Carnaval.
E agora uma chance de viajar por toda sua história.
Fui para Santa Teresa. As caixas estavam em cima de uma estante, em um apartamento no topo de uma rua, no lugar mais alto em que poderiam estar, etéreas, como resguardadas dos perigos da cidade baixa. Era onde morava a pesquisadora Elke Gibson, que naquele dezembro de 2011 terminava de revisar o material para uma exposição sobre o Bola Preta a ser inaugurada no mês seguinte, motivo do telefonema a esta repórter de temas cariocas.
Naqueles mais de 90 carnavais metidos em pastas de polietileno azul, estavam as primeiras fotografias dos fundadores, K. Veirinha, Chico Brício e Fala Baixo, os pais da criança que se não chora, não mama. Ora aparecem entre outros associados, posicionados como num time de futebol; ora fantasiados a rigor para os bailes de gala. Sempre com o caprichado estandarte ao centro, que se em 1919 equilibrava geometricamente o formato triangular da flâmula com a estampa das bolas pretas, numa bela peça modernista, em 1930 já ostentava no lugar a figura de uma mulher seminua, segurando… uma bola preta. O Carnaval ali era seriíssimo, dizia entrelinhas o acervo, até quando era fanfarrão.
Em meio às fotos, estava o estatuto que regulamentava a entrada de novos integrantes, chamados de “sacerdotes”. O ofício original, amareladinho. Segundo o documento, só poderia se filiar quem fosse “bom de copo”, talento que deveria ser testado com um “vasto regabofe”; quem fosse alegre; quem fosse maior de 21 anos; e quem provasse que trabalhava. O Bola não admitia “vagabundos”. A maioria dos sócios era composta por comerciantes e remadores do Botafogo, daí o alvinegro da agremiação. Nos rituais de batismo, o “sacerdote” deveria entoar o seguinte hymno: “Hip, hip, hip, urra! Casca, casca, casca, dura! Sapo, sapo, sapo, pemba! Bella, bella, bella, vista! À saúde da… mulher! Foge! Se eu te agarro, se eu te pego, se eu te pilho! Vou-te à Bola Preta e te faço um filho!”
Passando no trote, o próximo passo era ganhar uma carteirinha. As que estão intactas no acervo, coisa de vinte carteirinhas, só resistiram pelo seguinte motivo: alguns foliões as deixavam direto no clube para evitar que as famílias soubessem do seu conluio com a boemia.
Impossível não se encantar pelo apuro do material gráfico da agremiação ao longo de sua história. Tudo era ricamente ilustrado, carteirinhas, informes corriqueiros publicados em jornais, brasões, croquis de fantasias, letras de marchinhas distribuídas ao público, convites personalizados dos bailes a fantasia. Esses eram hilários. Um deles trazia a seguinte mensagem cifrada ao lado da figura de um bufão pintado a bico de pena: “Então ficamos assim: uma colher das de sopa de duas em duas horas e não tem dieta, sentindo-se mal telefone-me: 2-9135. Scheriff: Fala Baixo. Secretário: Gengiva”. O telefone era o da sede Cordão. E ali estava o segundo recado cochichado do acervo: o Carnaval do Bola cura qualquer moléstia.
Outra prova de esmero estavam nos “livros de ouro”, as pequenas cadernetas onde se anotavam a arrecadação das mensalidades dos associados. Na década de 40, levavam nas capas belíssimos desenhos de ricas tintas e motivos carnavalescos, assinados por um artista do qual ninguém sabe muito mais do que o pseudônimo, Potoca. No baú alvinegro, há um grande mistério colorido: quem, afinal, era Potoca? Fica aqui o apelo, caso algum leitor queira elucidar a charada. Há uma pista: dentro dos mesmos livros de ouro, um certo “Palhares” às vezes assinava Palhares/Potoca. No entanto, no dicionário, “potoca” é o mesmo que mentira, burla, embuste, fraude.
No meio do material, uma relíquia: um exemplar do Correio da Manhã de 25 de fevereiro de 1928 com a nota de falecimento de “Zé Pereira”, que muitos pensam ser apenas uma gíria oriunda de alguma lenda de Carnaval. Pois Zé Pereira de fato existiu. José Pereira foi um errante daqueles que circulavam pela Cinelândia sem eira nem beira, e que ganhavam uns trocados tocando bumbo nos blocos. Apesar de querido pelos foliões, morreu praticamente como indigente em pleno Carnaval. “Pela madrugada de hoje, victima de uma syncope cardíaca, faleceu, em frente ao Theatro Municipal, o nosso estimado amigo Zé Pereira (…). O seu enterro será feito hoje, às 5 da tarde, às expensas da policia, saindo o féretro do necroterio para a valla comum. O Cordão da Bola Preta fará depositar uma coroa de flores naturaes sobre o tumulo do extincto, orando, nessa occasião, o sr. Jamanta, que dirá das suas virtudes cívicas e moraes”.
Bola sempre se preocupou em registrar sua história
Havia uma atenta preocupação com o registro daquela história. Se hoje em dia muitos blocos não fazem ideia de onde estão suas primeiras fotografias, suas atas de fundação (?) ou letras de marchinhas – pesquisadores do carnaval sofrem com essas caixas de sapato que nos oferecem com uns minguados recortes de jornal, as quais os foliões chamam de acervo – o Bola Preta já etiquetava e legendava tudo no verso de cada fotografia. A lápis. Assim, sabemos que no Carnaval de 1961 foi o Cordão da Bola Preta o primeiro bloco de carnaval a dar também a mulheres o título de Rei Momo, adaptando para “Rainha Moma”, ou que no carnaval de 1926 algumas músicas foram censuradas pela Polícia Militar de serem executadas nos desfiles, como “Mulata sae do portão” ou “Bahiana olha pra mim”. A polícia proibiu até o uso do termo “fuzarca” nas canções, uma criação do bloco. É graças a esses documentos que se sabe que a agremiação teve mais problemas com a República Velha e o Estado Novo do que com a ditadura militar. Alguém comenta na sala do apartamento, onde examinávamos as caixas: “Por baixo da fantasia do Exército, provavelmente eram todos sacerdotes…”.
E do baú pululavam mais fotografias, com cada vez mais gente pululando o Carnaval. O de 1978 foi bastante registrado, quando o Bola comemorou 50 anos. À frente da banda, de saiote branco com bolas pretas, Abolino e Braguinha, conhecidos à época como os foliões mais antigos do bloco, puxavam o desfile numa alegria infernal, numa alegria infernal.
É quando olho as fotos com mais atenção. De repente aquela memória coletiva vai se embaralhando com as lembranças pessoais, essa viagem no tempo que só uma boa velha caixa de papeis antigos é capaz de proporcionar. Foi exatamente naquele cortejo de 1978, contou-me certa vez um amigo, o Roberto Souza Leão, folião bola-pretense retinto, que ele começou a nascer. No encontro entre a colombina paraense Maria Dolores e o pierrô carioca Roberto, sua mãe e seu pai, provavelmente perdidos ali entre Abolinos, Braguinhas, Rainhas Momas, “sacerdotes” e Potocas, vá saber. “Se eu te agarro, se eu te pego, se eu te pilho! Vou-te à Bola Preta e te faço um filho”, não era a sina?
E o filho estava feito.
Autor
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Jornalista e doutoranda do programa de Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense, é uma das autoras da coletânea de crônicas "O meu lugar" (Mórula) e de "Vem pro Bola, meu bem", livro que reuniu histórias do centenário do Cordão do Bola Preta.
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Jornalista e doutoranda do programa de Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense, é uma das autoras da coletânea de crônicas "O meu lugar" (Mórula) e de "Vem pro Bola, meu bem", livro que reuniu histórias do centenário do Cordão do Bola Preta.