1. A coisa mais terrível que eu vi na vida parecia um tronco de árvore, mas era um homem. A casca ressequida se contorcendo em texturas indistinguíveis, matéria amorfa desbeiçando-se em sulcos, tal e qual madeira viva. Quando ao lado dele avançou o chevette dourado que meu namorado da época dirigia, sem habilitação, é que pudemos perceber que daqui ou dali, na massa carbonizada e compacta em que havia se transformado o corpo morto, talvez pudesse ter existido um olho ou uma boca. Na segunda metade dos anos 1990, era frequente que naquela rua do subúrbio carioca, ligação entre o muro de pichações sobrepostas da linha do trem e a avenida escura, corpos irrompessem no meio da noite, trazidos pela vaga de uma guerra tão pungente quanto sinuosa.
2. Essa imagem me retornou algumas vezes durante o carnaval de 2018. Foi ela que esteve à espreita entre pernaltas com coroas cintilantes, jovens em saias de tutu e maiôs de lantejoulas, corpos salpicados de purpurina se esgueirando entre si. Numa de suas crônicas, João do Rio descreve o diálogo com um amigo, enquanto tentam atravessar a turba carnavalesca que toma a Rua do Ouvidor. O cronista está aflito: aquela loucura lhe provoca repulsa. Seria possível “louvar o agente embrutecedor das cefalalgias e do horror?”. O amigo responde: “Eu adoro o horror. É a única feição verdadeira da humanidade. E por isso adoro os cordões, a vida paroxismada, todos os sentimentos tendidos, todas as cóleras a rebentar, todas as ternuras ávidas de torturas”.
3. Paroxismos, paradoxos. Há algo de fascinante e arrebatador na maneira como ainda hoje o carnaval de rua, brecha para essa vida paroxismada, vai tecendo itinerários improváveis pela cidade, subvertendo a cartografia habitual, a ordem autoritária que rege os espaços. Enquanto a rua em convulsão parece “arlequinar o pincho da loucura e do deboche” e as multidões correm “zabumbando, chocalhando, berrando, arrastando a apoteose incomensurável do rumor”, a cidade — efetivamente doente, já naquele carnaval de João do Rio — fulgura mais viva. Paradoxos: há algo de perturbador em constatar que, nos blocos e cordões do carnaval de 2018, berra-se menos. A cantoria não é enlouquecida. A dança é tímida, cortejo ora espremido em si mesmo, ora correria desvairada. O incêndio, impossível. A transgressão que irrompe é a da burla que se quer contestatória, mas que também carrega em sua essência o espectro da exclusão. O segredo ronda os blocos — apenas os incluídos, apenas privilegiados irão saber a hora e o local do cortejo. O corpo, gesto político, reivindica sua potência em nudez, em irreverência e troça. E no entanto a maioria dos corpos desnudos reproduz o imaginário de beleza que norteia e oprime a vida em nossos dias. Seios pontiagudos e firmes, coxas torneadas, torsos de músculos desenhados. Gordura, flacidez, olheiras, rugas, bocas desdentadas, varizes, estrias, unhas enegrecidas, cicatrizes e purulências, a carne ossuda ou desmesurada, cansada e brutalizada apenas ronda à deriva, oculta, apartada da festa. Refiro-me, claro, aos blocos pelos quais pude flanar, concentrados na região central e na Zona Sul. Os mesmos que ganham a atenção da mídia, os mesmos que acalentam a construção de uma imagem brejeira e inventiva para o carnaval de rua carioca.
4. Georges Didi-Huberman levou da Polônia três pequenos pedaços de tronco, lascas de bétulas, colocou-as sobre uma folha de papel em branco e a partir de sua observação redigiu um ensaio sobre o que o olho vê e o que não vê, sobre escavar para inquirir espaços soterrados e tempos esboroados, sobre se esconder para ver: os campos de extermínio de ontem, o atordoo de hoje. A cultura — mesmo em sua dimensão puramente estética — é, também, lugar de barbárie, lembra o filósofo francês. As cascas das árvores testemunharam o genocídio, e também a indiferença cúmplice. Quem caminha hoje pela clareira de Birkenau que abrigou um dos crematórios onde milhares de corpos foram incinerados, depara-se com uma paisagem tranquila. É um discreto museu a céu aberto, onde inscrições e documentos balizam a memória histórica do horror. Vez ou outra, porém, na orla do bosque de bétulas a terra ainda regurgitava, até há pouco, vestígios das chacinas: lascas e fragmentos de ossos. Os curadores do museu decidiram, então, aterrá-la.
5. À uma hora da manhã da quarta-feira de cinzas, uma multidão de jovens ocupa a Praça da Bandeira. Não há colombinas, pierrôs, piratas ou odaliscas, fantasias agora démodé. Os trajes são estilizados, adeptos de uma moda própria, insinuar traiçoeiro entre despojamento e glamour de inspiração circense. As peles reluzem em glitter, em tinta, em apetrechos de LED, em cordões de lâmpadas. A fantasia de índio é inapropriada, coibida. Não soa perturbador, porém, o “#metoo” desenhado em batom no ombro da moça — violência estilizada, afinal. Violência que parece sair das sombras não para ganhar luz, mas sim para se situar em cena, postar-se sob o feixe de quem vê. Violência que se torna pele. O protesto autocentrado, a referência cool, a insurgência reproduzida em tempo real. Uma multidão em busca de purpurina biodegradável, no afã de não contaminar rios e mares com seus resíduos de carnaval, mas que não se incomoda com o trânsito interrompido e com os corpos embaciados, exauridos, desencantados, aflitos dentro dos ônibus parados, invisíveis.
6. Na quarta-feira de cinzas de 1943, uma sessão do cinema Engenho de Dentro projetava imagens de outros carnavais. Os espectadores levaram latas velhas e improvisaram um batuque. Logo soou o alarme de incêndio, que era falso: apenas pretexto para encerrar a desordem. Os foliões então saíram pelas ruas do bairro, alvoroçados, cantando e batucando, reivindicando seu direito à euforia. Nascia o bloco Chave de Ouro, que durante muitas décadas foi reprimido com violência pela polícia. Quanto mais forte era o conflito entre policiais e pândegos, mais ruidoso era o folguedo no ano seguinte. Outra versão para a sua origem relata que a turba começou a se formar pelos foliões que haviam sido recolhidos às delegacias durante o carnaval. Soltos na quarta-feira de cinzas, ganhavam as ruas tomados pela chama da festa não vivida. Iam à forra, desafiando as autoridades e a igreja, que proibia cortejos carnavalescos após a terça-feira gorda. Gozo e sofrimento, repressão e insurgência: o carnaval e seu enlace com a morte.
7. O que acontece quando a teatralização da vida em seus extremos, que é a essência da festa de Momo, ganha outra camada de teatralização, encenada numa felicidade estática em vez de extática, uma felicidade interrompida constantemente pelas poses para o celular, felicidade obrigatória, monitorada on-line, tornada matéria de distinção e de prestígio? Quando a cidade abandonada e invisível, a cidade sufocada onde desembocam os corpos de sua guerra não é mais a cidade que vem à tona em seu ímpeto de rebentar, de se fazer ver, de espalhar um incêndio que, durante três dias, vivifica em vez de apagar?
8. Diz o personagem de João do Rio: “Mas o Carnaval teria desaparecido, seria hoje menos que a festa da Glória ou o ‘bumba-meu-boi’ se não fosse o entusiasmo dos grupos da Gamboa, do Saco, da Saúde, de S. Diogo, da Cidade Nova, esse entusiasmo ardente, que meses antes dos três dias vem queimando como pequenas fogueiras crepitantes para acabar no formidável e total incêndio que envolve e estorce a cidade inteira. Há em todas as sociedades, em todos os meios, em todos os prazeres, um núcleo dos mais persistentes, que através do tempo guarda a chama pura do entusiasmo. Os outros são mariposas, aumentam as sombras, fazem os efeitos.”
9. Às onze da noite de segunda-feira de carnaval, num ponto de ônibus da Zona Sul, uma mulher se esforça para arrastar o carrinho com o isopor ainda cheio de água do degelo. É negra, gorda, os pés inchados, a expressão intercalando júbilo e raiva, expectativa e deboche, numa complexidade coruscante, num carnaval íntimo e desmesurado, clandestino e real. Seis ou sete homens, também negros, também ambulantes, se aproximam aos poucos, ouvem o lamento furioso da mulher e se calam, fantasmagóricos, cansados. Depois a ajudam a esvaziar o isopor e a separar a carga restante. Um deles está bêbado e ri um riso de poucos dentes. Outro ensaia o movimento de se sentar ao meu lado no banco, mas hesita. O que vê em meus olhos? O que eu lhe digo, em silêncio? O que eu própria vejo nele? Grupos de jovens passam ao largo, estridentes, dispersando-se ao fim de mais algum bloco. Interfaces sobrepostas de uma mesma cidade. Texturas indistinguíveis, já ressequidas. Cascas, películas, sedimentações que se avolumam. Quais resíduos de guerra e de êxtase cada uma carrega? Quem não está nas ruas assiste pela TV à teatralização do horror que, súbito, parece ganhar foco. E no entanto pode o horror ganhar foco? De quem é, afinal, a pele oferecida à sua avidez? De quem é a cidade que vive — há tanto e tanto tempo — o seu rebentar?
10. A quarta-feira de cinzas dá início à Quaresma, período de penitência para a tradição cristã. É tempo de jejum, de abstinência, de austeridade. As superfícies se encerram em penumbra. Busca-se a purificação, à espera de um deus que ressuscite. No Rio de Janeiro, o começo da Quaresma de 2018 marca também o começo da intervenção militar. O ciclo cristão ampara o jogo de imagens que sustenta a violência implícita na medida: a cidade será purificada, prometem. A fase é de sacrifício. Por trás dele, a salvação de um deus que está por vir.
11. Caminhando em Birkenau, Didi-Huberman constata que, mesmo que à primeira vista quiséssemos acreditar que a morte foi embora, o que ocorre é justamente o contrário. Ele observa as superfícies, observa o lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos: “água adormecida que exige de nosso olhar um sobressalto perpétuo”. Há no mundo imagens oníricas. Há imagens pessoais, íntimas. E há imagens que são atos coletivos. Como há superfícies que transformam o fundo das coisas ao redor. Carnaval, festa das superfícies: a audácia de exteriorizar o que é velado. Uma cidade inteira expondo suas chagas ao sol. Uma cidade inteira tornada pele, com fúria e lascívia, pesar e dor. Mas ainda hoje?
12. Didi-Huberman: “Podemos pensar que a superfície é o que cai das coisas: que advém diretamente delas, o que se separa delas, delas procedendo, portanto. E que delas se separa para vir rastejando até nós, até a nossa vista, como retalhos de uma casca de árvore. Por menos que aceitemos nos abaixar para recolher alguns pedaços.”
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Referências:
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Tradução: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas. Organização de Raúl Antero. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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Jornalista e escritora.