Filme da diretora com o fotógrafo JR une ficção e documentário para, através das relações entre rostos (“visages”) e cidades (“villages”), falar do poder da imagem
“É estranho nossos caminhos não terem se cruzado antes”, afirma cineasta belga Agnès Varda, expoente da nouvelle vague que beira os 90 anos de idade, sobre seu parceiro JR, fotógrafo francês de 30 e poucos anos, em um dos primeiros minutos do filme Visages, villages, que concorreu ao Oscar de melhor documentário, transformando Varda na pessoa mais velha a receber uma indicação. Seu documentário acabou perdendo para Icarus e sua esmagadora campanha feita pelo Netflix, mas é um dos melhores filmes da competição em 2018, e ainda está em cartaz no Rio de Janeiro, em São Paulo e maiores cidades do país.
Visages, villages é sobre encontros e memórias. Varda e JR, codiretores do filme, se aventuram pela França em um caminhão, fotografando pessoas, animais e paisagens. Posteriormente, as imagens são impressas no próprio caminhão, em grandes formatos, e coladas em espaços públicos, formando grandes murais. A dupla coleta histórias e imagens pelo caminho e elas vão parar em paredes, muros, containers ou qualquer suporte que se conecte de alguma maneira com a imagem, criando uma interferência na paisagem e um jogo entre corpo e arquitetura, que resulta numa afirmação de identidade local.
Em seus primeiros minutos, o filme apresenta encenações de possíveis encontros entre a dupla de diretores: na estrada, no ponto de ônibus, numa padaria, numa danceteria. Tais encontros nunca ocorreram, embora antes de se tornarem parceiros os filmes de Varda tenham marcado JR, que por sua vez encantou tantas vezes Varda com suas fotografias. O espectador pode pensar se tratar de uma ficção cujos protagonistas são Varda e JR – o que não deixa de ser verdade, já que a dupla é enquadrada pela câmera durante grande parte do filme e sua presença física conduz a narrativa. Mas logo a encenação dá lugar à documentação das histórias que surgem a partir do encontro real da dupla, que sai em busca de outros encontros com desconhecidos, modificando ou reforçando a relação dessas pessoas com a paisagem onde vivem.

Filme homenageia Bresson e Godard
Esse encontro entre duas gerações, que viveram diferentes experiências com a imagem, mescla olhares diversos e resulta numa crítica singular à relação do sujeito com a imagem na contemporaneidade. Há a subversão de mídias publicitárias, o cartaz e o outdoor, que, em vez de serem utilizados para vender um produto, adquirem função poética e afetiva. Além disso, em um tempo de selfies, Instagram e Facebook, onde a fotografia é banalizada e utilizada de forma excessiva, a dupla de diretores resgata a ideia da fotografia como um objeto de memória e imortalização de um momento. Contudo, não deixam de flertar com sua efemeridade e com a morte, como no momento em que uma imagem é destruída pela maré apenas um dia após ser colada numa praia. A cena que surge em seguida mostra a dupla visitando o túmulo do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson e cria um elo com a fala de Varda na cena anterior, quando se depara com o vazio deixado pela imagem levada pela maré: “a imagem havia desaparecido, nós também iríamos desaparecer”.
Visages, villages documenta o processo criativo da dupla em seu trabalho de intervenção urbana e apresenta ao espectador histórias comuns sobre pessoas comuns, mas também diz muito sobre a memória de seus criadores, como no momento em que Varda cria um cartaz com uma foto que tirou na década de 1950, ou quando JR fotografa os pés de sua parceira e cola a imagem sobre um trem, que irá a mais lugares do que ela jamais conseguirá ir, como afirma o fotógrafo, propondo um jogo semiótico. Há momentos de quebra da narrativa, que mostram a relação da dupla em momentos cotidianos e íntimos, como uma visita que fazem à avó de JR, que tenta lembrar-se do apelido de infância do fotógrafo, ou quando correm pelo Museu do Louvre em uma homenagem a Jean-Luc Godard e seu filme Bande à part. Cenas que, no entanto, não deixam de falar sobre memórias.
Após tantos encontros, o filme se encerra com um desencontro entre a dupla de diretores Godard, após uma viagem frustrada à casa do diretor. Mais uma vez, documentário e ficção se confundem, e fica a critério do espectador interpretar o que há de combinado nesse desencontro. Como afirma Varda ao ser questionada sobre a imagem de seus pés no vagão do trem: “o objetivo é o poder da imaginação”.
Autor
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
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