Memória, História e ficção em ‘A resistência’, de Julián Fuks
(…) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Carlos Drummond de Andrade, no poema ‘Resíduo’, em ‘A rosa do povo’.
A psicanálise explica por que se enlouquece, não por que se sobrevive.
Bruno Bettelheim.
Nas últimas décadas, presenciamos uma vasta produção literária e cinematográfica sobre o período das ditaduras militares latino-americanas na segunda metade do século XX. Muitas dessas obras, mais do que se reportarem a época em si, tratam da memória de vítimas dos regimes autoritários: como, no presente, se rememora esse passado que não passa? Quais tensões ele evoca? Quais esquecimentos e recalcamentos ele implica? Como aguentar as sombras e os traumas que ele lega?
A resistência (2015), obra do brasileiro Julián Fuks, aborda essas inquietações a partir da trajetória de uma família de argentinos que se exilara no Brasil na década de 1970. A obra ainda reflete, metalinguisticamente, sobre a ficção como recurso para se relacionar com um passado traumático – isto é, segundo a noção freudiana de um trauma, um evento ou uma série de eventos que resistem à representação.
O livro é narrado em primeira pessoa por Sebastián, escritor, filho de um casal de psiquiatras e militantes argentinos que na década de 1970 migrou para São Paulo fugindo da ditadura de Jorge Rafael Videla. Como sua irmã, ele já nasceu no Brasil. Seu irmão mais velho, porém, é argentino nato, com uma peculiaridade substancial: fora adotado de maneira clandestina, ao passo que Sebastián e a irmã são filhos biológicos. A família convive, assim, com dois exílios sobrepostos e igualmente traumáticos: o dos pais, vítimas da ditadura e apartados do país onde nasceram, e o do irmão, isolado de sua família de origem. Esses dramas não são vividos de maneira estanque ou isolada. Fundidos, é sob seu signo que se dá a gênese da família, fazendo-se repercutir em cada momento de intimidade e coexistência no presente. Assim, se as feridas não estão totalmente abertas, há ao menos portentosas cicatrizes, que o narrador reluta em confrontar, temendo aprofundá-las.
Entre elas estão o temor dos pais de que o irmão adotado fosse filho de outros perseguidos políticos argentinos, dado o conhecido mecanismo do regime de sequestrar bebês de militantes de esquerda e distribuí-los para adoção de maneira clandestina; a lembrança de Marta Brea, uma amiga da mãe assassinada pela ditadura; o tabu em que a palavra adoção se converteu, apesar de os pais tentarem falar com os filhos sobre o tema com naturalidade; e o progressivo afastamento e ensimesmamento do irmão adotado. Somam-se a isso brigas e desentendimentos entre irmãos, que selam um maior distanciamento entre eles.
Diante dessas lides que permeiam o presente, o narrador-personagem perscruta o passado e se interroga: “Pode um exílio ser herdado? Seríamos nós, os pequenos, tão expatriados como os nossos pais?”. Até que ponto os deslocamentos engendrados décadas atrás se infiltram na vida cotidiana contemporânea, ecoando em uma dificuldade de adaptação à convivência familiar? De que maneira o que vem à tona na atualidade martela e dilacera as dores do passado?[1]
Desassossegadas com essas questões, cada personagem é chamada a resistir. Aqui o verbo e o título do livro, polissêmicos, referem-se não apenas à atuação política dos pais em oposição ao regime autoritário platino, mas também ao esforço de superar, no foro íntimo, as angústias que o presente, matizado pelas perturbações do passado, coloca[2]. Isso é sugerido pela epígrafe da obra, do crítico literário argentino Ernesto Sábato: “Creo que hay que resistir. (…). Pero hoy, cuántas veces me he preguntado cómo encarnar esta palabra.”
Se o próprio imperativo da resistência implica o desafio de encontrar modos para concretizá-la, cada personagem tende a procurar uma forma particular de exercê-la. Talvez nesse sentido, os pais se valham das teorias de Winnicott sobre a adoção e o irmão, se isole e busque desenvolver hábitos distintos dos familiares – dedicar-se mais às atividades físicas em contraposição ao intelectualismo dos pais. Sebastián, por sua vez, encontra na escrita ficcional de um livro sobre a história de seus familiares, aliada a uma busca por resquícios históricos, uma forma para a necessidade premente de elaborar[3] o passado e o presente traumáticos. Intenta, desse modo, superá-los e restabelecer os vínculos afetivos com o irmão.
Alicerçado nesse procedimento ficcionalizador, o romance de Fuks aborda a zona de sombra[4] entre memória, História e ficção. Instigado no presente conflituoso a compreender a trajetória de sua família, inserida em determinado momento histórico, Sebastián se lança sobre o vago passado. O faz, porém, embrenhado da sua memória pessoal, a qual, por sua vez, foi formada pelo acesso que tem às recordações de seus pais. Assim, se uma memória sempre é uma mediação limitada entre o presente e uma experiência de passado, a do narrador é filtrada também pela de seus pais. Com efeito, não são poucas as lacunas e esquecimentos que se apresentam na memória da personagem, atribuindo uma conotação intrincada, traumática e inacessível ao passado real. Frente a isso, tenta-se acessá-lo de maneira supostamente mais “pura” ou “objetiva” por meio de documentos particulares dos pais ou oficiais. Novo insucesso.
Em diferentes passagens, Sebastián busca conhecer o passado da família a partir de vestígios materiais. Porém, ao se debruçar sobre o edifício no qual seus pais viveram em Buenos Aires ou sobre fotos da época da perseguição política e da adoção, a investigação do narrador não alcança conclusões fáceis e definitivas, mas ganha um punhado de novas inquietações.
Confrontado com o conteúdo que as fotografias revelam, o narrador se indaga: quais foram as circunstâncias que produziram esse registro? Quais os sentimentos que cada uma das pessoas retratadas carregava no momento do clique? O que permanece da época retratada no presente?
Dúvidas que não são mera curiosidade, mas gritos do passado dos quais o narrador não pode escapar. Como ele mesmo diz, “Com meus pais aprendi que todo sintoma é signo. Que, tantas vezes, contrariando a razão (…), o corpo grita”. Impotente para respondê-las, Sebastián é levado a admitir: “São perguntas vãs, eu sei, (…) que a foto impõe ou sugere. É porque a foto cala que eu (…) insisto em captar sua tortuosa sentença (…) só quando fecho o álbum (…), é que enfim chego a entender quanto mentem as fotos com seu silêncio”[5].
Desse modo, as fotos não dizem aquilo que Sebastián quer que elas digam: que elas propiciem um conhecimento palpável do passado, fazendo compreender o presente e apaziguando-o. Não prosperam em delimitar o passado traumático apenas ao escaninho do tempo ido, excluindo-o “do presente em que sua voz subsiste” e incomoda. Oferecem apenas, em sua falta de assertividade, um silêncio no qual a personagem sussurra a si mesma novos questionamentos.
O episódio das fotografias ilustra como a pretensa busca objetiva de recuperação integral do passado – a qual já foi imputada ao campo da História por correntes positivistas e historicistas no século XIX – é, desde logo, uma derrota. Sua falibilidade é apenas a porta de entrada para outras dúvidas sobre um período pretérito. Em meio às poucas certezas factuais que o exame do passado propicia para Sebastián, há vastos interstícios para a ficção, como reelaboração do passado, vir à tona. Seja de maneira deliberada e sistematizada – na opção pela redação literária de um livro por parte da personagem –, seja de maneira menos formal e mais involuntária – quando Sebastián não logra lembrar um diálogo com o irmão em uma festa de aniversário sua e admite que usou a imaginação para tentar delinear esse momento amorfo do seu passado.
Tal como a memória, o expediente da ficção como modo de interpretação do passado não cai na tentação objetivista. Procura em vez disso construir uma narrativa que confira sentidos ao vivido pelo sujeito. Tanto a memória como a ficção memorialística partem do pressuposto de que estabelecem uma relação tensa e imbricada com o real. Fogem da mimese absoluta da realidade, mas tencionam apreender algo desta. Logo, ao ficcionalizar os percursos de sua família no romance, o narrador se defronta com esse problema, brincando com a ambiguidade da palavra história: “Isto não é uma história. Isto é história (…) e no entanto quase tudo a que tenho ao meu dispor é a memória, noções fugazes de dias tão remotos, impressões anteriores à consciência e à linguagem. (…) Não consigo decidir se isso é uma história”.
Ficção acirra tensão entre passado e presente
Uma história, uma narrativa ficcional distinta da realidade, mas relacionada a esta; história, a firme e inelutável realidade de uma família no decorrer dos anos. Para apreender a segunda, os indícios de que Sebastián dispõe são precaríssimos. Para escrever a primeira, o narrador se imputa a tarefa de remeter e fazer jus à realidade que vive, não usando seus parentes como pretexto para uma recriação artística indiferente e desinteressada, nem os resumindo aos personagens que cria. Chega-se a qualificar esse risco como um “roubo” e um “sequestro”.
Não obstante, se a escrita ficcional não aparece como antídoto para os desconfortos vividos, ela pontua um árduo processo de amadurecimento por parte do protagonista em relação a eles. É em meio à escrita que Sebastián encontra um espaço para um autoexame íntimo: gradualmente apura sua compreensão quanto aos dramas da família e sua postura diante deles. É em meio à escrita que a personagem põe em xeque até o propósito inicial do livro: “queria que o livro fosse para ele [o irmão] (…) que nele se redimissem (…) nossos silêncios”, dando-se conta de que não será “capaz de tirá-lo [o irmão] do quarto – e como poderia, se eu mesmo me encerrei [durante a escrita]?”.
Sebastián reflete assim o quanto lhe faz falta o companheirismo do irmão. Reflete o quanto sua consternação com os traumas familiares não é uma preocupação relativa apenas aos seus entes queridos, mas um fator constitutivo de seu próprio psiquismo. Conclui que a odisseia de sua escrita em busca da trajetória da família não visa descobrir um novo sentido para a vida do irmão. Admite o narrador: “Sou eu, e não ele, que desejo encontrar um sentido (…), sou eu que quero pertencer ao lugar que nunca pertenci”.
Portanto, o exílio de Sebastián, metáfora de um deslocamento angustiante, não é herdado ou recebido de seus parentes. É particular, próprio, mesmo que ele não tenha o status de exilado ou adotado: “nada reparará o que vivi, pois não parece haver nada a ser reparado em mim”. E, no entanto, com quantos traumas e dilemas ele não se vê às voltas?
Dessa forma, é provável que, ao fim da jornada da escrita de seu livro, o narrador-personagem não tenha se deparado com grandes revelações acerca do seu passado e do seu presente. Contudo, o saldo da empreitada é uma progressiva compreensão de si mesmo. O ponto final da busca de entendimento da realidade por meio da escrita literária é um ponto de partida para uma relação mais apaziguada com o real.
Não vale dizer que a escrita ficcional – na penumbra entre a História e a memória – a que Sebastián se lançou tenha sido em vão. Mais do que isso, o “fracasso” do procedimento da ficcionalização de Sebastián em exorcizar suas inquietações esclarece que os traumas do passado e do presente são fundamentalmente íntimos, interiorizados e não contam com saídas de emergência. Em face deles, é preciso maturação, como a que a escrita proporcionou à personagem. É preciso “nem ir, nem ficar, aprender a resistir”, como ela diz.
Isso não extirpará os traumas presentes na convivência familiar, mas será o primeiro passo para Sebastián lidar com eles de forma um pouco mais consciente e serena. Não será a transformação de uma família atrofiada em uma família perfeita, mas em uma família possível[6]. Resistir é, sempre, uma forma de adaptação às dificuldades que o mundo nos impõe e não de eliminação delas. Aludindo à famosa frase que abre Anna Kariênina, todas as famílias, felizes ou infelizes, com traumas pequenos ou grandes, o são à sua maneira, às suas possibilidades.
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Notas
[1] Como pontua um poema de Emily Dickinson, publicado no Brasil em 1986: “Dizem que o tempo ameniza./ Isto é faltar com a verdade/ Dor real se fortalece/ Com os músculos, com a idade./ É um teste no sofrimento/ Mas não o debelaria./ Se o tempo fosse remédio/ Nenhum mal existiria.” Significativamente, esse poema é a epígrafe de um dos livros de Tatiana Salem Levy, A chave de casa, escritora brasileira com idade próxima da de Fuks, que também trata da relação que filhos estabelecem com a memória do passado de seus pais, que combateram ditaduras militares latino-americanas da segunda metade do século XX.[2] Isso fica explícito no caso do irmão adotado, a quem se atribui, no campo semântico da política, uma “militância” e uma “luta”, isto é, a forma de lidar com o incômodo da adoção. Chega-se a dizer: “ali, onde a luta [política] deles [dos pais] se encerrava, meu irmão iniciava a sua”.
[3] O cunho psicológico desse ato é evidente, na medida em que Sebastián toma sua escrita como uma necessidade de “precisar falar” de seu irmão e de sua família. Igualmente, é significativo que o livro se inicie com a confissão de que o narrador-presonagem não pode e não quer dizer que seu irmão é adotado. Além disso, ao fim do romance, a personagem do pai de Sebastián diz claramente que “o livro é outra forma de terapia”.
[4] Expressão que denota as fronteiras porosas e de difícil delimitação entre essas três formas de se relacionar com o passado. No caso, ainda há o agravante de que a experiência pessoal familiar de Fuks foi central para a composição de A Resistência, naquilo que hoje tem se chamado de “autoficção”. Como Sebastián, Julián Fuks é escritor, brasileiro, filho de exilados argentinos de esquerda e tem um irmão adotado clandestinamente, a quem dedica a obra.
[5] Vale destacar que a confluência de perguntas suscitadas pelos registros fotográficos é sugerida já na bela capa da edição brasileira do livro, que exibe uma sobreposição de numerosas fotos em branco e preto, de forma que uma encobre o conteúdo da outra. Assim como para Sebastián, a soma das fotos resulta, para quem a enxerga, em uma incompreensão.
[6] Aludimos aqui à expressão “o irmão possível”, presente na dedicatória do livro – “Ao Emi, muito mais que o irmão possível” – e que, segundo reportagem do jornal português Observador, seria o título original de A Resistência, não tendo sido adotado por razões editoriais – a publicação de O Irmão Alemão, de Chico Buarque, pela mesma editora.
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Obras de Lin Lima:
Na capa do texto e alto do post: Arapuca (2013)
No corpo do texto, do início para o fim: Traço leve (2015), Linha crua (2016), Encruzilhada (2013), Não toque (2014).
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Mestrando em História na USP.