Nota da redação: texto modificado e ampliado em 15 de fevereiro de 2018.
Não foi um carnaval como o que passou. O pesado ambiente político e social no Rio de Janeiro e no país acabou vazando para a avenida, que mostrou por que os desfiles cariocas têm tanta importância no imaginário e na história da cultura deste país. O resultado das duas primeiras colocadas – Beija Flor e Tuiuti – impressiona pela recuperação, por parte dos desfiles, de uma capacidade de ser termômetro e catalizador dos momentos históricos.

Isso já aconteceu em outros tempos: no fim de 1968, depois da assinatura do AI-5 pelo governo Costa e Silva, o Império Serrano modificou seu enredo do ano seguinte, quando desfilou cantando Heróis da liberdade, samba de Silas de Oliveira que teoricamente louvava a Inconfidência Mineira, mas fazia clara referência aos “alunos e professores” nas ruas e, portanto, às manifestações contra a ditadura, como a Passeata dos 100 mil. Em 1986, depois da Anistia e durante o lento processo de redemocratização, o mesmo Império Serrano foi para a Sapucaí com Eu quero. O enredo de Renato Lage e Lilian Rabelo cobrava educação, saúde, moradia e justiça social depois de 20 anos de governo militar, e ganhou um samba-enredo de Aluisio Machado, Luiz Carlos Machado e Jorge Nóbrega que se transformou em um dos hinos da lenta abertura política: “Me dá me dá/ Me dá o que é meu/ Foram 20 anos que alguém comeu”, dizia o refrão (ouça aqui). A Caprichosos também marcaria o fim dos anos 1980 com sua irreverência crítica. Sob a batuta do carnavalesco Luiz Fernando Reis, a escola realizou, entre 1985 a 1987, um trio de desfiles atravessados pelo humor e por letras de samba bem diretas. Em 1987, Eu prometo abordou a postura demagógica dos políticos e fez reivindicações para a futura Constituinte. O samba cobrava: “Ajoelhou tem que rezar/ Não quero mais viver de ilusão (de ilusão)/ Você prometeu/ Agora vai ter que pagar/Não vai me deixar na mão” (ouça aqui).
Vitoriosas em 2018, Beija Flor e Tuiuti apresentaram visões opostas do mesmo momento político, o que não significa que uma escola seja a “mocinha” e a outra “vilã” – ou vice-versa. Descontada a exceção do Império Serrano, não existe, no carnaval carioca, uma escola de samba que não esteja comprometida, em maior ou menor grau, com dinheiro e atitudes ilícitas. Se a Beija Flor representa o poder miliciano da família de Anísio Abraão David em Nilópolis, Baixada Fluminense, a Tuiuti tem como seu patrono o contraventor Thor, que tomou o poder na região do morro da Mangueira e na própria agremiação através de métodos nada democráticos e pacíficos. Tais procedimentos se irradiam para a forma como o carnaval deste ano foi gerado: o indiscutivelmente belo samba de Moacyr Luz e parceiros, que amealhou quatro notas 10, foi uma encomenda direta, eliminando a tradicional disputa de samba na quadra, que conta com o gosto da bateria e da comunidade como termômetros para um referendo final. Além de ser autoritária, tal atitude enfraquece a ala de compositores e deixa frágeis as raízes da escola para o futuro.

Não existe carnaval inocente – e a Imperatriz Leopoldinense, apadrinhada pelo bicheiro Luizinho Drummond, no ano passado concebeu um enredo sobre o Xingu e suas lutas, se posicionando frontalmente contra o agronegócio, o que fez com que se opusesse à emissora que transmite o desfile e sua campanha “O Agro é pop” e agradasse ao MST e formadores de opinião progressistas. Isso não significa, no entanto, que a Imperatriz Leopoldinense seja uma escola “de esquerda”.
Não existe esquerda e direita no mundo da Liesa.
Mas existem as contradições da avenida, e, se os métodos de condução política nas escolas podem e devem ser questionados, o resultado estético e mobilizador dos desfiles, que são manifestações culturais e obras de arte, não pode ser desabonado pelo comando nem sempre lícito das agremiações. Fosse assim, não contemplaríamos mais as pinturas de Iberê Camargo e Caravaggio, artistas geniais que foram também assassinos condenados.
Beija Flor e Tuiuti: desfiles opostos conceitual e politicamente
E o que aconteceu esse ano em termos políticos na avenida? Uma transposição do duelo bipolar de forças que se desenhou no próprio país. A Beija Flor criou um carnaval que, no meu entender técnico, teve profundas falhas de desenvolvimento de enredo, espelhando a criatura multifacetada e monstruosa criada pelo Dr. Frankenstein – o romance de Mary Shelley estava no carro abre-alas e teria sido inspiração da escola. O discurso anticorrupção levado para a avenida é tão vazio, apático e normatizador quanto aquele que levou centenas de pessoas de classe média para um protesto verde-e-amarelo “contra tudo o que está aí”, sem que se deixe claro o que é “tudo”; quem são os que representam “tudo”; quais são os problemas de “tudo”. A fala anticorrupção, historicamente conservadora, e usada como estratégia contra Vargas, em 1954, e contra Jango, 10 anos depois, deu à Beija Flor a mesma cara amorfa e um tanto histérica vista nos protestos pró-impeachment. No fim das contas, “tudo” é nada – o que absolutamente não desmerece a escola em sua capacidade de captação e transmutação plástica do momento presente.
Com os mesmíssimos problemas de direção contraventora e autoritária, a Tuiuti escolheu, no entanto, o caminho de desfile que é o avesso da escola de Nilópolis. O enredo de Jack Vasconcelos partiu do livro de Jessé de Souza, A elite do atraso, para tentar mostrar como a escravidão sempre foi um produto do desejo autocentrado e ganancioso das elites. Os primeiros segmentos do enredo passeavam pelos vários escravizados da humanidade – Grécia, Egito, Mesopotâmia, entre outros – e chegavam ao Brasil, demonstrando como a a assinatura da Lei Áurea, antes de ser um gesto benevolente de uma princesa branca, foi a tentativa desesperada de uma monarquia de se manter no poder, e abandonou os escravos libertos à própria sorte. Não por acaso, o tripé que reproduzia o documento assinado por Isabel era sucedido por um segmento inteiramente dedicado às favelas, porto e abrigo dessa população negra errática. Surgidas nos morros e fundadas por descendentes de escravos, as escolas de samba foram tratadas pelo carnavalesco como quilombos contemporâneos, focos de resistência a partir da irradiação da cultura afro.
No último segmento da escola, dedicado ao vampiro Michel Temer e à reforma trabalhista, a Tuiuti evidenciou que as novas formas de normatização do trabalho, com entregas e recompensas por demanda, talvez estejam muito próximas da escravidão. A República, não devemos esquecer, também foi proclamada por ex-donos de escravos insatisfeitos, patrocinadores de enorme campanha midiática contra o imperador Pedro II. No fim das contas, ontem e hoje, o movimento da elite que brada contra a corrupção também é corrupto e espelha o horror ao pobre, assim como desejo de se manter superior a ele.
Ao ocuparem os primeiros lugares no resultado do carnaval, as duas escolas evidenciam que os jurados, que em anos anteriores preferiram desfiles tecnicamente “perfeitos” (o que talvez desse o título à Portela ou à Mocidade), em 2018 abriram a guarda e foram atravessados por uma espécie de arrebatamento.
As diferenças de abordagem mostram, ainda, um retrato mais fiel do momento brasileiro, em que forças antagônicas disputam não apenas o espaço político, mas o direito à produção de imagens e de discurso, reinventando as formas de irradiá-los, isto é, de transformar cultura e conhecimento em comunicação e mídia.
O carnaval ainda teve Leandro Vieira se firmando como um grande talento, em desfile que, se foi menos potente que os dos anos anteriores, como comento a seguir, teve o mérito de consolidar as características plásticas do carnavalesco e fazer uma crítica direta ao bisprefeito do Rio, Marcello Crivella, e sua rejeição censora a tudo que tem origem africana, a começar pelo carnaval, especialmente a folia de rua. O Salgueiro veio lindo plasticamente, mas com o autoplágio de um enredo de 2007, Candaces, de Renato Lage. E, na Portela, a experiente Rosa de Magalhães mostrou que ainda tem fôlego para muitas descobertas e renovações. Fez um desfile apoiado na tradição, mas cheio de novas abordagens, especialmente nos carros alegóricos.
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Comento a seguir as escolas que pude assistir com mais atenção:
GRUPO DE ACESSO
Alguns dos desfiles mais interessantes que passaram pela Sapucaí este ano não estavam no Grupo Especial, como vem acontecendo já há algum tempo. Cinco escolas chamaram muita atenção no Acesso: Viradouro e Unidos de Padre Miguel, com chances reais de título; Estácio, correndo por fora; e Império da Tijuca e Acadêmicos do Cubango. Nas duas últimas tivemos os enredos mais profundos e criativos do grupo. A Tijuca cantou Olubajé, uma festa para o rei, em homenagem ao orixá Omulu, demonstrando um equilíbrio entre canto, samba e certa incorporação do tema pelos componentes da escola (veja aqui); já a Cubango construiu com maestria O rei que bordou o mundo, sobre o artista Arthur Bispo do Rosário, o melhor desenvolvimento de enredo desfilado na avenida em 2018 (veja o desfile completo aqui).

Obras da história da arte ajudaram a contar a vida de Bispo do Rosário
Além de revelar a minúcia e a profundidade de pesquisa da dupla de carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, o desfile da escola de Niterói chamou a atenção por cumprir brilhantemente a noção de um importante quesito extinto do rol de julgamento do carnaval: conjunto. Da comissão de frente, que trouxe Exu e o sincretismo sempre presente na obra de Bispo, ao último carro, ficou evidente como o padrão estético estabelecido pelo enredo – a obra do artista homenageado – contaminou, no melhor dos sentidos, a execução de fantasias, alegorias e a distribuição das alas. As fantasias do casal do primeiro casal mestre-sala e porta-bandeira, leves e deslumbrantes, ilustra bem o que estou dizendo: Romeu e Julieta transpostos para o carnaval nordestino, filtrados pelo legado cultural e pelo reaproveitamento de materiais presentes na obra de Bispo.
(Foi lindo, aliás, ver a volta por cima do mestre-sala Diogo de Jesus, tão injustiçado pela Mocidade Independente de Padre Miguel ano passado – a escola o demitiu antes que ele pudesse participar do Desfile das Campeãs, mesmo que ele tivesse contribuído com o bom resultado da escola com 30 pontos, o máximo validado por quesito).

Os carnavalescos também percorreram o passado de Bispo antes da internação – na Marinha e como pugilista -, fazendo o tempo todo referências a outras obras da história da arte para apresentar o homenageado – a Nau dos insensatos (1490-1500), de Hieronymus Bosch, foi base para o primeiro carro alegórico. Foi curioso, ainda, que o último carro tenha apresentado o Manto da apresentação, mais conhecida obra de Bispo, como uma espécie de vela de navio, estabelecendo forte diálogo entre as alegorias do próprio desfile. Um enredo que atravessou a perícia técnica por grande emoção e por coerência interna, casando as origens quilombolas do sergipano Bispo com a predileção da Cubango por enredos de temática afro.
No fim da apresentação da escola, as entrevistas feitas por Carlos Gil e Mariana Gross no estúdio da Rede Globo apontam para outro mérito do desfile: a forma profunda com que os componentes da Cubango abraçaram o enredo e tomaram um personagem como Bispo para si, cobrindo-o de reconhecimento, o que demonstra como o carnaval pode ser, também uma forma de difusão cultural e de educação, além é claro, de um jogo de espelhos, bastante claro na fala da madrinha de bateria Cris Alves: “Eu moro perto do museu (Bispo do Rosário, na Colônia Juliano Moreira) e chamei vários amigos da escola para conhecer aquelas maravilhas. Antes eu achava que Bispo era um negro e louco, mas agora sei que ele tem uma verdade como artista brasileiro, estou muito orgulhosa por estar aqui”. Outro ponto muito importante no estúdio da Globo foi a fala dos carnavalescos, que, em sua estreia no Grupo de Acesso, a falta de dinheiro jamais seria um problema: “Fizemos três anos desfiles de carnaval na Intendente Magalhães, que têm ainda menos recursos”. Para mim, o melhor, mais equilibrado e mais transformador desfile do ano.
GRUPO ESPECIAL
Domingo

VILA ISABEL:
Sobre o que era o enredo de Paulo Barros para a Vila? Sobre a roda? Sobre o futuro? Sobre tecnologia? Sobre velocidade? Mais uma vez, o carnavalesco não deixou claro, e a pouca clareza de seu enredo, que tornou a Vila com uma paleta escura, quase soturna, talvez faça parte de uma estratégia: esconder atrás dos efeitos visuais e tecnológicos certa preguiça ou inabilidade para a pesquisa de enredo, aquilo que estrutura qualquer desfile (Veja o desfile completo aqui). O enredo é a narrativa, o discurso que sustenta o percurso da escola, ala a ala, carro a carro. Enredo é a história a ser contada. Que história contou a Vila? Não sabemos. Barros, que passou a chamar a atenção de crítica e público em dois desfiles arrasadores, e injustamente relegados ao vice-campeonato, na Unidos da Tijuca (O sonho da criação e a criação do sonho, em 2004, e Entrou por um lado e saiu pelo outro, em 2005), acabou sendo campeão pelo menos potente É segredo (2010) e pelo inexplicável Acelera, Tijuca (2014). Este último desfile já demostrava um desgaste de suas propostas, que passaram a perder potência de conteúdo para se apoiar apenas nos efeitos visuais, alguns realizados com certo desleixo (o carro de Ayrton Senna em 2014 era todo feito de plotagem). O que vimos a partir daí, inclusive no controvertido campeonato ano passado pela Portela, que acabou sendo dividido posteriormente com a Mocidade, foi uma repetição de embalagem e de corpo, mas sem investimento algum na alma do desfile, em seus critérios narrativos. Quando comparamos o uso de led e telões no desfile da Vila, por Barros, e no desfile da Grande Rio, por Renato Lage, vemos uma clara diferença entre um corpo sem alma, no primeiro caso, e um corpo que se arranja para que alma venha à tona, operação de Lage com o Chacrinha da Grande Rio.
Vila não cantar Martinho é omissão histórica imperdoável
Ainda sem entender o enredo da Vila, amplio minhas dúvidas quando penso em seu não-enredo: havia outra possibilidade de tema para a escola do que os 80 anos de Martinho, aquele que carrega a Vila no nome? Aquele cujo enredo Kizomba, a festa da raça, (lembre aqui) que também completa aniversário redondo (30 anos) e deu à escola seu primeiro e mais marcante campeonato? Aquele que com Carnaval de ilusões mudou, em 1967, a estrutura do samba-enredo (Ouça aqui)? Com Martinho, a Vila poderia falar do encontro entre o samba e outras manifestações da cultura popular carioca, já que o compositor nasceu em Duas Barras, um dos berços da Folia de Reis; podia abordar a lusofonia, e da luta por uma integração do Brasil com os países africanos que falam português; podia lembrar sambas e encontros históricos promovidos por um dos maiores criadores do país. Quem acabou fazendo isso foi uma escola paulistana, a Unidos do Peruche, pela qual Martinho e sua família desfilaram na última sexta-feira (veja trechos do desfile aqui). Faltou ao desfile concebido pelo experiente Mauro Quintaes um pouco de identidade visual e um samba à altura, e a Peruche acabou rebaixada. Mas homenagem boa é aquela que é feita, e devemos agradecer à escola de São Paulo por amenizar a lacuna, embora isso jamais vá apagar a vergonha e a ingratidão da Vila.
TUIUTI:
O desfile mais comentado do ano. Com o enredo Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?, a escola de São Cristóvão levou para a avenida um enredo que tirou partido de uma efeméride – os 130 anos da assinatura da Lei Áurea – para falar da exploração do trabalho humano, que perdura até hoje. O desfile começou de forma muito forte, com a comissão de frente, vencedora do prêmio Estandarte de Ouro. A coreografia trouxe negros acorrentados e maltratados por um feitor, também negro. Um dos escravos fica à beira da morte. Um recurso simples – o deslocamento de para a frente e para trás de um tripé representando a senzala – esconde os demais escravos e revela um grupo de pretos velhos, figura mítica da cultura negra no Brasil. Eles benzem e curam o escravo ferido, que se liberta dos grilhões e perdoa o feitor, arrependido. A partir daí, a chave criativa de Jack Vasconcelos foi demonstrar que a pergunta do enredo era, na verdade, uma afirmação: o cativeiro social persiste, bem como uma tentativa constante de uma elite brasileira escravizar a população pobre e majoritariamente negra. O belíssimo samba de Moacyr Luz e parceiros, em tom de lamento, se sustentou na avenida, além de premiar quem assistiu e ouviu com versos do quilate de “e assim quando a lei foi assinada/ uma lua atordoada/ assistiu fogos no céu”. A sucessão de alas mostrou que a Lei Áurea não criou nenhum plano de absorção dos reis e rainhas trazidos da África e aqui escravizados, e milhares de homens e mulheres foram abandonados à própria sorte.
Escola seria rebaixada em 2017; Tijuca virou a mesa
Chegando às favelas e às condições desumanas de trabalho, a Tuiuti mostrou ainda que as escolas de samba são, ainda hoje, uma espécie de quilombo, por significarem uma fonte de resistência da cultura negra. Mas foi pelo último segmento do desfile que a escola se tornou o segundo assunto mais comentado do mundo no Twitter durante a segunda-feira de carnaval: além de trazer um trabalhador do barracão da escola, Leozinho, representando o presidente Michel Temer como um vampiro, o carro que encerrou o desfile trouxe os paneleiros que pediram o impeachment como fantoches dentro de patos infláveis – numa alusão ao símbolo usado pela Fiesp nas manifestações antes do golpe que retirou Dilma Roussef do poder. Os patos-fantoches se espalhavam pelas alas, junto a fantasias representando carteiras de trabalho queimadas. Por tudo o que apresentou, a Tuiuti demonstrou que não é facil para uma elite que viveu 2/3 da história do país convivendo com a escravidão abrir mão dela e de seus privilégios. A ovação popular à escola é facilmente explicável: este é um momento que boa parte da população brasileira tem vontade de gritar “não sou escravo de nenhum senhor”.
Antes do desfile, a Tuiuti parecia marcada para o rebaixamento, sobretudo por ter ficado em último lugar no ano passado, quando um de seu carros, desgovernado, feriu várias e matou uma pessoa na Apoteose. É importante lembrar, aliás, que a escola não teria desfilado no Especial se a Unidos da Tijuca, que também sofreu com acidentes ano passado, não tivesse entrado com um recurso e feito uma “virada de mesa”, para que ninguém fosse rebaixado em 2017. Agora, uma eventual canetada do júri, que tire da escola uma posição pelo menos digna, pode ameaçar de modo definitivo a reputação da Liga.
GRANDE RIO

A verdade é que a Grande Rio mereceu cair, por tudo que ocorreu em seu desfile, e duvidávamos que isso fosse acontecer, por aquelas coisas que vão além da justiça no carnaval carioca. Mas esse não foi mesmo um carnaval comum.
A tragédia foi real, mas há ainda uma constatação incontornável na passagem da Grande Rio: não fosse o destino, talvez a escola tivesse a oportunidade de brigar pelo título honestamente, porque fazia o melhor desfile de sua história. E, se o título fosse algo muito forte para uma agremiação com samba bem fraco e harmonia comprometida pela falta de “chão” e excesso de convidados-piratas, pelo menos levaria a escola facilmente para o sábado das campeãs.
Enredo contado de trás para frente reafirmou talento do Mago
Renato Lage imaginou uma homenagem à Chacrinha minuciosa e arrebatadora. Mais do que isso, o desfile mostrava que o carnavalesco resolveu usar um tema tradicional para subverter a lógica narrativa de enredo: Chacrinha teve a história contada de trás pra frente. O seu início em Pernambuco era o fim do desfile. E por isso os primeiros carros, associados ao seu estouro e à sua maturidade profissional, abusavam de luzes de led, telões de plasma e outros recursos compatíveis com o tropicalismo e com seus programas de auditório, enquanto o último carro, aquele que não entrou, era um carro clássico de Bumba Meu Boi. Vimos uma volta no tempo na avenida, com os carros ficando mais simples e menores e com as fantasias fazendo paulatinamente alusão aos antigos carnavais de Pernambuco. As telas e as luzes também entraram com coerência numa estética anos 70, de discoteca e de cassino, diferentemente dos recursos vazios de conteúdo usados por Paulo Barros na Vila Isabel.
E o uso da cor na passarela da Grande Rio? Renato dominou a dificílima combinação entre verde e grená, abusando de amarelos e laranjas – luz que harmonizou com facilidade tons tão distantes e distintos quanto os do pavilhão da Baixada. E foi de emocionar como o Mago fez a passagem para o belíssimo setor em preto e branco, relativo ao rádio e a outros pioneiros na TV, caso de Hebe Camargo, Flavio Cavalcanti e J. Silvestre. O rebaixamento alvinegro criou um contraste com os tons estourados do troféu abacaxi e do “vai pro trono ou não vai” dos primeiros segmentos. Antes e depois do P&B, as alas de passagem para a cor tinham os mesmos verdes e as mesmas terras/laranjas, criando um ciclo delicioso para o olho e um tapete lindíssimo na Sapucaí. Coisa de quem aprendeu a fazer carnaval levando a sério o extinto quesito Conjunto.
A Grande Rio foi rebaixada. Mas quem viu o desfile, na Sapucaí, como eu, ou pela TV, teve uma aula sobre a elaboração visual de um carnaval.
MANGUEIRA
A verde-e-rosa chegou ao seu desfile como favorita e terminou a apuração nas Campeãs, mas em posição que ninguém imaginava que ocuparia: o quinto lugar. Olhando as notas retrospectivamente, talvez seja possível entender, pelo menos nos quesitos estéticos o que ocorreu (não me sinto capaz de comentar as notas baixas em bateria). Apesar de arrebatar com o enredo Com dinheiro ou sem dinheiro eu brinco, crítica direta à gestão censora do bispo Marcello Crivella com todas as manifestações populares de matriz africana, e de desenvolvê-lo com humor e bom gosto, Leandro Vieira, não fez um dos melhores desfiles de sua carreira – os dois anteriores eram muito superiores ao de 2018. O jovem carnavalesco se consolida como um dos grandes talentos do carnaval carioca, e talvez por isso, por ter sido este um desfile de estabilização e de confirmação de seu talento, a passagem da Mangueira na madrugada de domingo para segunda tenha ficado aquém das apresentações da escola nos anos anteriores.
Em termos de conjunto, chamou a atenção, na passagem da Mangueira, a percepção de que Leandro já tem uma paleta própria de cores, que dessa vez foi radicalizada. Este ano, ele levou às últimas consequências os usos que faz dos rosas com verdes e azuis mais claros, bem como a utilização de cores como creme, pérola e marfim. Se no desfile do ano passado esse repertório de tons pastéis resultava em uma atmosfera rococó em roupagem contemporânea, próxima da que Sofia Coppolla utilizou no filme Maria Antonietta, no desfile deste ano ele foi somado às figuras de pierrôs e colombinas e à atmosfera dos antigos carnavais, viajando para o Art Déco dos anos 1920 e transitando entre uma caixinha de música e um doce de confeitaria.
Palavras foram o melhor e o pior da escola
O uso de palavras em faixas e cartazes, se por um lado fez alusão às manifestações de rua, por outro se estendeu, na forma de onomatopeias, às fantasias que tinham instrumentos, caso dos tambores com a palavra “Bum!”. Isso transformou os componentes em uma espécie de brinquedo, a exemplo do que aconteceu com a ala que se referia às fantasias de antigos carnavais, logo à frente do abre-alas.
As palavras, aliás, asseguraram os melhores e os menos felizes momentos do desfile. Entre os pontos altos estão as faixas comissão de frente, em que os foliões que ficavam presos por grades de segurança e as pulavam, transformando-as nos dizeres “Deixa nosso povo passar”; e o último carro, em que o prefeito Crivella aparecia como Judas do sábado de Aleluia, pendurado em um conjunto de placas com a sentença: “Prefeito, pecado é não brincar o carnaval”. É preciso que se diga, no entanto, que, apesar de funcionar visualmente, a comissão de frente tinha problemas sérios em termos conceituais e coreográficos. No momento em que eram mesas, os adereços ficavam incompreensíveis, como uma sobra na movimentação dos dançarinos, o que se sem dúvida se refletiu na má avaliação do júri. Se veio bem em alguns momentos, a palavra foi obviedade e repetição inútil em outros, sobretudo na segunda alegoria, “Boteco”, e na terceira, que trazia o baluarte Nelson Sargento e fazia uma homenagem aos antigos desfiles da Rio Branco com estandartes com o nome de “Sinhô”, numa alusão ao compositor. Nestes dois exemplos, a palavra foi uma espécie de explicação e de sobra, o que conota carros que não conseguiram se expressar completamente em sua visualidade: uma boa imagem não precisa de legendas.
Tirando esse tom um tanto repetitivo, o desfile da Mangueira brilhou em todos os momentos em que trouxe a rua para o sambódromo: da já citada comissão de frente ao “esquenta” em homenagem ao Cordão da Bola Preta, das homenagens a blocos históricos como o Cacique de Ramos e o Bafo da Onça ao grande bloco de sujos, correspondente a um setor inteiro que seria destinado a três ou quatro alas, que sucedeu o carro do Judas-Crivella. A fundação da própria Mangueira pelo Arengueiros foi celebrada numa ala que celebrava o bloco com os foliões trazendo estandartes presos a não disfarçados cabos de vassoura, no melhor estilo “vai como pode”. Ao celebrar o samba em sua simplicidade, a Mangueira voltou no tempo e nas possibilidades de brincar como criança no ano em que celebra suas nove décadas.
MOCIDADE
Para tentar não perder pontos, fez um desfile tão correto que beirou o marcial de tão frio, lembrando a Imperatriz Leopoldinense dos anos 1990 e início dos anos 2000, momento em que a escola, que se orgulhava de ser perfeita tecnicamente, foi apelidada de “A certinha de Ramos”. Uma “certinha”, que seja apenas “certinha”, acaba não tendo muito a ver com o espírito arrebatador do carnaval. A Mocidade terminou em sexto lugar, por mérito próprio e também porque os jurados costumam embarcar uma análise sobre perfeição técnica, que este ano nem sempre prevaleceu. Ao optar pelo caminho da precisão cirúrgica, a escola abriu mão de encher os olhos do povo das arquibancadas, como ocorreu no seu desfile do ano passado, sobre o Marrocos. Acabou prevalecendo na avenida as não-virtudes de um enredo estilo comida pronta, sobre a Índia, no lugar das possibilidades mais potentes e poéticas sugeridas por seu samba, sem dúvida alguma um dos melhores do ano. A paradinha da bateria comandada por Mestre Dudu assegurou um dos mais lindos momentos de 2018 em termos de canto e melodia, especificamente no trecho do samba que fala de Madre Teresa de Calcutá, em tom menor (“Oh, santa senhora! Oh, madre de luz!/ Venha para iluminar/ Esse povo de Vera Cruz”).
Acerto na escolha do branco para fantasias que enfrentaram a aurora
A mistura de Índia e Brasil proposta pelo carnavalesco Alexandre Louzada a partir do segundo segmento do desfile (veja a íntegra aqui) foi muito bem feita, iniciando com um carro com jacarés, animais que transitam na terra e na água, e a fusão entre os deuses Indra (hindu) e Tupã (tupi) se dando a partir do uso despudorado do verde, cor da escola de Padre Miguel. Outro grande acerto foi a previsão de uma paleta de brancos e pratas nos carros e nas fantasias, próprias para a transição entre a noite e o dia, o lusco-fusco. Uma grande parte da escola estava em branco, com apenas detalhes de outras cores, o que se casou perfeitamente com o fato de que parte do desfile da Mocidade se deu na alvorada. Dois bons exemplos apareceram no setor dedicado às frutas que vieram da Índia, através do qual a Mocidade aproveitou para homenagear as co-irmãs Mangueira, pela árvore que a batiza, e Portela (que, reza a lenda, nasceu à sombra de uma jaqueira). É sempre lindo quando o samba reverencia o samba. Outra abordagem inteligente de Louzada foi apresentar um conjunto de alas ao boi, mostrando como o animal que veio da Índia é importante para a cultura brasileira, aparecendo na obra de Mestre Vitalino e em manifestações como o Bumba Meu Boi e o Festival de Parintins.
Segunda-feira
UNIDOS DA TIJUCA
Não pude ver o desfile com o cuidado que Miguel Falabella merece. Sim, merece. Ouvi muitas críticas a homenagem a ele, mas acho que nelas há muito de preconceito com um criador que optou por ser um artista popular, que pertence a uma linhagem importantíssima para a cultura brasileira: de Grande Otelo a Costinha, de Chico Anysio a Zezé de Macedo, de Zé Trindade a recém-falecida Marcia Cabrita. Falabella é, também, um homem da avenida, que foi carnavalesco da Império da Tijuca, vizinha da escola que o transformou em enredo. Passadas as Cinzas vou ver e rever o desfile da Tijuca, pois tenho a impressão que ele reforçou identidades – a da escola, a do personagem do enredo – que se irmanam num gosto pela alegria, pelo humor e na origem suburbana, de Zona Norte.
PORTELA
Rosa Magalhães fez um desfile com tudo que Rosa Magalhães tem de melhor: fantasias preciosas, com um detalhamento impressionante e um domínio inigualável de tecidos e acabamentos. Isso ficou claro, por exemplo, no efeito simples e genial criado na ala representando a cana-de-açúcar, em que uma dobra na saia era manipulada pelos componentes, fazendo com que a terra seca se transformasse em plantação verdejante, e vice-versa. Ao propor para a Portela uma revisita a um tema histórico que já lhe havia rendido em 1999 um campeonato pela Imperatriz – a expedição de Maurício de Nassau – a carnavalesca também deu uma aula sobre como abordar um enredo de forma extremamente clássica, mas também sobre como fazer a minuciosa pesquisa histórica e de imagens roçar temas importantes da atualidade. Rosa e a Portela mostraram como os judeus que acompanhavam Nassau saíram de Pernambuco em direção à América do Norte, fundando uma cidade batizada de Nova Amsterdam, hoje Nova York. Ao contar a história, a azul-e-branco trouxe para a avenida a discussão sobre os imigrantes e refugiados, ferida aberta contemporânea. Como Recife e Nova York teriam sido formadas se não fosse a presença de estrangeiros, muitos deles tão degredados e fugitivos quanto os sírios e africanos que se acumulam hoje nos portões da Europa?
Rosa se reinventou em novas abordagens das alegorias
Também salta aos olhos na passagem da Portela as inúmeras citações a imagens que estão na memória da história da arte e da fotografia – de Frans Post e Eckhout às fotos clássicas de Charles C. Ebbets mostrando os trabalhadores em andaimes construindo os arranha-céus de Nova York. Além de explorar suas maiores virtudes, Rosa reinventou carros alegóricos como o do tatu, que subverteram antigos vícios de estilo. Sim, vícios e repetições: mesmo os maiores criadores os têm, mas justamente por serem grandes, conseguem eventualmente superá-los. Ao longo de sua brilhante história na avenida, Rosa insistia em carros pequenos e que geralmente repetiam o mesmo formato, de triângulo ou escada. Como as alegorias são aberturas visuais e conceituais dos capítulos que formam a narrativa de um desfile, a repetição de formato criava um desfile extremamente organizado e limpo, mas um tanto monótono. Além do citado tatu, que flutuava na avenida e abria sua carcaça, revelando componentes, o carro abre-alas, ainda em escada, foi subvertido em alegorias vivas. É sempre um prazer ver uma gigante revigorada e renascendo mais uma vez. Nos quesitos não estéticos, que formam a alma de um desfile, chamou a atenção a atuação da bateria da escola: a Tabajara fez com o que o samba explodisse, ao pontuá-lo com batidas de xotes e xaxados, marca da passagem de Nassau pelo Nordeste brasileiro.
SALGUEIRO
Para mim, em termos de conjunto, foi uma das melhores escolas do ano, mas não o suficiente para um campeonato, já que reeeditou um antigo enredo sobre poder feminino (Candaces, de 2007) e fez um desfile inferior àquele. Mas teve um samba que, embora não muito popular antes do desfile, aconteceu na avenida, além de canto e harmonias perfeitas, bateria excepcional e um desenvolvimento que, se não teve a exuberância e o arrojo de seu antigo carnavalesco, Renato Lage, compensou com a elegância e a minúcia de Alex de Souza, discípulo de Renato e de Rosa Magalhães. Nas fantasias, chamou a atenção o uso recorrente de saias vazadas, o que deu às roupas mais planos e texturas, mas também ofereceu aos componentes mais leveza para os movimentos.
Por que pintar a cara dos componentes de preto?
Os pontos baixos foram a utilização de máscaras de tinta negra (as black faces) na bateria e na comissão de frente. Em um enredo sobre cultura afro, em pleno século 21, tratar o tom da pele como fantasia foi uma bola muito fora do Salgueiro. No caso da comissão de frente, bastaria selecionar bailarinas negras para executar a coreografia, como a Vila Isabel fez com as mulheres grávidas no histórico Kizomba (1988). No caso da bateria, os ritmistas, em todas as escolas, são em sua maioria negros. O recurso, então, além de um tanto violento, foi completamente desnecessário. Outro ponto a se notar foi o fato de que, entre os destaques, até a que representava Xica da Silva era branca. Falha grave. Que tempos.
BEIJA-FLOR
A criatura de doutor Frankenstein não poderia ser espelho mais perfeito para o desfile realizado pela Beija-Flor de Nilópolis, talvez uma das mais confusas, multifacetadas e desconexas apresentações que o carnaval viu nos últimos tempos. A ponte entre o monstro abandonado por seu criador no romance de Mary Shelley e a realidade brasileira não foi realizada, deixando vários fios soltos na avenida. A crítica à corrupção foi quase o avesso da crônica política feita pela Tuiuti, reforçando o discurso moralista e faxineiro das várias facetas da classe média (a que roça a elite mais rica, a emergente) que embarcou em certa histeria verde-e-amarela, perigosamente apolítica e totalitária. É uma voz legítima, um ponto de vista, assim como há um ponto de vista no desfile da Tuiuti. Não há erro algum, em termos técnicos, na opção da Beija-Flor por essa linha. Mais do que isso, há certa coerência com a história da agremiação, que foi muito próxima da ditadura militar brasileira e recentemente foi campeã com um enredo sobre uma ditadura africana na festa mais afro do Brasil. É apenas uma opção, que transforma a escola de Nilópolis na mais contraditória e ambígua do Rio.
Agremiação é uma das mais ambíguas do carnaval
A Beija-Flor tem patrimônios como Neguinho, que começou como Neguinho da Vala, foi a voz do Cordão da Bola Preta, e hoje ajuda a formar novos talentos para o carnaval. Também tem Selminha Sorriso, porta-bandeira em atividade há mais tempo na avenida, uma das figuras mais queridas e mais atuantes nos bastidores de nosso carnaval. Nenhuma escola é mais comunitária, faz um ensaio técnico mais vigoroso e atua de forma mais decisiva no chão de onde brota, a precária Baixada Fluminense. Nenhuma escola exemplifica de forma mais cabal o lado mais complexo e vergonhoso do carnaval, o autoritarismo que emula os antigos coronéis e promove o casamento da história dos desfiles com a contravenção. Nada disso, no entanto, é penalizável pelas cabines de jurados, e nem poderia ser. Mas o fato é que a Beija-Flor fez um carnaval sem fio narrativo, em que as imagens vistas na avenida funcionaram como bolhas ou ilhas, ideias à deriva no curso do desfile. Foi assim com a farra dos guardanapos, crítica a Sergio Cabral. Foi assim também com as mortes dos policiais, com o prédio da Petrobras transformado em um conjunto retalhado de cenas urbanas, logo depois do navio e da geleira de Frankenstein. Foi assim também com a procissão de mendigos, mal amarrada homenagem a Ratos e urubus, e com o arrastão promovido em uma das alas – vergonhosamente com praticamente todos os bandidos com a pele tão negra quanto a maioria dos componentes da comunidade de Nilópolis. A Beija-Flor não fez carnaval sequer para as Campeãs, mas disputou o título e, apoiada pelos erros de suas concorrentes diretas, acabou vencendo.
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O olho nas ruas e espaços culturais do Rio e de São Paulo, sempre clicando e filmando cenas e eventos com rara sensibilidade para as redes sociais da revista.
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