Um percurso com Levantes, livro e mostra organizados por Didi-Huberman
“Incorporo a revolta” é a frase escrita no Parangolé P15 Capa 11, de Hélio Oiticica, e o texto acabou se transformando em subtítulo da obra, criada em 1967. E mesmo que não tenha sido esta uma obra de Hélio selecionada por Didi-Huberman, Incorporo a revolta também poderia uma síntese da exposição e do livro Levantes, ambos organizados pelo crítico e historiador. A mostra esteve em cartaz até janeiro no Sesc Pinheiros, em São Paulo; o precioso livro que a documenta – com textos do próprio Huberman, Judith Butler, Marie-Jose Mondzain, Jacques Rancière e Antonio Negri – segue em circulação e dando novas possibilidades de vida ao projeto do curador. Exposições são acontecimentos em determinado contexto de tempo e espaço, mas sua catalogação escrita e visual deixa lastros, e eles são os meios de reencarnação e de reincorporação daquelas ideias, imagens e sensibilidades.
Inaugurada em meados do ano passado, Levantes foi um dos acontecimentos mais ambiciosos e significativos do circuito brasileiro de artes visuais em 2017. E digo isso pensando em um ano bastante complexo, no qual cidades fora de um eixo de maior visibilidade midiática, como Sorocaba (Trienal Frestras, com curadoria de Daniela Labra), São Luís (criação do Chão por Samantha Moreira e Thiago Martins de Melo) e Florianópolis (criação e mobilização em torno do espaço cultural Veras) demonstraram a força que pode vir das margens em momentos de crise, golpe, obscurantismo, além de censura às artes.
Escolho falar de Levantes porque ela e ele – mostra e livro – me parecem ter a capacidade própria das grandes obras: a de ser sismógrafo que identifica movimentos, formas e narrativas prementes em determinado momento histórico. Ainda nessa categoria de eventos-esponjas, aqueles que capturam o momento, há dois recentes que preciso destacar, ambos realizados pelo Instituto Moreira Salles: Conflitos: fotografia e violência no Brasil 1889-1964 e Corpo a corpo – A disputa das imagens, da fotografia à transmissão ao vivo (o ensaio entra no ar aqui na Caju ainda essa semana). Conflitos é fruto de pesquisa e curadoria preciosas de Heloísa Espada, esteve em cartaz no IMS carioca e segue em breve para a sede paulista do Instituto. Corpo a corpo, com organização e textos de Thyago Nogueira, aproximou vídeos da Mídia Ninja a obras de artistas contemporâneos (Barbara Wagner, Jonathas de Andrade, coletivo Garapa, Letícia Ramos e Sofia Borges), esteve em São Paulo e chega no próximo mês de abril ao Rio de Janeiro.
Estas três curadorias aparentemente tão distintas têm caminhos comuns extremamente vivos e pulsantes: as relações que todas estabelecem entre corpo e embates políticos e sociais; entre corpo e imagem; e, em última instância, entre corpo e História. Levo em conta as montagens e expografias, pois percorri as mostras algumas vezes; mas me detenho sobretudo nos livros que elas geraram e que ficarão para o tempo.
Por ora, voltemos aos Levantes.
+++
Pensador faz uma espécie de autorretrato plástico com suas referências
Levantes dá corpo plástico a antigas preocupações de Didi-Huberman. Quem já leu seus livros ou esteve em uma de suas conferências no Brasil em 2016 (no Rio, ele fez um conjunto de apresentações no MAR e uma palestra na EAV-Parque Lage) o leu ou o ouviu falando de O Encouraçado Potemkin, de Eisenstein; da ninfa dançante florentina que se transformou em fóssil movente e vivo do mundo das imagens a partir da análise de Aby Warburg; da ideia de ruína e de derrota como mola propulsora da História em Walter Benjamin; da força renovadora da jovem Antígona, apesar da tragédia. Não é por acaso, portanto, que Levantes tem tanto poder mobilizador: o talento curatorial na reunião de obras e documentos (de várias épocas, procedências e suportes) é alimentado por uma pesquisa de raízes profundíssimas.
Não seria exagero dizer que Levantes é um projeto de vida, quase um autorretrato de Didi-Huberman como pesquisador. Isso não faz, no entanto, que seja uma iniciativa ensimesmada e autorreferente, como é próprio de muitas exposições contemporâneas e outras tantas pesquisas acadêmicas. Muito ao contrário: Levantes é atravessada pelos acontecimentos como ferida aberta na presente humanidade – “Primaveras”, êxodos, discursos de ódio e intolerância – e que dizem respeito a qualquer um que se disponha abrir mão, ainda que por instantes, das anestesias. Esta dor aguda do hoje é o agente a destampar as imagens de outros tempos, e elas muitas vezes se parecem com andrajos e ruínas a darem conta, como narradores sibilantes ou silenciosos, daqueles que se levantaram e foram vencidos.
Sim, Levantes é, de certa forma, um inventário de derrotados. Ao lembrar Walter Benjamin e seu livro sobre o teatro barroco alemão, Huberman enfrenta o que chama de “era plúmbea” – os desencantados séculos XX e XXI – reafirmando a História como as histórias “dos sofrimentos do mundo”. Faz isso assombrado por sua já citada biblioteca de influências, mas também por duas imagens e dois personagens. As imagens: O carregador (c.1812-1823) e Não farás nada com clamor (c. 1814-1814), ambas de Goya (acima). Na primeira, um homem quase não suporta o peso de um fardo; na outra um homem se levanta – e levantar-se também é uma exigência dos corpos que não suportam mais. Os personagens: os titãs Atlas e Prometeu, que ousaram uma rebelião contra Zeus e, vencidos, foram condenados a sofrimentos terríveis, mas também puderam descobrir, respectivamente, o saber e o fogo. Mesmo em meio aos destroços da derrota, estalam pequenas vitórias enviesadas dos rebelados.
No livro e na mostra, a sequência de obras e documentos, dividida em módulos, cria um arranjo cíclico que começa de forma bastante lírica, com fogos de artifício, superfícies esvoaçantes, fantasmas e outras aparições dando conta de uma noção de levante que é, antes de mais nada, um exercício de imaginação. Se eu estou em uma situação que me desconforta, posso imaginar uma outra – e a partir daí desejar o imaginado. O primeiro movimento se dá aí, insinua o curador. É o segmento das forças psíquicas e da fé, em que se destacam as fotos de Dennis Adams, como Patriot (Patriota, 2002), e os trabalhos When faith move mountains (Quando a fé move montanhas), de Francis Alÿs (abaixo), e Panoramic sea happening, de Eustacky Kossakowsky.
A seguir vem um módulo sobre gesto, com o vídeo Glass of milk (Copo de leite, 1971), de Jack Goldstein (abaixo, talvez uma das mais contundentes obras da seleção); as fotos de Marcel Gautherot das obras de Aleijadinho e de procissões em Congonhas do Campo, em 1947; e os flagrantes de Gilles Caron feitas no conflitos na Irlanda em 1969, entre outros trabalhos. O conjunto de imagens, cuidadosamente desordenado em termos cronológicos, tem o grande mérito de reforçar o levante como uma ação randômica, mas que se inicia no corpo de cada um. A tentativa de migrar o corpo e a existência – de um estado insuportável para outro que se deseja – é também uma ação no tempo.
Com Barrio, Cildo e Hélio, a escrita da resistência
“Depois dos braços se erguerem”, sugere o curador, “é hora de as bocas exclamarem”. E Huberman costura um conjunto de obras associadas à palavra, que vai de documentos do movimento Dada, de Artaud e de Pasolini (o cineasta é também uma das obsessões do pesquisador, onipresente em A sobrevivência dos vaga-lumes) a obras que dão muito destaque a uma produção contemporânea brasileira. Estão aí Seja marginal seja herói (1968), a um só tempo bandeira e manifesto de Hélio Oiticica; Inserções em circuitos ideológicos – Projeto cédula (1970), de Cildo Meireles, através do qual o artista infiltrou notas carimbadas com a pergunta-acusação “Quem matou Herzog?” no sistema de circulação de dinheiro, durante a ditadura militar; e Livro de carne (1978), de Artur Barrio. Esta última talvez seja uma obra significativa para um entendimento aprofundado sobre essa vertente de Levantes. Mais do que descobrir e evidenciar a poesia que pode existir em manifestos e panfletos, Huberman costura a indagação de como seria possível construir “um livro de resistência”. As páginas de Barrio, carne sangrenta, corpo morto-vivo que ainda se abre ao toque e à narrativa, apontam para respostas.
Quando o corpo levantado e em movimento encontra com outros corpos moventes, que se dispõem também a imaginar e a falar em conjunto, ocorre o que Judith Butler chama, em seu texto no livro, de “uma recusa comum ao intolerável”. Ou aquilo que Nietzsche enunciou como uma vontade de “quebrar o presente” e abri-lo para o futuro. Esta “quebra” não tem, no entanto, o sentido almejado pelas vanguardas modernas, de ruptura total, de solo arrasado ou marco zero. Os estilhaços do presente quebrado deixam vir à tona imagens e desejos de um passado submerso; e é com esse magma, brasa adormecida, que os levantes esperam roçar o futuro.
Huberman dedica o penúltimo módulo da exposição às barricadas e aos conflitos propriamente ditos. Estão nesse segmento trabalhos como Caixa otimista n. 1 (1968), de Robert Filliou, em que uma pedra de calçamento de rua é posta numa caixa, como uma joia, junto a uma plaquinha “We don´t throw stones at each other any more” (“Nós não jogamos mais pedras uns nos outros”); e fotos que compunham originalmente a instalação Waiting for tear gas (Esperando o gás lacrimogêneo, 1999-2000), de Alan Sekula, realizadas durante os protestos durante o encontro da Organização Mundial de Comércio (OMC), em Seattle, em 1999. Também está aí a foto de Malcolm Browne que mostra a autoimolação do monge budista Trich Quang Duc, que ateou fogo em si mesmo em Saigon, em 1963, para protestar contra a perseguição do governo vietnamita à sua religião. Imagens jornalísticas e documentais como esta se unem a outras, que são como dobras e reinterpretações de outros tempos, caso de À Versailles, à Versailles (1988), de Sigmar Polke, que cita a Revolução Francesa.
Trata-se do mais árido dos segmentos do projeto, e não por acaso: é sem dúvida o menos imagético, aquele que oferece menos vias de conexão e empatia com o espectador/ leitor através de sua própria memória. O que se explica pelo fato de serem as barricadas uma arquitetura efêmera e provisória; já os conflitos, que quebram praças, casas e corpos, produzem também imagens quebradas, de difícil absorção. Elas registram o que o curador chama de “carnaval negativo” (lindíssima metáfora, por sinal, criada por um autor que é muito pródigo com elas). E é entrando nesta atmosfera de quarta-feira de cinzas e quaresma que começo a me despedir deste não tão breve ensaio.
O ciclo de Levantes termina como a crônica de uma morte anunciada: levantados, como dito de início, geralmente são derrotados. Mas o último módulo desta curadoria arrebatadora, batizado de Por desejos (indestrutíveis), evidencia que, se é inevitável que o poder iniba e resfrie os insubordinados, é certo que haverá forças que sobrevivem a este poder. As lágrimas das mães argentinas da Plaza de Mayo, chorando por seus filhos desaparecidos, transformam ausentes em latentes, com o banho de água e sal curtindo a memória dos subtraídos. O poder estabelece limites, fronteiras, mas “sempre haverá uma criança que pule o muro”, escreve Huberman.
Em um mundo constantemente reconfigurado pelas guerras e suas migrações, a História se reafirma como a narrativa de nossas dores, mas também pode ser a coleção de descobertas sobre aqueles que estão ou vieram de um “outro lado”. A fricção de nossas diversidades segue gerando as fagulhas que iluminam, mesmo que de maneira efêmera, essa noite escura e fria em que a humanidade parece estar mergulhada. Levantes procura sugerir que é com estas fagulhas que a revolta pode um dia ganhar forma, no processo de incorporação sintetizado de manteira tão potente por Hélio Oiticica e seu parangolé. Enquanto esse dia não vem, os estalos luminosos no céu nos permitem ao menos imaginar como seria um possível amanhecer.
+++
ATUALIZAÇÕES EM JUNHO DE 2020:
Veja conferência de Didi-Huberman sobre a mostra, clicando aqui.
+++
A versão em português do livro Levantes teve a primeira edição esgotada. Os interessados devem “garimpar” em sebos, e valerá muito a pena.