Em Vista particular (2016), novo romance do escritor Ricardo Lísias, um artista plástico alcança a fama ao percorrer o trajeto do morro Pavão-Pavãozinho nu, requebrando o corpo num gingado que terminava com a mão desenhando caracóis nos cabelos. Na época das mídias sociais, mesmo sem saber se a atitude poderia ser definida como uma performance ou um surto psicótico, o importante é que a multidão acompanhou o artista pelas ruas de Copacabana e continuou acompanhando na internet, compartilhando as imagens em uma cadeia interminável, o que chama a atenção de empresários, estudiosos, jornalistas, críticos de arte… O livro de Lísias é uma crítica irônica e abrangente da sociedade brasileira atual, mas a cena acima pode ser usada também para abrir um texto como esse, que pretende pensar a literatura produzida nos dias de hoje, tendo a obra do autor como exemplo.
O que define o que é ou não literatura? Essa mesma pergunta já recebeu diferentes respostas ao longo da história, focando no seu conteúdo, no próprio ato da escrita em si, no formato do texto, em sua ligação com a ficção ou sua proximidade com a realidade. Nos dias de hoje, uma série de teóricos já ressaltou que os textos literários contemporâneos têm fronteiras tão fluidas que chega a ser difícil classificá-los como literários ou não. As argentinas Josefina Ludmer e Florencia Garamuño são exemplos nesse sentido. Em uma época em que as obras extravasam o objeto livro e chegam às redes sociais; os textos literários ganham a aparência de diários, misturando o protagonista com o autor da obra; a reunião de elementos díspares, como a previsões do tempo, textos de santinhos de políticos e conversas aleatórias, pode ser classificada como romance, espanta que o anúncio do compositor Bob Dylan como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura 2016 possa ter causado tanto espanto. Apenas por conta do suporte: suas poesias são cantadas, em vez de escritas em livros.
A obra que o escritor Ricardo Lísias vem construindo é um bom exemplo desse panorama atual. Na época do lançamento do romance Divórcio (2013), Lísias defendeu em entrevista[1] que a literatura deve provocar reflexão e pensar a sociedade e seus espaços de poder. Há sempre críticas a diferentes setores da sociedade em seus romances. Mas outra característica marcante de seus textos é a experimentação de formatos, que muitas vezes faz com que suas criações pareçam performances literárias.
Na série de textos Delegado Tobias, publicada em 2014, por exemplo, a história foi sendo publicada aos capítulos, em curtos e-books, que o leitor podia ir adquirindo aos poucos. Mas a trama, que trata do próprio assassinato do autor e tem o escritor também como suspeito, numa reflexão extrema sobre essa personalidade múltipla, se estendeu pelo Facebook. Na rede social, o delegado Tobias tinha um perfil, que interagia com o do próprio escritor. Além de o processo sugerir uma reflexão crítica sobre a relação da produção artística contemporânea com um acirrado mercado editorial, o texto acaba ganhando um status de performance. Uma obra que extravasa também os seus limites físicos.
Outro que se liga à ideia de performance é Inquérito policial (2016). O livro, inspirado na acusação que o autor recebeu em 2015 por ter, teoricamente, divulgado em um de seus romances um documento oficial, copia de forma exata o formato de um inquérito. O texto só pode ser encomendado pela internet e o leitor que compra recebe em casa uma apostila, com papéis anexados, provas de uma investigação criminal. Em cada documento pequenas narrativas de membros de uma mesma família. O conjunto de papéis compõem a história do romance.
O autor ainda divulga constantemente sua rotina nas redes sociais. Uma agenda cada vez mais lotada de encontros com leitores, compromissos profissionais que se misturam com fotos de família e reflexões sobre política. Toda a iniciativa interfere e contribui para a interpretação dos textos, já que gera uma reflexão sobre as atitudes que um escritor precisa adotar nos dias de hoje para driblar pressões de mercado e imprensa. Toda uma gama de demandas que atingem os autores contemporâneos.
É por todos esses motivos que a obra de Ricardo Lísias parece tão interessante para refletir sobre a literatura desse século. O autor vem escrevendo textos que colocam em balanço a produção literária (Para que serve? Como agir? Qual a função do autor? Que pressões interferem na obra?), em um momento em que a própria parece estar em reavaliação.
Analisar seus textos em conjunto é levantar questões que extravasam sua obra. Seus escritos poderiam ser classificados como uma espécie de performance literária? No Brasil, entre os primeiros registros de performance estão a do artista modernista Flavio de Carvalho. Em 1931, ele realizou em São Paulo o que chamou de experiência número 2: caminhou de chapéu em sentido contrário a uma procissão de Corpus Christi no Centro da cidade. O movimento é significativo e indica a tentativa de quebra de padrões, de andar contra os sentidos estipulados. Um simples ato que faz pensar e chama a atenção do público.
Para Renato Cohen (2004), a definição de performance está associada a uma experimentação artística, que evoca a participação da audiência, em um trabalho de resignificação e elaboração de novos sentidos do mundo. De acordo com a definição de Cohen e tomando a performance de Flavio Carvalho como uma reflexão sobre a própria iniciativa artística é possível encaixar a produção de Lísias nessa ideia: quebra padrões, chama a atenção do leitor e procura desenvolver uma reflexão crítica sobre a própria literatura.
Vista particular, seu último um romance, é carregado de críticas. O artista plástico criado por Lísias nunca dá entrevistas, nunca se pronuncia. Vive isolado, teoricamente, refletindo sobre o seu trabalho. Se o seu gingado até o mar foi uma performance ou um surto, vai ser tarefa dos estudiosos definir e escolher que definição adotar. Há uma pressão do mercado por trás das análises. Diante do sucesso que os vídeos compartilhados na internet apresentam, é mais vantajoso classificar o artista como um gênio do que rotulá-lo de doente. Logo após essa iniciativa, o protagonista resolve criar uma obra que funciona com um tour no morro Pavão-Pavãozinho, com paradas em locais que ganham títulos como: “Local em que a polícia pega a parte dela” e “Impossível entender como não cai”.
Há todo momento o narrador faz também paradas no texto, que fazem o leitor pensar que está diante de algo como um roteiro. Páginas totalmente em branco mostram legendas como: “Frame do vídeo postado pelo traficante Biribó no Youtube. A imagem corresponde aos 6:42 minutos do filme” (LÍSIAS, 2016, p.27). Incitar o leitor a criar significações, mas, ao mesmo tempo, exibir o espaço totalmente branco é fazer com que este leitor crítico duvide das próprias teorias que poderia desenvolver.
Diante de tantas reflexões, tentar encaixar o texto em um determinado gênero, analisando características relacionadas ao formato ou ao suporte que utiliza, é o que menos importa. E Lísias é apenas um exemplo do que muitos autores contemporâneos vêm produzindo, em relação à mescla de formato e experimentações.
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[1] “Creio que haja no Brasil uma ficção bem comportada em termos formais e que não cria nenhuma tensão com a sociedade e nem discute nenhum espaço de poder. É uma ficção que, embora vista como se fosse ‘literatura’, não incomoda ninguém, o que acaba inclusive facilitando sua recepção imediata. Creio que inclusive exista mesmo quase um gênero no Brasil, o da “ficção que não incomoda”. g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/tag/divorcio/ (consulta em outubro de 2016).
Autores
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Doutora em estudos de literatura, crítica literária, pesquisadora, professora e jornalista.
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