O texto literário, ao ser traduzido para outro meio, tem a especificidade de nos convocar, pela leitura, para um jogo sinestésico em que as correspondências visuais, auditivas, táteis, com manifestações de outros sentidos – paladar/olfato – emergem dos signos verbais e não-verbais em movimento, tecendo o fio em que se enredam essas sensações, em uma espécie de processo de alquimia que poucos diretores dominam com maestria. A significação final produzida, a partir dos sentidos, vai se impondo no espaço entre obra e leitor, realização e espectador, de tal forma que se esvaem os limites nessa interação. Diante dessa experiência, vemo-nos, em segunda instância, diante de um leitor ousado que, recriando sentidos, faz-se como um realizador autoral que, a cada nova minissérie, estabelece uma continuação de suas obras anteriores, fundando sua própria tradição, mas, principalmente, inaugurando e despertando plurais sentidos para o cenário do audiovisual brasileiro. Sem ineditismo na convocatória, estamos falando do diretor Luiz Fernando Carvalho, re-inventor da tradição e vanguardista, e sua lavoura-equipe magistral que inaugura, dia 9 de janeiro, seu mais novo diálogo com a literatura do escritor manauense Milton Hatoum.
As realizações televisivas de Carvalho consistem em um processo de profunda pesquisa, enfrentamento do texto e emergência das possibilidades de diálogo, tanto com o texto a ser trabalhado como, e principalmente, com o repertório de leitura que o autor do texto em questão imprime em suas produções. Esse resgate pode ser construído na obra transposta para um novo meio, que oferece diversas possibilidades de compreensão, que remete não somente ao autor da obra literária, mas a esse Carvalho autoral que consegue, antropofagicamente, transpor o que era do universo literário da obra e do autor.
Desde suas primeiras obras audiovisuais para a TV, encontramos um intenso trabalho que ora joga, ora mescla com os limites existentes entre a palavra e a imagem sequencializada por um suporte sincrético. Tal trajeto estético passa, desde a realização do seu filme Lavoura arcaica (a partir do livro homônimo de Raduan Nassar), pela série Os Maias (a partir do romance de Eça de Queirós) e, de forma ainda mais evidente, pelas minisséries Hoje é Dia de Maria (primeira e segunda jornadas, a partir do texto dramatúrgico de Carlos Alberto Soffredini), A Pedra do Reino (transposição do Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna), Capitu (aproximação do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis), Alexandre e outros heróis (a partir da releitura de dois contos do escritor Graciliano Ramos, intitulados O olho torto de Alexandre e A morte de Alexandre), só para citarmos alguns de seus trabalhos com obras notórias da literatura brasileira.
Para o diretor, há uma preocupação educacional com os conteúdos selecionados para seus projetos e que passam pela escolha de obras notórias do cânone, mas aliadas à questão principal da valorização do universo brasileiro e afirmação de nossa identidade em uma educação dos sentidos. Há todo um cuidado na ressignificação da palavra ao ser transformada em imagem pelo processo de transposição de Carvalho, que chega a consolidar uma missão estética e educacional de fazer e apreender obras literárias transpostas para um formato televisivo popular, de grande alcance. Contudo, o que parece diferenciar Carvalho é o estabelecimento de um estudo aprofundado da obra, da crítica, da tradição, e, principalmente, das reverberações que a produção dos escritores selecionados produzem no cenário ficcional. Tais contribuições nos permitem, ainda, considerá-lo como um diretor que parece estar firmando, também, seu lugar em nossa literatura televisiva. Como se, além das referências audiovisuais, a obra de Luiz Fernando constituísse também uma referência literária, uma espécie de crítica contemporânea e em novo suporte, da literatura.
Com sua mais nova minissérie no ar, o caminho a ser trilhado não poderia ser diferente, uma vez que temos um estilo autoral sendo solidamente construído em seu cenário de atuação no campo do audiovisual brasileiro. A partir da obra Dois irmãos, (2000) do escritor Milton Hatoum, a minissérie homônima de dez capítulos escrita por Maria Camargo, com direção artística de Luiz Fernando Carvalho, traça um refinado e ousado registro estético de uma das vertentes culturais da formação do povo brasileiro, a partir do entrelaçamento entre a história de uma tragédia familiar em constante analogia rítmica com a própria reconstrução da história da imigração árabe, da cultura indígena amazônica e sua consequente miscigenação. Fugindo de uma visão exótica da Amazônia e dos árabes, sem delinear estereótipos, temos a construção de um mosaico de nacionalidades e estratos sociais atualizado, questionador. Preservando as camadas de linguagens essenciais à narrativa hatouniana, o roteiro de Maria Camargo estrutura-se de modo ágil, poético, com simbologias apuradas que permitem aos leitores das obras de Milton Hatoum o reconhecimento das vozes literárias tantas que permeiam o trabalho do escritor em questão.
Há, na minissérie, um narrar do que é significativo para a encadeamento narrativo. Para tanto, temos uma leitura que se faz em cascata: a leitura que Camargo fez de Hatoum e a leitura que Carvalho e equipe, por sua vez, organizaram com as demais camadas de linguagens próprias do audiovisual. Todas, porém, ao partirem do romance, recuperando e atravessando com suas próprias vozes e seus próprios repertórios, não negam, em nada, a literatura que Hatoum perfila; há, agora, Dois Irmãos, ecoando três leituras possíveis plasmadas pela encenação imagética, todas em uma só obra, todas em uma só voz.
Ao dialogar estritamente pela forma, a lavoura de Carvalho gera correspondências, homologias e coloca, no mesmo plano expressivo do meio televisivo, todas as diferenças: de cultura (erudito x popular), de sistemas (verbal x visual) e códigos, meios e suportes (literatura, cinema, TV). Ideologicamente, as diferenças sistêmicas do Brasil aproximam-se e interagem no plano artístico da linguagem audiovisual: o arcaico e o moderno, o mais regional e o nacional e os mais variados gêneros discursivos, colocando tudo isso no plano da ficção, no plano da arte, uma vez que a ilusão mimética foi desmascarada. É o plano da arte que contemplamos, não da realidade, mas da supra-realidade (ficção, fábula).
A opção por preservar o narrador Nael como protagonista central – enquanto aquele que detém todo o conhecimento da história a ser contada – contracenando com Halim mais velho, narrando também suas memórias já afetadas pela velhice e pelos afetos que o circundaram, no curso das águas do Rio Amazonas, configura o movimento próprio do romance e da leitura que podemos fazer dele. “Ter como narrador o excluído, o índio, é uma metáfora da nossa miscigenação”, afirma Carvalho. A alternância dos tempos narrativos contados, seja por voltas ao passado, seja pelas presentificações das ações presentes que vão e vem, potencializada por um trabalho minucioso de fotografia e de ambientação cênica, reforçam o caráter memorialístico tão caro a literatura de Milton Hatoum. E são dessas memórias, desses fragmentos do vivido e do perdido, que as ruínas da família de Zana e Halim serão contadas, encenadas. A decadência de uma Manaus que perderá sua identidade, desde o declínio do comércio da borracha à criação da Zona Franca, dialoga com o próprio desfecho trágico da tensão existente, pontuada por diferenças gritantes, desde o nascimento, dos irmãos gêmeos Yaqub e Omar.
Sabemos que as vinhetas de abertura normalmente determinam o clima, a época e, eventualmente, o gênero da série, conduzindo, assim, a leitura do espectador. Nesse sentido, merece destaque o trabalho realizado com a vinheta de abertura de Dois Irmãos, exibida pela primeira vez aos 40 minutos do primeiro episódio, ao indiciar, por intermédio de nuances de aquarela de pinturas da história ocidental o delinear das figuras bíblicas de Caim e Abel, motivos romanescos explorados pelo romance de Milton, assim como dois outros grandes textos que configuram as entrelinhas do romance, “o Esaú e Jacó, do Machado e um conto extraordinário de Flaubert: ‘Um coração simples’”, conforme declarou Hatoum em entrevista para O Popular (2015). Há, ainda, um eco evidente com o trabalho primoroso realizado na leitura fílmica (2001), dirigida também por Carvalho, do romance Lavoura arcaica (1975), do escritor Raduan Nassar. Da aproximação da tradição libanesa, aos costumes cotidianos de uma família marcados pela tensão de um incesto concretizado e/ou sugerido, temos, evidentemente, em Zana, Halim, Omar e Yaqub, um espelhamento de “A mãe” /Ana, “O pai”, André, Pedro, personagens centrais da tragédia de Nassar. A Zana de Hatoum, na leitura de Carvalho, pode perfeitamente espelhar uma “zANA”/mãe de Raduan, no modo como materializa em gestos, olhares e ações, o caminho de um desejo que pende para o sagrado, pende para o profano.
A tensão sexual que percorre as linhas e as veias da narração extrapolam as paredes e as fibras da rede que sustentam Zana e Halim, pulsações puras, ecoando em movimentos pendulares com a literatura universal sobre o tema. Para o diretor, “Dois Irmãos é um drama familiar que conta nas entrelinhas o drama de um país, de uma região”. A dimensão do real, na minissérie, assim, é trabalhada de modo também estrutural, pelos efeitos construídos pelo material de pesquisa trazido de arquivos das imagens de época do Brasil e do exterior e que criaram, para a trama, o tom ao mesmo tempo memorialista e realista da obra em questão, bem como sustentou a ilusão pretendida e o fingimento consentido, próprios de toda ficção, de que algo poderia ter acontecido (e efetivamente aconteceu) nessa realidade atestada pelas imagens. É História dialogando de modo entrelaçado com a história da família. Do macro ao micro, o movimento de interpenetração do relato de ascensão e decadência real de Manaus dialoga diretamente com a “estória” de uma de tantas outras famílias libanesas que viveram e vivem em seus dramas individuais.
A realização artística de Carvalho, assim, opta por um esgarçamento do real fabricado, selecionando as passagens do romance que mais se aproximam do que podem ser considerados fatos concretos, plausíveis e verificáveis na História, para combiná-los na minissérie, por intermédio dos recursos de plano-sequências montados a partir de fotografias de arquivo em preto e branco, deixando claro, assim, de modo lúdico e escancarado, o que é História e o que é história e como a vida e os fatos (e, claro, a arte) se reverberam. Cenas do cotidiano de Manaus, com navios no Porto, o bonde, a volta dos Pracinhas na Segunda Guerra, a Cidade Flutuante, os desfiles de 7 de Setembro, as manifestações estudantis durante o período da ditadura militar, etc produzem, além de um efeito de sentido de quebra (e, ao mesmo tempo, de denúncia) com a realidade da narrativa em si, um efeito de atemporalidade para a história, situando-a, assim, tanto em todo e qualquer tempo.
A presença do Exército durante o regime militar, o começo e a extinção da cidade flutuante de Manaus, o crescimento populacional desordenado, o empobrecimento e a modernização trazida pela Zona Franca revestem os cenários, ambientam as falas, constroem panos de fundos que, progressivamente, para a trama, estruturam e problematizam temas tão atuais, conferindo o trabalho com a universalidade da obra um dos pontos altos do diálogo criativo realizado por todas as camadas de linguagem envolvidas na encenação televisiva.
De notório e marcante ressoo, a musicalidade presente na trilha sonora produz um efeito de sentido que evidencia a tensão existente entre o erudito e o popular da minissérie que permeiam a minissérie como um todo, perpassando os ritmos primitivos norteadores do conteúdo da história até o jazz mais puro e notório da música universal.
Sabemos que todo trabalho de criação coloca sempre em crise uma tradição. No caso específico dos trabalhos de Luiz Fernando Carvalho, pode-se pensar que a tradição colocada “em xeque” vem a ser dupla: é a tradição literária e a tradição fílmica. Há uma reverberação e confluência na minissérie não só de invariantes temáticas e estilísticas– própria do diretor – como o mesclar de estéticas dos escritores e diretores cinematográficos que circundam ou que ressoam o universo das obras aproximadas. Preferindo sempre um diálogo criativo, responsivo, com a obra literária, a tensão criada pela exploração da alta cultura caindo na tentação de se tornar algo popularizante evidencia a marca autoral de quem se arrisca em escrever encenando, na televisão, novos e possíveis caminhos.

O que temos, portanto, é mais um esboço de um caminho de leitura realizado, um ensaio crítico e aprofundado do processo de transposição do literal para o imagético, do que somente a verificação da passagem de um texto para outro sistema e que, desde sempre, erroneamente, interessou a alguns estudos comparativos entre cinema, televisão e literatura. Para um público majoritário de entretenimento de massa, com interesses heterogêneos e dispersos, tal possibilidade de leitura a partir dos trabalhos de Carvalho, na Rede Globo de Televisão, pode inaugurar um espaço para uma produção mais reflexiva, mais voltada para a fratura de outros sentidos, que vem merecendo destaque e análise, devido a tantas iniciativas propostas, inclusive, por demais diretores, com seus modos distintos de lidar com o material ficcional. A literatura de Milton Hatoum ganha, merecidamente, a leitura de um diretor que faz saber ao público o que sabe, o que pode, o que faz e o que sente em sua lavourAmazonense recriada. Carvalho e equipe, juntamente com o majestoso elenco de Dois Irmãos – corporificações plenas dos seres de papel de Hatoum – constroem, inquestionavelmente, uma capa nova para o livro já expoente de nossa literatura nacional. Inaugurando o novo projeto #AssistaAEsseLivro, da Rede Globo de Televisão, temos, na republicação pela Companhia das Letras, do mesmo livro de Hatoum, somente com a capa composta pelas imagens dos gêmeos crescidos e protagonizados por Cauã Reymond, a síntese perfeita do trabalho grandioso produzido: Dois irmãos, de Hatoum-Carvalho, Carvalho-Hatoum, cada um dentro do outro, atualizando ou retomando, como diria o eterno narrador machadiano, “como a fruta dentro da casca”.