É espantoso como as músicas de Dona Ivone Lara – ela que hoje completa 96 anos – remetem a ancestrais cantigas de domínio público. Parece que suas sinuosas melodias estão imemorialmente gravadas no inconsciente coletivo e Dona Ivone apenas as retira de lá para, a exemplo de uma Iabá, fazer com que breves instantes de transcendência possam rasgar vez por outra a malha ordinária do dia-a-dia. A essa formidável capacidade, somam-se outras.
Foi ela, por exemplo, a primeira mulher a assinar um samba-enredo – e não se trata de um samba qualquer, mas de “Os cinco bailes da História do Rio”, parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau, que o Império Serrano levou à Avenida em 1965. Foi ela, também, a responsável pela criação de pérolas como “Sonho meu”, “Acreditar” (ambas com Delcio Carvalho), “Mas quem disse que eu te esqueço” (com Hermínio Bello de Carvalho) e “Enredo do meu samba” (com Jorge Aragão), que integram sem favor o rol dos maiores clássicos do nosso cancioneiro.
Além disso, saindo de uma infância pobre e de um núcleo familiar iletrado, formou-se assistente social e enfermeira, e trabalhou com a Dra. Nilse da Silveira na aplicação das terapias que revolucionaram, nos anos 1970, o tratamento psiquiátrico. Essas tantas facetas se amalgamam na singularidade de uma personagem que é mito e sinônimo de canção, referência e signo da ancestralidade africana. Dona Ivone experimentou em âmbito radicalmente íntimo o encontro entre popular e erudito que viria a dar contornos particulares à música brasileira. Provinda de uma família de sambistas e chorões – a mãe desfilava em ranchos, o pai tocava violão de 7 cordas -, estudou canto orfeônico no internato público, onde permaneceu dos 10 anos até a maioridade. Na escola, chegou a ser aluna de Dona Lucília Villa-Lobos, então casada com o maestro. Curiosamente, Dona Ivone também teve aulas de música com Zaíra de Oliveira, a primeira esposa de Donga.
Aos 12 anos, estreou como compositora. Estava em casa, acompanhada dos primos mais velhos, Hélio e Fuleiro, que lhe deram um passarinho. As brincadeiras com o bicho inspiraram “Tiê-tiê”, canção ainda hoje incluída em seu repertório. E Fuleiro, que mais tarde viraria baluarte do Império Serrano, acabou se transformando num dos principais responsáveis pela caminhada de Dona Ivone no mundo artístico. Foi o primo, na verdade, quem começou a cantar as músicas da compositora em rodas de samba. E o fez a pedido da própria, que, ainda jovem e intimidada com o domínio masculino em tais espaços, procurou-o e propôs que apresentasse suas canções como sendo dele.
Dona Ivone frequentava essas rodas, inclusive a que ocorria na casa de Seu Alfredo Costa, o comandante da Prazer da Serrinha. Lá, conheceu o futuro marido, Oscar (filho de Seu Alfredo), e começou a ganhar confiança para apresentar publicamente seus sambas. Quando um grupo dissidente deixou a Prazer da Serrinha e fundou o Império Serrano, ela foi junto. Corria, então, o ano de 1947, e Dona Ivone passou a integrar oficialmente a ala dos compositores da nova escola.
Como sempre se preocupou em manter a estabilidade financeira que lhe garantia a independência, somente após a aposentadoria a artista pôde se dedicar exclusivamente à música. O primeiro disco, uma coletânea ao lado de Clementina de Oliveira e Roberto Ribeiro, foi lançado em 1970, ano em que ganhou também a alcunha consagrada: por sugestão dos produtores Oswaldo Sargentelli e Adelzon Alves, a Yvonne Lara do registro em cartório deu lugar a Dona Ivone Lara.
Sem se encaixar em nenhum dos tipos mais conhecidos no meio do samba – não é ‘tia’, nem passista, nem musa -, Dona Ivone entortou o destino previamente traçado para uma mulher de sua origem e de seu tempo. Em quase nove décadas, foi esposa, mãe, enfermeira, assistente social, artista na essência mais plena do termo. Impôs-se como pérola rara (que é) e construiu uma vida tão rica que daria até enredo de carnaval. E deu: em 2012, o Império Serrano lhe prestou na Avenida a merecida homenagem. Ganhou o carnaval, embora não tenha levado a taça.
*Na imagem no alto do post, Ivone Lara ao lado de Clementina de Jesus
Autor
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Escritor e jornalista. Autor, entre outros, dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Crônicas), "Rua de dentro" (Record), "Ferrugem" (Record), "Na dobra do dia" (Rocco), "A palavra ausente" (Rocco) e "Somos todos iguais nesta noite" (Rocco). Organizador de coletâneas como "O meu lugar" (com Luiz Antonio Simas, Mórula) e "Canções do Rio" (Casa da Palavra).
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