ATUALIZAÇÃO DOS EDITORES: Nem bem publicamos o texto de Manuela Trindade Oiticica falando do Blocódromo e o bispo prefeito anunciou que desistiu do “empreendimento”. O vai-não-vai só torna a crônica escrita pela compositora e foliã, agora super cajuína, um registro ainda mais contundente do descaso do bispo Crivella com a cultura carioca. E o que essa caricatura de Lin Lima? Rei MONO até ficaria nu, não tivesse obrigação de ostentar sunga do patrocinador.
Confraria. Encontro de amigos de bairro. Reunião do time da pelada. Afinidades políticas, etílicas. Uma piada levada adiante. Um bloco pode ter muitas razões para existir.
Tem o pessoal que se juntou no final da década de 80, período de redemocratização do país, e ganhou as ruas da Zona Sul criando sambas com sátiras políticas; há os que elevaram o vira-lata de estimação do botequim à condição de estandarte em algum lugar na Zona Norte; tem a molecada que aproveita o anonimato de máscaras para criar identidades coletivas em grupos de Clóvis da Zona Oeste; nas ruas do Centro, a mistura é de cordões tradicionais, batuques afros e um sem número de blocos que não têm camisa, itinerário nem repertório definido. Catarse. O carnaval de rua é o antiherói da cidade.
E tem o blocódromo.
Houve um tempo em que era preciso dizer: berimbau não é gaita. Com Eduardo Paes, por exemplo, a cada foto com chocalho e chapéu panamá em Madureira cabia o alerta de que os maiores investimentos da prefeitura eram direcionados pra Barra da Tijuca e seus moradores, e não pra Zona Norte – de obras a transporte público (lembre aqui).
A prefeitura do bispo Crivella às vezes nos poupa desse trabalho de desvendar aparências. No último dia 11, o presidente da Riotur anunciou que a Arena Carnaval, como eles mudernamente chamam o blocódromo a ser inaugurado, foi criada para “gerar acontecimento na Barra da Tijuca”, uma vez que, segundo ele, a região tem “a rede hoteleira com menor ocupação no carnaval”. Carnaval de rua pensado para salvar os donos de hotel. Não fui eu quem disse.
Já tomamos de 7 a 1 e subimos 19 vezes ao pódio olímpico, mas o legado dos grandes eventos – com seus elefantes brancos, obscuras parcerias público-privadas e controle de manifestações públicas – parece não ter fim.
O blocódromo, e o tiro que ele desfere em direção à alma encantadora das ruas, é a versão momesca disso. Com o valor de R$ 3,3 milhões e construído no Parque dos Atletas, é chamado de Arena Carnaval, tem camarotes para convidados e está sendo apresentado com a famosa frase “não tem um real de recurso público”. Meu São Sebastião do Rio de Janeiro, iluminai as nossas memórias: a gente já ouviu isso antes.

A festa popular inoculada com os fundamentos de cidade-empresa – o que, não se espante, já estava sendo feito por Paes com seu carnaval azul-Ambev. Assim, de uma tacada só, se intrometem no reino de confetes-e-serpentinas de sarjeta o pacote de área VIP, mesas bistrô, banquetas altas, sofás de dois lugares e 64 pufes – parte da estrutura anunciada pela arena.
Se a maldita reforma da Previdência de Temer foi escrita na gramática dos donos de previdência privada, o carnaval do Crivella está sendo combinado com os grandes empresários da cidade. E para além do blocódromo. A AmBev (leia-se Antártica) e a Dream Factory (leia-se produtora do Rock in Rio) tiveram seus contratos de monopólio das ruas ampliados. Junto com isso, haverá toque de recolher dos blocos, vigilância com câmeras bigbrother e mais gente pra mandar os outros pro paredão – a equipe de segurança vai da Força Nacional (!) a agentes privados. Sem contar a maravilhosa contribuição de fiscal de vendas que a Guarda Municipal presta, com o aval da prefeitura, pra AmBev, ao obrigar os camelôs a trabalharem com uma única marca de cerveja. Completando o cenário, o prefeito cortou parte da verba das escolas de samba e se negou a promover os gratuitos e populares ensaios técnicos – preferindo fazer um “grande encontro do samba” na turística Avenida Atlântica.
Das eleições até agora, o que Crivella mostrou é que sabe cantar Pega no ganzê e fazer paródia com o Samba da minha terra (quem não gosta de samba/ “bom prefeito” não é). Bacana, já pode se inscrever no The Voice. Mas a cultura anda precisando menos do repertório musical do bispo e mais de uma política que respeite a grandeza criada pelos moradores dessa cidade há incontáveis fevereiros e em incontáveis esquinas.
Nossa guerra é de confetes, nossa arena é a rua. A cidade mata a sede no suor de Macunaíma – e não nas mirabolâncias enlatadas nascidas à luz do datashow.
Autores
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Compositora, escritora, batuqueira e foliã. Compôs, em parceria com Rodrigo Lessa, todas as canções do CD "Rueira", de Marina Iris. Tem contos publicados nas antologias "Contos do Rio" e "Conversas de botequim", entre outras.
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Compositora, escritora, batuqueira e foliã. Compôs, em parceria com Rodrigo Lessa, todas as canções do CD "Rueira", de Marina Iris. Tem contos publicados nas antologias "Contos do Rio" e "Conversas de botequim", entre outras.