Na véspera do Halloween de 1938, nos Estados Unidos, o clima era de tensão: a Segunda Guerra estava prestes a eclodir e refluxos da Grande Depressão de 1929 ainda eram sentidos. Nesse contexto, Orson Welles realizou o que pode ser considerado a primeira ação de mídia tática: a transmissão radiofônica teatralizada de uma adaptação do livro A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, que devido ao grau de naturalidade com que foi realizada causou pânico em milhões de pessoas, que acreditavam estar vivenciando uma invasão alienígena. A TV ainda dava seus primeiros passos, enquanto o rádio vivia sua era de ouro, sendo o meio de comunicação mais influente. Por meio dele, a população recebia informações sobre a situação europeia e sobre desastres locais, sendo comum a interrupção de sua programação para a apresentação de boletins oficiais. Devido ao grau de influência do rádio naquele momento, a ação de Welles – que mais tarde tornaria mundialmente conhecido como diretor do filme Cidadão Kane – resultou na sobrecarga de linhas telefônicas, aglomerações nas ruas e congestionamentos, e deixou, após o esclarecimento dos fatos, um alerta sobre o poder de persuasão dos meios de comunicação.

A transmissão de Guerra dos mundos, que acaba de completar oito décadas, aconteceu 60 anos antes da criação do termo “mídia tática”, mas poderia ser uma matriz para ele e para a exposição Arte-veículo, em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, até 2 de dezembro. “Mídia tática” foi uma expressão firmada na década de 1990 na Europa e Estados Unidos, para designar uso crítico de novas e velhas mídias para fins não comerciais, de modo subversivo. Uma frase proferida por Jello Biafra, ex-vocalista da banda de punk rock Dead Kennedys, tornou-se lema da prática artística: “Não odeie a mídia, torne-se a mídia”. Tal ideia incita não apenas a criação de meios alternativos de circulação de informação, como também a apropriação dos meios de comunicação hegemônicos, de modo a criar ruídos em sua programação, utilizando-os a favor de si.
É a esse tipo de ação que se dedica Arte-veículo. Com curadoria de Ana Maria Maia, a exposição é inspirada no livro homônimo, lançado pela curadora em 2015, que se dedica a investigar intervenções na mídia de massa brasileira. A seleção no Sesc Pompeia conta com 47 artistas e grupos que criaram ruídos nos meios de comunicação brasileiros ou que se apropriaram de suas linguagens para a criação de trabalhos artísticos.

Antonio Manuel apresenta a série Clandestinas (1973), realizada ao acessar a arte-final do jornal O Dia e substituir imagens e textos, criando tiragens alternativas – que o artista levou pessoalmente às bancas e misturou a outros exemplares – intercalando notícias reais e ficções de conteúdo absurdo. O mesmo artista apresenta o trabalho De 0 a 24 horas, um encarte incorporado a um jornal em 1973 que reúne trabalhos que foram pensados para sua exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que havia sido cancelada pelos próprios organizadores, pois temiam que ela pudesse gerar situações problemáticas ao museu e ao artista – lembrando que o Brasil, naquele momento, vivia a repressão da ditadura militar. A ação de Antonio Manuel resultou em uma exposição de 24 horas, o tempo de duração de um jornal, e aconteceu exclusivamente em suas páginas. Em uma nota incluída no encarte, o artista afirma que “o espaço do MAM, das Galerias, tornou-se pequeno em relação aos veículos de massa”.
Grande parte dos trabalhos expostos em Arte-veículo foram realizados durante a ditadura militar, tempo em que se buscava táticas para fugir da censura. O nome de Paulo Bruscky é um dos que mais se destacam nesse contexto, uma vez que se tornou expoente da Arte Correio, uma das táticas adotadas para escapar dos censores. Em Arte-veículo, Bruscky apresenta uma série de intervenções em classificados de jornais, entre elas o anúncio de uma máquina de filmar sonhos com filmes, que possibilita ao consumidor assistir a seus sonhos enquanto toma café da manhã. O anúncio fictício de Buscky subverte a lógica publicitária daquele espaço e aparece no meio de anúncios de outras máquinas, causando estranhamento no leitor do jornal.
Além da utilização de jornais como suporte para experiências artísticas, a exposição também apresenta possibilidades de utilização da imprensa como extensão de trabalhos efêmeros, como faz o grupo paulista 3Nós3. A primeira ação do 3Nós3 – composto por Hudinilson Jr., Mário Ramiro e Rafael França – foi realizada nas ruas de São Paulo em 1979, no momento da anistia, e consistiu na cobertura das cabeças de esculturas em praças públicas com sacos plásticos, como se fazia em torturas por asfixia. Os integrantes do grupo realizaram a ação de madrugada e telefonaram anonimamente para os principais jornais de São Paulo, fazendo-se passar por cidadãos perplexos com aquele suposto ato de vandalismo. Desta maneira, o trabalho clandestino, realizado de madrugada e destruído horas depois, sobreviveu nas páginas dos jornais e alcançou um público maior. O 3Nós3 se apropria da mídia de massa para seu próprio benefício. O grupo estrategicamente faz com que os jornais financiem a impressão e distribuição de seu trabalho, considerando o alto custo que teria a reprodução de fotografias com a mesma tiragem se realizada pelos próprios artistas – então estudantes de graduação.

A década de 1980, comumente lembrada pela Geração 80 e pelo “retorno à pintura”, é representada na exposição por trabalhos que, indo em direção contrária às narrativas hegemônicas sobre o período, utilizam como meio o vídeo – como Soap Opera e Bufê Buginganga, feitos em parceria por Márcia X e Aimberê Cesar – e a televisão, como a TV Viva, Olhar Eletrônico, TVDO e A Revolução Não Será Televisionada, programas de TV de caráter crítico e subversivo, que questionavam o poder e função dessa mídia. O apresentador da TVDO, por exemplo, citava no meio da programação frases como “Televisão é uma manipulação danada. Cuidado com o que vocês estão assistindo”. Desta maneira, Arte-veículo coloca em cheque fronteiras entre arte e ativismo, performance e ação política, crítica e entretenimento.
TV e internet como suportes para a ações artísticas
No contexto das intervenções na TV, também se destaca o coletivo Frente 3 de Fevereiro. O grupo, baseado em São Paulo, teve como mote para seu surgimento o assassinato de Flávio Ferreira de Sant’Anna, um dentista negro, no dia 3 de fevereiro de 2004 pela polícia do Estado de São Paulo, numa abordagem de viés racista, após considerá-lo suspeito sem nenhum motivo além da cor de sua pele. Para denunciar casos de racismo estrutural no Brasil, o Frente 3 de Fevereiro, em uma de suas ações, entrou em um estádio de futebol com uma bandeira que continha a frase “Brasil negro salve” e a levantou no momento do gol, situando-se em um lugar estratégico, onde sabiam que seriam captados pelas câmeras de TV. A ação do grupo se estendeu para além de uma manifestação no espaço do estádio e foi distribuída para milhões de aparelhos através das emissoras televisivas, numa estratégia que pode ser comparada à do 3Nós3.
A mostra chega a trabalhos mais recentes, que surgem com a popularização da internet – quando também se firma o conceito de mídia tática. Destaca-se, nesse contexto, o vídeo Lígia, de Nuno Ramos (trecho acima), que utiliza como matéria prima notícias do Jornal Nacional sobre o impeachment de Dilma Rousseff, que são decupadas pelo artista criando um novo discurso. Os cortes e a remixagem realizadas por Nuno Ramos fazem com que William Bonner e Renata Vasconcelos, apresentadores do noticiário, apareçam cantarolando Lígia, canção emblemática da Bossa Nova, escrita por Tom Jobim em 1972, no auge da Ditadura Militar. Ramos propõe relações entre dois momentos: a ditadura militar e o processo de impeachment de Dilma, que mais uma vez colocava a democracia em crise no Brasil. Todos os dias do mês de setembro de 2017, no mesmo horário de exibição do Jornal Nacional, o vídeo foi ao ar através site www.aarea.co, que apresenta trabalhos de arte concebidos especialmente para a internet.
Em Arte-veículo são apresentadas diversas possibilidades do uso das mídias de massa pela arte, desde matéria prima para trabalhos que se apropriam de sua linguagem e seus produtos até como hospedeira de ideias-vírus, de forma clandestina ou combinada. O que unifica esses trabalhos, tão diferentes em suas poéticas, é seu caráter subversivo. Todos eles, em seu tempo, questionam os valores e os usos das mídias. Adotam a lógica “faça você mesmo” e, com isso, colocam em cheque a hegemonia dos discursos da grande mídia.
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A imagem publicada como destaque deste texto é Máquina de criar sonhos (1977), uma das intervenções de Paulo Bruscky nos classificados de jornais.
Autor
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.