A Eroica é a terceira sinfonia composta por Beethoven. Por meio dela o gênio alemão mete o pé na porta que mantinha a música do século 18 nos salões bem comportados do estilo galante de Haydn e Mozart e dá ao público, pela primeira vez na história da música clássica, um retrato atormentado do universo individual do artista criador. Trata-se de uma sinfonia de proporções que foram consideradas gigantescas na época; só o primeiro movimento tem a duração de muitas sinfonias clássicas completas e o efetivo orquestral também se mostrava mais robusto que o habitual.
Conhecida também como Sinfonia n.º 3, a Eroica inicialmente iria se chamar Sinfonia Bonaparte. Beethoven associava Napoleão aos seus ideais humanistas de igualdade e liberdade, mas, ao saber que este havia se proclamado imperador, rasgou a folha com o título inicial e decidiu denominá-la sinfonia Eroica. Para o compositor, Napoleão agora não passava de mais um tirano cego pelo poder e não merecia mais intitular sua obra. A sinfonia, composta na tonalidade de mi bemol maior, possui quatro movimentos: Allegro con brio, Marcia funebre: adagio assai, Scherzo: allegro vivace e, por fim, Finale: allegro molto.
Nessa sequência magistral, Beethoven transforma os moldes da sonata clássica em um verdadeiro campo de batalha, forças agressivas e desintegradoras afloram em sua música e a experiência trágica se torna o núcleo da composição. Morte e transcendência são os temas que nos vem à mente ao ouvir essa obra fundamental e é aqui que quero fazer um paralelo com a obra de um artista visual que também trabalhou com esses temas quase duzentos anos depois de Beethoven.
Jean-Michel Basquiat citou a sinfonia Eroica em três de suas pinturas. O artista dos EUA fez parte de um conjunto de música experimental, era amigo de vários músicos do cenário hip hop e ouvia obsessivamente os grandes mestres do jazz. Em sua obra, fica patente essa ligação não só pelas citações textuais a elementos da música e a músicos, mas sobretudo pela força rítmica de suas composições.
A utilização de padrões rítmicos lineares contrapostos a áreas de cor que pulsam e capturam o olho do observador de modo quase hipnótico é uma característica peculiar de seu trabalho. Em Acque pericolose (1981), nosso olhar é jogado de um lado para o outro como num pinball enlouquecido pelas áreas de cor que saltam para frente e para trás e pelas linhas que reforçam a trama vertiginosa do desenho. Aqui também se desenvolve um drama descrito no próprio título e que vai acompanhar Basquiat ao longo de sua curta vida. No centro da composição, cercada pelo perigo e pela morte, a figura negra se encolhe, se torna um buraco na tela onde se desenvolve um jogo enigmático entre vida e morte.

A primeira citação de Basquiat à obra de Beethoven se encontra em um trabalho de 1987. A obra é composta de uma miscelânea de materiais, acrílica, óleo, pastel oleoso e papel numa colagem onde se misturam dezenas de elementos referentes à cultura em geral e à vida pessoal do artista. Sobre a colagem destacam-se alguns elementos: uma forma geométrica laranja, uma forma em azul claro feita com pinceladas expressionistas e os grafismos, constituídos por dois asteriscos, além da palavra eroica repetida dez vezes e riscada quatro. Quando perguntado sobre a razão que o levava a escrever para logo cobrir as palavras com uma nova pincelada, Basquiat respondera que a intenção era deixar as pessoas curiosas sobre o que estava por baixo da tinta.
Esse processo de construção e apagamento – a utilização de signos, listas de nomes, referências sobre a alta cultura e a arte de rua – forma uma mixagem que remete ao que estavam fazendo os músicos dos anos 1980: misturando diversos padrões musicais e criando novos sons.

E Beethoven, o que está fazendo aí? Seu biógrafo mais importante, Maynard Solomon, diz que uma característica da sinfonia Eroica é tratar a destruição, a ansiedade e a agressão como terrores a serem derrotados e transcendidos no âmbito da própria obra de arte. Beethoven foi uma figura ímpar na história da música, sua luta contra os percalços do destino é conhecida de todos. Basquiat pode ter se identificado com o espírito lutador de Beethoven, ele próprio teve de passar por muitas dificuldades e preconceitos, seu talento foi colocado em dúvida diversas vezes, a imprensa se referia pejorativamente ao fato dele ser negro e isso transparece em muitos de seus trabalhos.
Uma outra característica da música de Beethoven que pode ter atraído a atenção de Basquiat é que, a partir da sinfonia aqui referida, o compositor começa a utilizar temas muito concisos musicalmente e a desenvolver um movimento inteiro, ou mesmo uma obra, a partir de um único motivo rítmico. Isso fica bem evidente na Sinfonia n.º 5 na qual o primeiro movimento se baseia na sequência rítmica de três colcheias e uma mínima.
Desse modo, Beethoven concedeu uma preponderância à parte rítmica nunca antes vista na história da música ocidental e, por incrível que pareça, em algumas obras há uma proximidade com a linguagem do jazz. São os casos das sonatas Op 27 n.1 e Op 111. A questão da morte colocada no segundo movimento da Eroica é mais uma conexão com a obra de Basquiat. Tal movimento é uma marcha fúnebre, uma das páginas mais poderosas compostas por Beethoven.
Sabemos que Basquiat perdeu um irmão ainda criança e, em uma obra de 1982 intitulada Charles the first, há uma inscrição marcando o período de vida do filho do saxofonista Charlie Parker, que morreu com apenas dois anos, prenunciando o que alguns críticos afirmam ser uma obsessão do artista plástico norte-americano com mortes precoces. E o que dizer, então, da morte de Andy Warhol em 1987 e o trauma que essa perda deve ter causado a Basquiat? Nos dois trabalhos de 1988 intitulados Eroica I e Eroica II essa conexão fica evidente. Sobre um fundo agora vazio, Basquiat inscreve suas listas, algumas formas, pinceladas esparsas e um signo repetido diversas vezes sob o qual sobressaem as palavras man dies (“homem morre”).

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A imagem principal deste post é a reprodução da obra Eroica II, de Jean-Michel Basquiat.
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Exposição Jean-Michel Basquiat
CCBB Rio de Janeiro
De 12/10/18 a 07/01/19
Curadoria: Pieter Tjabbes
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Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.