Durante a temporada da mostra Anna Bella Geiger – O local da ação, o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) promoveu uma conversa entre a gravadora Anna Bella Geiger e o professor, curador e crítico de arte Paulo Sérgio Duarte sobre a obra da artista e os trabalhos expostos na individual, em 24 de novembro. Também integraram a mesa o geógrafo e marido de Anna Bella, Pedro Geiger, e a curadora e crítica de arte Daniella Géo.
Inaugurada em 10 de outubro no Salão Nobre do MAST, esta exposição reuniu doze gravuras com temática relacionada à cartografia, que é recorrente em várias fases da produção da artista, além de também ser um tema bastante caro à Geofísica, um dos tripés da área de atuação do Observatório Nacional. Neste acervo estão as obras que deram início à série, a exemplo de Local da ação Nº1 e Nº11, produzidas entre 1979 e 1980, entre outras de realização mais recente. A transcrição da conversa foi realizada pela assessoria de comunicação da mostra, coordenada por Carlos Henrique Braz. Os editores da Caju agradecem a ele e à equipe do MAST, representada pela diretora Anelise Pacheco.
PEDRO GEIGER: Entre os trabalhos de Henri Lefébvre, sociólogo e filósofo francês, de orientação marxista, menciono aqui dois livros: La revolution urbaine [A revolução urbana, Éditions Gallimard, de 1972], e o La production de l’espace [A produção do espaço, Editora Anthropos, de 1974]. No primeiro, define as fases da história como sendo as de um período agrário, um período industrial e um período urbano. No segundo, trata das propriedades e das qualidades do espaço geográfico.
Em O que é a filosofia, de Deleuze e Guattari [Editora 34, de 1992], encontramos a definição de “predicado” e de “qualidade”. O predicado, como propriedade, é inato à coisa, que eles exemplificam com a “carne ser vermelha”. A qualidade se refere à utilização da coisa, que exemplificam com o fato de “a carne se deixar cortar“. Aplicando estes conceitos ao espaço geográfico, dir-se-á que as propriedades do espaço geográfico são dadas pelas suas composições. Como no caso das composições naturais, vão definir “florestas”, “campos”, “desertos”, e como no caso das construções, sociais, que definem, por exemplo, “espaços metropolitanos”, que é o atual, da urbanização e da industrialização pelo mundo, “espaços urbanos”, “espaços suburbanos”, “espaços agrários”…
Quanto às qualidades, que se referem à utilização do espaço geográfico, que diz respeito ao modo como utilizamos socialmente o espaço, é definido da seguinte forma: o “espaço vivido”, aquele em que nós vivemos, o lar, o comércio, as lojas; temos o “espaço de representação”, o fato em que a gente se representa pelo espaço: quando eu digo que a minha nacionalidade é brasileira, este é o meu espaço de representação. Quando vou votar para Presidente da República, é um espaço de representação federal; quando vou votar num deputado estadual, é um espaço de representação regional, estadual; quando vou votar num prefeito, é um espaço de representação municipal. Estes níveis de espaço federal, estadual e municipal são exemplos de espaços de representação. Tem ainda o terceiro aspecto que é o da “representação do espaço”, que é o mapa, a planta, o quadro. Estes são os conceitos de Henri Lefébvre que trouxe aqui.
Os trabalhos de Anna Bella Geiger são um exemplo do tratamento do espaço, que além de se prestarem à análise artística, contribuem para pensar sobre a filosofia do espaço. Neste sentido, nos lembram a existência de diversos conceitos de espaço, como o do espaço da Física, o do espaço sideral, o do espaço geográfico, o do espaço corporal, e a integração destes diversos espaços em um único espaço contínuo. De certa maneira, o trabalho de qualquer artista tem a função de integrar esses diversos espaços que são definidos, separadamente, por Lefébvre.
Vou dar um exemplo de um dos trabalhos da Anna Bella, o ‘Conversa Entre Fígados’. É um trabalho com desenho de fígados, conversando entre si. Neste trabalho, aparece como espaço do corpo humano e como espaço de representação da alma e do estado de espírito. Ao representar o estado de ânimo de uma pessoa, está fazendo a representação da pessoa, além da representação do espaço. As três coisas (o espaço vivido, o espaço de representação e a representação do espaço) estão reunidas e integradas no trabalho da artista.
Em outro trabalho de Anna Bella [referindo-se à gravura Local da Ação Nº 11 – Geométrica Brasileira, de 1980 , que está no acervo da mostra] com desenho de mapa do Brasil, é feita a representação do espaço geográfico brasileiro. Ao mesmo tempo, o Brasil é o espaço vivido pela artista e pelo brasileiro. O quadro é uma representação e um espaço de representação porque expressa o comportamento da sociedade brasileira na época. As manchas escuras que estão por cima do mapa revelam o regime que estava vigorando, o regime militar e o estado opressor da ditadura. A gravura reúne todas estas qualidades em um mapa só.
Este é um resumo do que eu queria apresentar sobre ‘espaço’, mostrando essas características que o ‘espaço’ apresenta e que são apresentadas por quem trabalha com ‘espaço’, seja ele um cientista ou um artista.
ANNA BELLA GEIGER: No dia da abertura da exposição [10/10/2018], o Pedro [Geiger] olhou para aquela gravura [apontando para Local da Ação Nº 11 – Geométrica Brasileira] e comentou comigo que a imagem parecia a de um corpo humano.
PAULO SÉRGIO DUARTE: Parece mesmo! Parecem umas coxas.
ANNA BELLA: Ele falou exatamente isso. E eu disse ao Pedro: se você olhar bem, vai ver uma divisão em três partes e se você imagina a gravura de cabeça para baixo, você continua ver a costa do Brasil representada da mesma maneira. Não é um puzzle, mas teve esse sentido. Eu fiz um outro trabalho de tamanho menor, em 1978, em que eu já tinha usado essa situação das camuflagens [referindo-se às manchas sobre os contornos do mapa] que já tinham entrado. É quase mapa, mas é a mancha e disfarça e tem essa alusão que o Pedro fez, mas, no caso, quando eu fiz este trabalho em 1980 [Local da Ação Nº 11 – Geométrica Brasileira], teve um fato que é da história da arte.
Estávamos juntamente com alguns artistas fazendo um boicote, desde 1967, a todas as exposições instituídas pelo governo. Nisso, incluímos a Bienal de São Paulo, porque a Bienal também iria acatar o que estavam dizendo, desde sessenta e poucos, que seriam proibidos “manifestações políticas” ou “trabalhos pornográficos”. Colocavam esses dois elementos de certa maneira, que os artistas estavam se especializando. Vou contar uma coisa que vocês não sabem: em 1968, teve uma bienal de artes na Bahia [II Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, no Convento da Lapa, em Salvador], em que enviei três trabalhos e um deles, que era da minha fase visceral, tinha partes do corpo humano.
Também tinha o Farnese de Andrade [artista mineiro, (1926-1996)], muito amigo meu, que ainda não estava fazendo trabalhos tridimensionais, e que na época fazia desenhos e gravuras no ateliê junto comigo. O Farnese enviou para a Bienal três desenhos, que eram estranhíssimos, em nanquim, em que tinha figuras masculinas deitadas e em situações em que pareciam faquires deitados numa impotência absoluta. Mas os desenhos mostravam as partes do corpo. Farnese foi ao salão bienal da Bahia e me telefonou de lá para dizer que ele tinha ganhado o prêmio em desenho e que eu tinha ganhado em gravura. No dia seguinte, Farnese telefonou de novo para dizer que a bienal tinha fechado [A Bienal da Bahia foi fechada pelo governo militar durante um mês, no dia seguinte à sua inauguração. Dez das obras expostas foram confiscadas antes da reabertura, por serem consideradas “subversivas”. Com ela, foram encerradas as Bienais Nacionais de Artes Plásticas da Bahia.]. Eu pensei: meu trabalho é político, mas não é pornográfico nem erótico. O do Farnese era. Aí eu pensei: “Meu Deus, será que fecharam a bienal por minha causa?”… Mas a conclusão é que teve um final feliz: independente de a Bienal ter fechado, eles nos pagaram. Queria contar este fato para mostrar que no Brasil tudo se arranja, para tudo se dá um jeito.
PEDRO: Gostaria de acrescentar que, no Brasil, temos o Maranhão ainda como exemplo de ‘espaço agrário’. São Paulo seria a expressão do ‘espaço urbano’. E o que seria no Brasil a expressão do ‘espaço industrial’? Isso eu pensei aqui agora. Eu diria que é Belo Horizonte, porque é uma cidade planejada. E o planejamento é uma característica da economia industrial. A expressão do ‘espaço urbano’ é feita com a contribuição de cada um. O urbano ou metropolitano expressa a quantidade enorme de pequenos investidores.
DANIELLA GÉO: Quando me convidou [para participar da conversa], Anna Bella me pediu para falar sobre as gravuras que estão expostas no espaço, como o Local da Ação e outras gravuras que talvez você não conheça. Então, fiquei reduzida ao Local da Ação, mas isso não quer dizer que eu tenha focado no Local da Ação, até porque é uma série de trabalhos muito discutidos e eu fiquei pensando “o que ainda não foi dito sobre Local da Ação“. Optei por localizar a obra da Anna Bella, em vez de discutir sobre Local da Ação, localizar a sua produção em referência à questão da geografia e em relação ao museu, de certa maneira.
Toda a produção humana, seja ela científica ou artística, está refletindo sempre uma subjetividade ou uma parcialidade. Esta parcialidade ou subjetividade vai estar refletindo um pensamento do tempo em que está sendo realizada, o contexto em que está sendo realizada e também o contexto do próprio autor. Mas o autor é refletido num contexto de liberdade relativa; senão ela está refletindo sobretudo como o comissário daquela produção. Toda a produção tem um nível de parcialidade imbuído nela, tem intenções, interesses e desejos imbuídos nesta produção. Mesmo nas ciências ditas exatas, a partir das escolhas que são feitas: quando se escolhe o objeto que vai pesquisar, quando se decidem os caminhos dessa pesquisa… Tem uma abordagem aí que passa por essa subjetividade.
A arte, evidentemente, se inscreve neste quadro de maneira muito mais clara, justamente porque a arte tem como característica a criação subjetiva do artista. Então, mas de uma maneira menos evidente, mas que também é sabida, as projeções, os planisférios e os mapas também inserem essa subjetividade. Embora essa subjetividade seja mais disfarçada, de certa maneira, porque os mapas estão dentro do domínio científico e estão também dentro do domínio técnico. Tem certas regras e preceitos que devem ser seguidos; não é um domínio aberto à criatividade. Então, a obra da Anna Bella vai conquistar lugares que são pavimentados por outras atualizações, que vão se calcar no surgimento efetivo de novas ordens.
No sistema de artes, a gente vê o surgimento de novas ordens. Mesmo que essas novas ordens muitas vezes ainda sejam frágeis e estejam sujeitas à uma derrubada, mesmo. Como os novos centros de artes que vão se proliferando pelo mundo e o próprio discurso muito atual da ideia de descolonizar o pensamento. Então, alguns espaços são conquistados, involuntariamente, pelas obras da Anna Bella a partir deste discurso. Muitos desses discursos não são alinhados com a proposta da Anna Bella, mas muitos discursos, sim: são. Quando a gente pensa em nova ordem, Anna Bella já estava discutindo a possibilidade de nova ordem a partir de muitas das suas obras cartográficas.
Então, a gente pode dizer que, ainda que muitas releituras possam incorrer em desvios, o que me interessava, particularmente, nessa tentativa de localização da obra da Anna Bella era constatar o quão vanguardistas eram as suas obras cartográficas, com alguns exemplares aqui expostos. Constatar também a força que essas obras tinham e têm para contribuir para uma nova geografia da arte e o quão atuais permanecem as questões tratadas por essas obras. Isso, sobretudo no cenário internacional, mas fortemente, hoje, no cenário interno.
Deixo aqui a pergunta que você [dirigindo-se a Anna Bella] já fez: Qual é o lugar do Brasil e qual é o lugar da sua arte?
PAULO SÉRGIO: Quero agradecer a Anna Bella pelo convite. Quero agradecer a Anelise Pacheco, que está aqui neste Museu de Astronomia, que tenho certeza vai ganhar um novo corpo na cidade. Esta diretora já demonstrou a sua competência em vários lugares, e particularmente no Museu da República, apesar de sua formação como física e posterior doutorado em Comunicação. Quero agradecer também muito especialmente as falas de Pedro Geiger e de Daniella Géo, que me antecederam e libertaram de uma maneira enorme e me ensinaram mais ainda do que me libertaram. Aprendi muito com as duas falas. Em relação ao Pedro, nosso grande geógrafo, localizando, a partir de Lefébvre, Deleuze e Guattari, questões sobre o predicado e a qualidade. E à Daniella por este roteiro magnífico sobre a presença da geografia na obra da Anna Bella.
A primeira coisa que quero dizer é que diante de uma exposição de gravuras da Anna Bella, o maior perigo que existe é nós sermos inteiramente seduzidos pela qualidade técnica e estética. E não olharmos mais nada além disso. Recentemente, eu vi duas gravuras da Anna Bella, do final dos anos 1960, numa exposição na Galeria Atena, de 1967 e 1968, com linguagens inteiramente diferentes das que estamos vendo aqui. É interessante abordar do ponto de vista da história da arte que aquele neoexpressionismo esta ali, antecipando em linguagem aquilo que se disseminaria na pintura, nos anos 1970 e 1980. Há ali uma presença muito forte de uma retomada de onde a arte parou quando foi fortemente censurado durante o nazismo.
Ou seja: o neoexpressionismo não aparece por acaso na Alemanha com o Baselitz [o pintor, escultor e artista gráfico alemão Georg Baselitz] nem na Itália, posteriormente. O neoexpressionismo aparece depois de um longo período acadêmico da arte alemã, do fim do romantismo depois do Caspar Friedrich (1774-1840), ela cai num academicismo enorme e só se libertará com o expressionismo. E é exatamente nessa libertação expressionista e construtivista da Bauhaus, que ela é interrompida pelo nazismo. Então, é normal que ela retome de onde ela parou. Por isso, o neoxpressionismo aparece com tanta força, posteriormente, quando a Alemanha vai respirar novamente novos ares. Isto em Anna Bella está presente ali nas gravuras do final dos anos 1960.
Agora, olhando para as gravuras que estão expostas aqui e depois das falas de Pedro [Geiger] e Daniella [Géo], digo que essas gravuras têm uma qualidade enorme. Mas tem uma coisa muito interessante que me aparece nessa geografia da Anna Bella, que é em relação ao mundo em que vivemos hoje. Nós vivemos num mundo sem chão. E esse chão que a Anna Bella nos mostra, dessa Terra, desse planeta, é como poeticamente pode ser visualizado o mundo sem chão. Por que vivemos num mundo sem chão? Porque nós estamos passando por transformações tão agudas quanto aquelas do século XVI. Aquela quando a Terra deixou de ser plana para ser redonda, aquela em que a Terra deixa de ser o centro do universo para ser apenas um planeta girando em torno do sol. Estamos passando por transformação desta natureza.
Não é por acaso, que nesse mundo sem chão de transformações tão profundas, que há tanta reação em escala planetária. Ou seja, movimentos regressivos que não aceitam essas transformações. E quais são essas transformações? A primeira delas (para nós, de formação marxista e lemos os quatro volumes de O Capital, não apenas os três, lemos também o Teorias da Mais-Valia), é o deslocamento brutal da produção de valor do trabalho manual para o trabalho intelectual. Ou seja: qualquer smartphone que nós temos no bolso hoje, tem muito mais capacidade de computação do que tinha toda a NASA quando mandou o homem a Lua. Então esse deslocamento da produção de valor do trabalho convencional para o trabalho intelectual é uma mudança dificilmente aceitável. Porque você vai descartar uma quantidade imensa da humanidade, que não vai participar ativamente de todos processos produtivos, mesmo com todas as revoluções na educação que se possam fazer.
O segundo elemento muito importante, além desse deslocamento, é uma questão com a barreira ética e moral que foi rompida com o Holocausto e com as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Até então, a ciência, apesar dos horrores da Primeira Guerra Mundial, era sinônimo de progresso. A partir do Holocausto, a gestão científica da tentativa de extermínio de uma etnia e das bombas de Hiroshima e Nagasaki, matando dezenas de milhares de civis a pretexto de acelerar o fim da guerra, as pesquisas de ponta da ciência se tornam aliadas da morte e não do progresso. Isso é uma ruptura ética enorme com a tradição moderna.
Terceiro: há um despregamento completo do capital produtivo em relação ao capital financeiro. Como diz o Hilferding [Rudolf Hilferding (1877-1941)] – aquele que o Lenin [pseudônimo de Vladimir Ulyanov (1870-1924)] leu para escrever seu livro O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo —, no seu livro O Capital Financeiro, escrito no início do século XX, o capital financeiro é inteiramente vinculado ao capital produtivo. O capital financeiro existe para realizar investimentos do capital produtivo. A partir dos anos 1970, com a grande revolução nas telecomunicações propiciada pelas redes de satélites e, mais tarde, pela rede global da internet, o capital financeiro se desprega do capital produtivo e tem vida independente. O sujeito investe de manhã, em São Paulo, e à noite investe no amanhecer da Bolsa de Hong Kong ou de Tóquio. Sem sair de casa e sem pagar um tostão na alfândega o deslocamento de capital internacional pelas redes de comunicação. Esse despregamento é inteiramente novo. Isso cria um mundo que está fazendo um horror. E cria um mundo em que as pessoas não têm novos conceitos para lê-lo, a não ser, poeticamente, como a Anna Bella faz.
A Anna Bella está fazendo a leitura do mundo em que nós vivemos, que é este mundo sem chão. Ou seja, um mundo onde não existem os conceitos e os paradigmas adequados para a sua leitura atual.Então, é muito interessante que, poeticamente,o artista possa nos situar num mundo em que nós não podemos pisar, mas pelo menos podemos olhar. E é isso que a poética de Anna Bella, essa nova geografia faz, que é nos dar esse novo mundo em que estamos atravessando. É a geografia do mundo sem chão.
A questão ligada em termos de arte, acho que há certas compensações na arte contemporânea que estão fazendo declinar muito a análise política das obras em detrimento da análise poética, de sua potência poética. Ou seja, há certas obras de arte no mundo contemporâneo, particularmente as que tratam de questões de gênero e as que tratam de temas políticos mais imediatos, que não são submetidos ao crivo da qualidade estética. É como a questão do gosto estético, o juízo reflexivo kantiano de valor de um juízo estético fosse passado para trás a favor do conteúdo da obra. Ou seja, daquilo que ela estava nos narrando.Mas, vem cá: e eu for escrever um poema sobre uma ouriça, a mulher do ouriço, vai ficar uma porcaria, mas se João Cabral de Melo Neto (1920-1999) escrever Uma Ouriça [poema integrante do livro ‘A Educação Pela Pedra’] e é uma obra-prima. Ou seja, existe uma questão que é uma formalização da obra, que dá o conteúdo e a força poética a ela. E isto está sendo relegado a segundo plano a favor dessas tematizações públicas banais que estão muito aquém dessas questões que coloquei antes.
Ou seja, uma ruptura radical com a modernidade em termos éticos. Ou seja: a ciência é aliada da morte quanto da vida. Ela não só ajuda o progresso como ajuda imensas regressões e destruições. Segundo: o deslocamento brutal que a humanidade não vai poder acompanhar, na sua totalidade demográfica, da produção do valor do trabalho manual para o trabalho intelectual. Um operador de tratores no Centro-Oeste brasileiro ganha 6 mil reais por mês. Ele trabalha com uma máquina alfanumérica: não é um tratorista de Massey Ferguson ou de Caterpillar, não. Então, esses deslocamentos que evidentemente descartam a ocupação de 500 homens, ou seja, aqueles 500 homens não vão ter emprego por causa de um único trator; esses deslocamentos não estão sendo analisados em todas as suas consequências. E, graças a Deus, eu diria, sem querer, a artista conhece isso. Por que? Porque a intuição poética percebe que nós estamos num mundo cujo chão nos assegura nada.Que é esse mundo sem chão.
Ali [apontando para a gravura ‘Local da Ação Nº 11’], eu vejo logo uma coxa de moça na praia… Pode ser machismo meu…
ANNA BELLA: Pode ser a minha coxa… [risos]
PAULO SÉRGIO: Ali [referindo-se à gravura ‘Local da Ação 1500-2006’] como a Daniella [Géo] sublinhou, há dois momentos que são contíguos no espaço, para o meu olhar, de dois momentos históricos que são diametralmente diferentes. Um é a memória histórica de um mapa histórico de como se desenhavam mapas numa determinada época. Outro, onde ela deforma um planisfério e transforma em revoluções helicoidais o trabalho.
Então, essa exposição é muito útil para se pensar o mundo em que nós vivemos. Este mundo que nós não sabemos onde estamos pisando. Ou seja, Marx foi genial no século XIX, foi maravilhoso. O marxismo atual não dá conta dessas transformações. E pior: essas transformações estão levando a reações terríveis. Os famélicos da Terra, que cantavam A Internacional [Socialista] no século XIX, estão entrando na Europa. Com isso, as hordas da extrema direita ressurgem com toda força contra os famélicos da Terra que estão invadindo a Europa. E nós assistimos a movimentos regressivos terríveis, a exemplo do que vemos aqui no Brasil, no Ministério das Relações Exteriores e no Ministério da Educação. Recentemente, temos assistido um show de regressão, um espetáculo de regressão. E no duplo sentido da palavra: quero falar de regressão histórica a valores medievais, que não são nem renascentistas, são pré-renascentistas; e regressão no sentido freudiano da palavra, ou seja: a libido recuando às taxas anteriores de seu desenvolvimento. Não conseguimos chegar nem à fase genital. Ou seja, há uma dupla regressão neste momento. E o que nós estamos experimentando aqui, e isso está sendo vivendo na Hungria e em diversas partes do mundo.
É exatamente por não termos as forças possíveis de dar conta, de uma forma progressista, dessas transformações que atravessamos. A não ser artistas que dão respostas poéticas a essa situação como a Anna Bella, nesta belíssima exposição que nos dá a geografia de um mundo sem chão.
ANNA BELLA: Estou sem palavras. Não podia ser melhor a escolha destas três figuras aqui para falar do meu trabalho. Tem aspectos que eu reconheço, mas são subjetivos. A gente trabalha também, intuitivamente. Isso que o Paulo Sérgio falou, não é que ele assuste a gente… Eu tenho a sensação de que a minha visão é de um voo baixo. Eu não vou até lá embaixo na terra. Eu fico num voo como naqueles sonhos que a gente está voando. Mas não é por isso. Ele me falou dessa falta de solo e aí eu comecei a pensar no meu trabalho dos anos 1970 em diante. Não é por refutar. Como ele começou, exatamente, a perder de onde. Mas eu acho mais importante que o Paulo Sérgio falou é que o que está se perdendo é uma questão estética que as pessoas não sabem como usar. Não na questão da forma, como você falou. Um pouco mais no abstracionismo. Mas na hora que esses sistemas são apropriados, eles têm que atuar, tem que entrar no campo da arte. Onde está isso. Esta é a dificuldade. O criador que fez aquilo é uma inteligência só. Agora, como se faz essa transferência de outros sistemas para dentro?
No meu caso, da geografia, não foi pensado nem meditado. Como também na visceralidade, de antes, ou influência do Pedro. Eu sempre brinco, que quando eu fiz os meus trabalhos viscerais eu não era casada com um médico nem um cirurgião. Mas, no caso do Pedro, foi muito mais pelas análises, pelo marxismo dele e pela leitura do mundo.
PAULO SÉRGIO: Eu acho que a análise da Daniella Géo me ajudou muito, porque me liberou totalmente de tentar entender o roteiro que deu a base. E ela gravitou com uma delicadeza incrível entre o elemento anedótico biográfico e o elemento formal estético. E isso é difícil de fazer. Em geral, as pessoas transitam de um campo para outro, mas fica meio como crônica, como análise da obra.
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SOBRE OS PARTICIPANTES
Anna Bella Geiger
Nasceu no Rio de Janeiro em 1933. Graduada em Línguas Anglo-Germânicas na Faculdade Nacional de Filosofia (UFRJ). Ainda nos anos 50 estudou História da Arte e Sociologia da Arte com Hanna Levy-Deinhardt na New York University e na New School for Social Research. Participou da 1ª Exposição Nacional de Arte Abstrata em 1952 no Rio de Janeiro. Em 1962 ganhando, com sua obra abstrata, o Primér Premio Casa de las Americas, Havana, Cuba. Tem exposto regularmente desde então, em exposições individuais e coletivas no Brasil e no Exterior, como em várias Bienais Internacionais de São Paulo, Veneza, Bienalle du Jeune (Paris, 1967), II Bienal de Liverpool, 5 éme Biennale Internationale de Photographie, (Liège, 2000) e na Trienal Poligráfica de San Juan. Algumas coletivas como Artevida – Arte Política, MAM e Casa França-Brasil (Rio de Janeiro, 2014). Publicou, com Fernando Cocchiarale, o livro Abstracionismo geométrico e informal (Funarte, 1987). Ensina no Higher Institute for Fine Arts (HISK), Ghent, Antuérpia e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), Rio de Janeiro.
Pedro Geiger
Referência em Geografia no Brasil, Pedro Geiger, 94 anos, tem importantes contribuições como geógrafo do IBGE e como professor da UFRJ, além de mais de 70 títulos publicados entre artigos em revistas especializadas e livros, a exemplo de ‘Evolução da Rede Urbana Brasileira’, escrito a convite do amigo Darcy Ribeiro. Casado há mais de seis décadas com Anna Bella, sua intensa atuação profissional acabou influenciando na produção da artista, que, a partir dos anos 1970, passou a criar obras de arte em diferentes formatos (gravuras e objetos) com inspiração na Cartografia que a tornaram conhecida mundialmente.
Paulo Sérgio Duarte
Crítico e professor de História da Arte, Paulo Sérgio Duarte, 72 anos, é pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados / Cesap da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Leciona Teoria e História da Arte na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro – Parque Lage. Foi Assessor-Chefe do Rioarte (1983-85) e primeiro diretor geral do Paço Imperial / Iphan, de 1986 a 1990, responsável pela sua implantação como um centro cultural, período em que foram realizadas, entre outras, as exposições Lygia Clark e Hélio Oiticica, Brasil Holandês, Lasar Segall, Sergio Camargo, Miró e Gaudi, Expedição Langsdorf, Amílcar de Castro (única retrospectiva do artista em vida), Tesouros do Kremlim e Carlos Vergara.
Daniella Géo
Curadora e crítica de arte residente em Antuérpia, Bélgica, em temporadas alternadas no Rio de Janeiro, Daniella Géo é doutora em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Sorbonne Nouvelle-Paris III. Entre suas curadorias recentes está a exposição retrospectiva ‘Roger Ballen: Transfigurações, fotografias 1968-2012’, no MAM-Rio, MON de Curitiba, e MAC USP. Além de curadora associada do APT – Artist Pension Trust, NY, Daniella Géo é professora da EAV Parque Lage e conferencista convidada do HISK – Higher Institute for Fine Arts, Gent, Bélgica.
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Editorial da Revista Caju, é a assinatura que reúne os textos criados colaborativamente pelos editores da publicação.
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