Nenhum enredo do carnaval 2019 foi tão comentado quanto Histórias para ninar gente grande, escolha de Leandro Vieira para a Mangueira. Com apenas quatro carnavais no currículo – três pela verde-e-rosa, um pela Caprichosos de Pilares -, ele estreou como campeão no grupo Especial em 2016, com um desfile sobre cultura popular concebido a partir da religiosidade e das escolhas estéticas da cantora Maria Bethânia.
Este ano, na segunda-feira de carnaval, Leandro e a Mangueira vão desconstruir na Avenida grandes figuras da História do Brasil, como dom Pedro I e Duque de Caxias. O desfile vai transformar esses ‘medalhões’ oficiais em caricatura e brinquedo e, simultaneamente, dar magnitude épica a negros, índios e favelados. A Mangueira também vai celebrar a rebeldia de figuras pouco estudadas, como o jangadeiro cearense Chico da Matilde, o Dragão do Mar, e de lideranças contemporâneas como a vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018. Um olhar extremamemnte político para as margens e para os silenciados pelos livros e discursos de massa.
Para falar sobre o desfile e muitos outros assuntos, Leandro recebeu a Caju no barracão da escola. Ele poderia ser incensado – aqui e em outros textos – como a grande novidade surgida na folia carioca nos últimos anos. Poderia, mas não vai: a maior distinção de seu trabalho tem sido justamente fazer oposição ao culto à surpresa e à espetacularização do carnaval.

Nós poderíamos começar pelo que sugere o documentário Fevereiros, que trata de sincretismo a partir do enredo da Mangueira em homenagem à Maria Bethânia, em cartaz nos cinemas: pelas relações entre o carnaval que homenageou Maria Bethânia e Oyá/ Iansã e o carnaval seguinte, sobre a religiosidade. Neste segundo desfile já há uma marca muito sua a partir da comissão de frente, que era uma espécie de “caravana holidei” mambembe e interiorana: a abordagem da arte popular brasileira permeada pela religiosidade. Isso é uma assinatura sua na Mangueira?
LEANDRO VIEIRA: Faço certa oposição a essa ideia do Leandro Vieira que tem uma marca. Até o momento eu tenho apenas quatro carnavais, cinco com o próximo. Eu tô acostumado a lidar com a marca do Renato Lage, que tem sei lá quantos carnavais, ou com a marca da Rosa Magalhães, que tem 40 e tantos carnavais. A marca é construída, e acho que com quatro carnavais ninguém tem marca, absolutamente. Eu ainda não consegui mostrar o meu repertório. Diferentemente de outros universos artísticos, o trabalho do carnaval precisa adequar a estética a um tema. Acho que eu tenho ensaiado marcas e que, com o tempo, eu terei condições ou não de identificar o que seria uma marca do meu trabalho. Mas posso dizer que, conceitualmente, a minha concepção de carnaval e a minha identidade artística, como artista formado na universidade, academicamente, foram muito impregnadas pela cultura popular. Ela faz parte do meu repertório como indivíduo e como artista, não exatamente como carnavalesco. E é por isso que até agora tenho usado a cultura popular na totalidade dos meus quatro carnavais, contando com o da Caprichosos de Pilares, e também vou usar no quinto, este ano. Mas não acho que isso ainda determine uma “marca do Leandro Vieira”. Estou no caminho para o artista que eu posso vir a ser.

Bethânia é um imbricamento entre arte popular e religiosidade, presente no seu olhar e na história da própria Mangueira.
LEANDRO: Bethânia foi a cantora que embalou a minha atividade artística a vida inteira. Ela não foi escolhida por acaso, e acho que isso fica muito claro na forma com que eu divido o enredo. Eu não tinha o interesse de falar da cantora popular, e sim da cantora brasileira. E por isso o enredo não foi exatamente biográfico. Elegi aspectos importantes do universo artístico dela para falar do Brasil. A partir dos sabores que ela guarda na voz, da relação com a cultura afro, com o interior, com o repertório que reflete o Recôncavo, com as joias de crioula combinados aos balangandãs, o sincretismo que junta o santo católico ao orixá.
Ainda a partir de Fevereiros, podemos pensar numa crônica de Machado de Assis, em que ele opõe o “Brasil oficial” ao “Brasil real”. Ariano Suassuna sempre evocava esse texto para falar do país. E então pensei em quão presente no seu trabalho está essa dicotomia, este ano de uma forma ainda mais explícita…
LEANDRO: Sim. Em primeiro lugar, tanto Machado quanto Ariano são duas referências para meu conceito de trabalho e para o meu pensamento. Dialogo constantemente com essa ideia de “Brasil real” versus “Brasil oficial”. A Bethânia de 2016 seja o Brasil real, a devoção de 2017 seja o Brasil real, e o carnaval de 2018 seja o Brasil real.
Mais do que nunca no enredo deste ano.
LEANDRO: O enredo deste ano torna isso explícito.
A Mangueira é o Brasil real, sem máscaras.
No carnaval de 2018, a dicotomia já ficou bem clara, com a oposição entre a narrativa oficial e a narrativa construída na rua.
LEANDRO: Sim, uma oposição entre o Brasil real e a narrativa oficial estabelecida pelo prefeito, ou ao discurso que a Liga estabelece, afirmando que o carnaval precisa de dinheiro para acontecer. Este ano, trabalho essa oposição de forma explícita e também de forma mais radical em termos estéticos, porque os ícones que eu elenco para a minha narrativa do desfile são personagens de um Brasil oficial opressor e militarizado que eu desconstruo e desqualifico.
Nos ensaios da Mangueira houve um dia muito metafórico no ano passado. Na noite de apresentação do samba vencedor, depois das violentas contendas ideológicas do período eleitoral, quando a quadra sofreu um blecaute e todos os que lá estavam cantaram o samba recém-escolhido em meio à escuridão [leia crônica sobre essa noite aqui]. Como foi essa experiência para você?
LEANDRO: A Mangueira é o Brasil real, sem máscaras. Estar diante da Mangueira é estar diante do Brasil real. Naquela noite, especificamente, as condições climáticas e a falta de luz tiraram a cortina fumaça do Brasil oficial para deixar exposto Brasil real, que canta, que usa a música, o corpo, os tambores, para expressar seus sentimentos coletivos. Vivi duas noites emblemáticas na Mangueira. Uma foi essa. A outra foi aquela em que verdadeiramente me senti carnavalesco da escola. Sempre tive um pouco de rejeição pela ideia do carnavalesco, nunca quis ser carnavalesco, era um universo relativamente distante para mim. Em 2015, na Caprichosos de Pilares, eu não me achava carnavalesco. Mesmo em 2016, já na Mangueira, não me achava. Carnavalesco, para mim, era o [Fernando] Pamplona, que se colocava como mais um no coletivo de pessoas. Um intelectual, sim, mas mais um no grupo. Nunca tinha vivido essa experiência até o dia em que, depois da quadra, fui para viaduto em frente à escola, fiquei na roda de samba até amanhecer. Naquela noite, o pertencimento me fez carnavalesco da Mangueira. Então, foram duas situações. Na noite do viaduto, eu vivi a comunidade cantando, comendo e bebendo até amanhecer. Na que faltou luz, vi a comunidade inteira cantando o samba no escuro, com o enredo que eu havia concebido. E também me senti fazendo parte; foi como se estivesse sendo abraçado com o compartilhamento daquela proposta, que ali se tornou coletiva.
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Seu trabalho traz um olhar muito próximo ao do cronista. Aquele que observa o que não está evidente, que se interessa pelo improviso, pela gambiarra, pelas pequenas lâmpadas da Festa de São João ou de uma quermesse em Santo Amaro, muito mais do que pelo holofote. Como funciona a transformação dessas margens sociais e estéticas do país em narrativa carnavalesca?
LEANDRO: O país que eu apresento é o país que eu conheço. Só conheço as cores dos lugares por onde passei, o sabor das comidas que comi. De modo geral, tudo que apresento eu vivi. Tudo o que escolho como enredo tem relação com minha experiência de fato. Mesmo a ideia de iluminação, da gambiarra e de algum modo o aspecto retrô. Sou um cara que ainda escuta discos de vinil e se interessa pelo fazer manual das coisas.
A novidade e o espetáculo são aspectos que eu combato no meu carnaval. Eu sou a anti-novidade.
O fazer artesanal confere um tempo de elaboração para tudo que é bem diferente das “novidades” que são cobradas do carnaval de hoje. A gente percebe esse outro tempo, propositalmente vagaroso, no resultado do seu carnaval, que é meio barroco. Isso teria a ver com esse desenvolvimento mais analógico a que você se refere?
LEANDRO: A ideia de barroco realmente é muito presente no meu trabalho, não no barroco como a estética final, que a gente conhece dos livros, mas do barroco que é um eterno rebordar, refazer. Meu carnaval tem muito isso, do acúmulo, da sobreposição.
Curiosamente, esta é uma estética que difere da que vinha ganhando destaque no carnaval ultimamente e cujos centros eram a espetacularização dos efeitos especiais, dos carros gigantes e da surpresa…
LEANDRO: Eu tenho até vergonha das entrevistas que eu dou. Os jornalistas me perguntam: “O que você vai trazer de novidade?”. E eu respondo: “Nada”. “O que vai ter diferente?”. E eu: “Nada”. E as pessoas ficam frustradas, porque elas acham que vão vir aqui na Mangueira e vão achar uma novidade. Perguntam: “Como é que você vai surpreender as pessoas?” E eu respondo que não sei, que acho que não vou surpreender de jeito nenhum, porque esse não é o mote do meu trabalho. Volto a dizer: minhas escolhas reafirmam o tempo todo isso. São escolhas políticas. Este ano, por exemplo. O enredo não é político simplesmente porque traz [a vereadora assassinada] Marielle Franco, é muito político quando desconstrói personagens oficiais da nossa história. Da mesma forma, quando escolho Bethânia, essa é uma opção política. O enredo da religiosidade também é político. A novidade e o espetáculo são aspectos que eu combato no meu carnaval. Eu sou a anti-novidade.

Isso lembra o desfile de 2018, quando você escolheu fazer um enredo de protesto e optou por uma estética quase candie, de caixinha de balas, que rebaixou a palheta das cores, com o verde Tiffany´s, tão presente no nosso Art Déco, e rosas bem claros. Você pode ter embaralhado a cabeça de quem esperava estridência cromática como signo de contestação…
LEANDRO: Talvez tenha embaralhado a cabeça de quem não tem conhecimento do artista que sou na individualidade. Sou constantemente questionado a respeito disso e brinco dizendo que prefiro acertar comigo do que com o outro. Costumo dizer, e o pessoal lá na Mangueira às vezes fica puto com isso, que só trabalho para me agradar. Quero, no ano seguinte, me ver no carnaval que fiz. Considero o desfile de 2018 meu melhor carnaval, esteticamente falando. É o que mais tem minha assinatura. Um amigo que acompanha os desfiles na Sapucaí já há 40 anos me falou que o final do desfile foi uma das coisas mais bonitas que ele viu nesse período. Contou que ficou extasiado, que era emocionante, mas não arrebatava. Achou melancólico demais. Aí fiquei refletindo sobre as ideias de arrebatamento e melancolia.
Prefiro acertar comigo do que com o outro. Costumo dizer, e o pessoal lá na Mangueira às vezes fica puto com isso, que só trabalho para me agradar. Quero, no ano seguinte, me ver no carnaval que fiz.
Há uma cobrança de que o carnaval tenha um clímax.
LEANDRO: Temos uma concepção de carnaval segundo a qual o final deve ser apoteótico. Fui buscar, dentro do meu repertório e da minha intimidade, o momento mais comovente que vivi como folião. E foi na Banda de Ipanema, quando ela faz a curva na Praça Nossa Senhora da Paz e, em homenagem a Pixinguinha, que morreu na igreja que existe ali, interrompe a sequência de marchinhas eufóricas e sambas-enredo para tocar marchas-rancho. Talvez a marcha-rancho seja o que há de mais triste do carnaval, e para mim aquele contraponto de alegria e dor era o clímax. O desfecho do desfile da Mangueira tinha um clima parecido com o momento em que a Banda de Ipanema toca marcha-rancho para Pixinguinha. Eu poderia ter invertido a posição do último e do penúltimo carro. No penúltimo vinham os blocos de rua. Mas sou mais interessado em me olhar do que olhar a ideia do outro. Propus um carnaval que vinha da memória, de algo que está numa foto desbotada dentro da gaveta. Nas fantasias, a impressão era de que aquilo que um dia foi verde-bandeira, com a passagem do tempo, virou verde Tiffany; o rosa-chiclete virou rosa-bebê. Um carnaval empoeirado, quase um sonho.

Essa lógica que liga o carnaval, necessariamente, a uma alegria esfuziante parece se contrapor à própria gênese do samba, bem definida no verso de Vinicius de Moraes e Baden Powell: “O samba é tristeza que balança”. Porque há um quê de melancolia no carnaval…
LEANDRO: Engraçado, eu escrevi em algum lugar, na legenda de uma foto que postei dessa alegoria mencionada na outra resposta, que “o samba é tristeza que balança”. É um pouco isso. E também lembro Caetano e Gil, que falaram que “a tristeza é senhora desde que o samba é samba, é assim”.
Joãosinho Trinta nunca foi a referência do carnavalesco para mim. Ele era uma figura grosseira, ruim, que desprezava as pessoas com quem trabalhava. Uma pessoa que gritava, dava esporros humilhantes.
A gente está falando de seu trabalho em 2018 no momento em que o célebre Ratos e urubus, desfile da Beija-Flor, completa 30 anos. No carnaval que a Mangueira apresentou no ano passado parece haver uma memória daquele desfile. A estrutura que se inicia e termina com o bloco de sujos, o prefeito Marcelo Crivella transformado em Judas, assim como Joãosinho Trinta fez com o jornalista João Máximo no Desfile das Campeãs… É interessante como você traz a memória de outros carnavais e outros carnavalescos, como uma dobradura. Poderíamos dizer que Joãosinho, por exemplo, está de alguma forma dentro de você?

LEANDRO: O João nunca foi a referência do carnavalesco para mim esteticamente. Eu tive um pequeno contato com ele no meu primeiro trabalho com o carnaval. O João era o carnavalesco e eu, aderecista. E ele era uma figura grosseira, ruim, que desprezava as pessoas com quem trabalhava. A personalidade dele para lidar com a equipe era complicada. Uma pessoa que gritava, dava esporros humilhantes. Então, além de não ter afinidade estética, esse contato me deixou muito distante. De algum modo, conceitualmente, isso não posso negar, o João para mim era genial. No aspecto da construção narrativa, por exemplo, talvez seja, sim, uma referência para mim. Mas, embora eu não tenha assistido a nenhum carnaval do [Fernando] Pamplona, não tenha visto nenhum vídeo de seus desfiles no YouTube, acho que estou mais próximo conceitualmente, e até esteticamente, dele, mesmo sem saber como foi, do que do Joãosinho Trinta.
Rosa Magalhães é a maior carnavalesca da história do carnaval. Ela junta tudo de que um bom carnavalesco precisa e nem todos têm: o conteúdo conceitual com o conteúdo estético e a narrativa. Quando eu crescer, eu quero ser a Rosa Magalhães.
Já que estamos falando dessas dobras, quais seriam, então, as suas referências em termos de conceito e estética?
LEANDRO: Pamplona, Renato [Lage] e Rosa [Magalhães].
A de Rosa é muito clara.
LEANDRO: A Rosa é a maior carnavalesca da história do carnaval. Ela junta tudo de que um bom carnavalesco precisa e nem todos têm: o conteúdo conceitual com o conteúdo estético e a narrativa. Quando eu crescer, eu quero ser a Rosa Magalhães.
Na sinopse do enredo da Mangueira 2019, não havia menção direta à Marielle. Teve que haver alguma modificação para encaixá-la?

LEANDRO: Não havia menção direta, mas de certa forma estava lá. Acho que as coisas acontecem naturalmente. O bom compositor de samba-enredo está mais preocupado em colocar no samba o perfume do enredo do que escrever o enredo no samba. Quem se preocupa em simplesmente transcrever a sinopse é um compositor menor do que aquele que tem o entendimento de seu papel como artista e vê a sinopse como ponto de partida para uma reflexão. Os compositores de 2019 foram felizes nesse aspecto, mais do que estava escrito, eles entenderam o que queria ser dito. O enredo da Mangueira, em linha gerais, fala de representatividade. Quando olhamos a história do Brasil, viramos as páginas da narrativa oficial, não encontramos a representatividade popular, ou seja, o protagonismo de índios, negros, pobres. A Mangueira se propõe a escrever um novo enredo a partir da biografia de outras personalidades, como a Marielle, cuja representatividade é imensa para uma comunidade eminentemente pobre e de forma majoritária negra, como a de nossa escola. É importante dizer para negros e pobres, homens e mulheres, que eles podem, sim, ir para universidade, fazer mestrado, se eleger vereador. A figura da Marielle tem esse papel dentro do enredo e os compositores entenderam a importância de que o Brasil saiba que foram Sepé Tiaraju, Cunhambebe, Acotirene, Aqualtune, Leci Brandao, Jamelão e também Marielle. Essa sequência traz uma ideia que está presente em quase todo o meu carnaval: olhar para o passado com a vontade de entender o presente.
Mais do que tributária, a Mocidade é órfã do Renato [Lage]. A Imperatriz também não superou a saída da Rosa [Magalhães].
A Caprichosos de Pilares foi a escola na qual você começou a se projetar como carnavalesco. Como vê a situação da escola, que há dois anos não desfila e parece cada vez mais próxima de enrolar a bandeira?
LEANDRO: Lamento demais pela Caprichosos, embora seja uma situação prevista desde 2014. Estava claro que, diante daquele conflito político, não haveria como resistir durante muito tempo. Lamento sobretudo pelo perfil de carnaval que a escola construiu, e que faz falta. A ideia da escola de samba como espaço de crítica e de desenvolvimento da sátira. A sátira passou para o bloco de rua. E existiam agremiações, como a Caprichosos, nas quais o aspecto satírico era um dado conceitual e estético do desfile. É triste que, neste momento, o carnaval possa perder uma de suas caras, uma que já está praticamente extinta.
Alguns carnavalescos, pela longa relação ou mesmo pela potência do trabalho em determinada escola, acabam por ajudar a definir sua identidade. No caso da Caprichosos, a gente lembra do Luiz Fernando Reis. Na Mocidade, de Renato Lage. E muitas vezes a escola sofre, mais tarde, com as eventuais mudanças, como se sentisse ainda tributária daquela formatação. Uma formatação que, a rigor, nem estava na gênese da agremiação. Embora tenha trabalho ainda recente, você imagina no futuro tendo deixado uma marca na Mangueira?
LEANDRO: Diria que, mais que tributária, a Mocidade é órfã mesmo do Renato. A Imperatriz também não superou a saída da Rosa. Mas eu não me coloco nesse lugar, nem vislumbro esse lugar para mim. Acho que o carnavalesco que permanece por um bom período na agremiação tende a deixar uma marca. Mas não olho meu trabalho com esse interesse, meu olhar é muito focado no próprio trabalho, não no papel que desempenho, no que ele pode levar a escola a ser. Somos eu e o meu trabalho, nada mais.
Penso na ideia da escola de samba como algo maior. Sempre digo que posso errar e me perdoar quando esse erro está nos aspectos plásticos, mas não me perdoaria ao errar na escolha da narrativa, do discurso. Porque acho que aí é que está o papel do bom carnavalesco.
Você disse, há pouco, que não queria ser carnavalesco. Quem era o Leandro antes de ser carnavalesco, antes de entrar num barracão?
LEANDRO: Eu era o Leandro artista. Alguém que, desde muito jovem, olhava de forma diferente para o mundo. Eu tinha a consciência de que só sabia fazer isso. Que, se não desse certo fazendo arte, não ia dar certo fazendo nada. Fui para a Escola de Belas Artes [da UFRJ], queria ser artista plástico de modo convencional. E acabei trabalhando no universo do carnaval.
Mas você sempre gostou de carnaval, né?

LEANDRO: Gostava de carnaval como folião. Como alguém que ama a cultura popular e entende que o carnaval é uma de suas manifestações mais importantes. Sempre fui o cara que brincou carnaval. Não à toa, fui por 10 anos ritmista da Portela. Meu interesse era tocar na bateria, tocar samba, a feijoada, os compositores, o universo da cultura, não da atividade de carnavalesco. Nunca achei que meu trabalho serviria a isso. Só fui tomar conhecimento quanto vi que não ia da mais certo a inserção nas artes plásticas, um mundo muito fechado. Tropecei no carnaval e fui cair dentro de um barracão. Muito mais por interesse econômico, pelo aperto de grana. Estava na faculdade e já estava ficando feio depender dos pais.
Observando seus carnavais, e também diante dessa última resposta, a impressão é que a escola de samba lhe interessa muito mais como espaço de pertencimento do que pelo fator estético…
LEANDRO: Na verdade, meu interesse estético por escola de samba é menor. Esteticamente, tenho muito mais interesse por bloco de rua do que por desfile de escola de samba. Penso na ideia da escola de samba como algo maior. Sempre digo que posso errar e me perdoar quando esse erro está nos aspectos plásticos, mas não me perdoaria ao errar na escolha da narrativa, do discurso. Porque acho que aí é que está o papel do bom carnavalesco.
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As fotos cuja autoria não está identificada são de Daniela Name e Marcelo Moutinho.
Autores
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O olho nas ruas e espaços culturais do Rio e de São Paulo, sempre clicando e filmando cenas e eventos com rara sensibilidade para as redes sociais da revista.
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Escritor e jornalista. Autor, entre outros, dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê), na"Rua de dentro" (Record), "Ferrugem" (Record), "Na dobra do dia" (Rocco), "A palavra ausente" (Rocco) e "Somos todos iguais nesta noite" (Rocco). Organizador de coletâneas como "O meu lugar" (com Luiz Antonio Simas, Mórula) e "Canções do Rio" (Casa da Palavra).
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