Trinta anos separam o desfile vitorioso da Mangueira neste carnaval daquele que a Imperatriz Leopoldinense, rebaixada este ano, fez em 1989. Ao celebrar a Proclamação da República, a escola de Ramos, que tinha Max Lopes como carnavalesco, derrotou o hoje antológico desfile Ratos e urubus, larguem minha fantasia, da Beija-Flor. Concebido por Joãosinho Trinta, o enredo da celebração do “lixo” real e social como construtor de utopias tinha ainda”anti-fantasias” de Viriato Ferreira e o jovem Neguinho da Beija-Flor ressignificando, com seus gemidos e onomatopeias, a saudação ao orixá Exu no refrão do samba, mal compreendido pelos jurados. Tanto a
Mangueira deste ano e a Imperatriz de 1989 tinham carros com a presença de Duque de Caxias. Comparar as duas alegorias pode nos ajudar a compreender as disputas de narrativa na Sapucaí ao longo das três últimas décadas. Se o carnaval é a festa popular de maior visbilidade no Brasil, nada mais natural que ele encene e traga à tona os cabos de guerra de nossa sociedade.

A vitoria da Mangueira no carnaval de 2019 foi preciosa para o momento brasileiro atual. Nós que aqui estamos, cercados, golpeados e massacrados por um neoconservadorismo tragicômico e sórdido, fomos tomados por um descarrego de energia vital e por um frescor insurgente que há tempos a maior festa popular do país nos devia. Em 1989, o enredo Ratos e urubus foi incorporado com alma brechtiana pela Beija-Flor. Ao trazer um Cristo “mendigo” como destaque alegórico no carro abre-alas, a agremiação de Nilópolis sofreu uma reprimenda da Igreja Católica, que censurou a ideia algumas horas antes de o desfile começar. “Mesmo proibido, olhai por nós”, dizia a faixa presa em uma cobertura de saco de lixo preto, que acabou escondendo o atrevimento pagão. Obviamente, essa contenda ajudou a aumentar ainda mais o impacto visual e estético causado pelos delírios de Joãsinho Trinta e que arrebataram a crítica e o público presentes no sambódromo naquela manhã de terça-feira de carnaval, 7 de fevereiro de 1989 (1).
Como contraponto, a Imperatriz Leopoldinense escolheu celebrar o centenário da “República que nunca foi” (2) em um desfile suntuoso, solene e bem-acabado, mas todo trabalhado no oficialismo cortês e ufanista de antigos carnavais “chapa-branca”, pré-Salgueiro negro de Fernando Pamplona. A história convencional de Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós e seu cortejo triunfante dos opressores acabou vitoriosa, desbancando o vanguardismo revolucionário dos oprimidos da Beija-Flor. Caxias estava em uma das alegorias mais pomposas da escola de Ramos. O comandante brasileiro na Guerra do Paraguai vinha no cume de uma pirâmide de cavalos militares, empinado falicamente em uma diagonal que sugeria um movimento ascendente, como se o

personagem pudesse decolar, se projetar para ainda mais alto. Vinte anos depois do primeiro desfile, em 2009, a Imperatriz insistiu na narrativa, refazendo o carro para celebrar as duas décadas do campeonato. Desta vez, o destaque que interpretava Caxias gerou problemas técnicos para a escola, já que sua altura o impedia de passar com tranquilidade pelas passarelas para a transmissão de TV. Ainda celebrado pelos capitães embusteiros do Brasil surreal, o Duque é um “herói” controverso dos nossos livros de história, que parecem enfim ganhar novos contornos e “reparos” pela criatividade desembaraçada da resistência sambista.
Um “pacificador” através do silenciamento
E é aí que entra, mais uma vez, o enredo campeão da Mangueira em 2019, Histórias pra ninar gente grande. O carnavalesco Leandro Vieira, a “anti-novidade” do carnaval (conforme se auto-intitulou em entrevista a esta revista – leia aqui), incluiu Caxias em um carro-síntese de sua concepção narrativa: o que trazia os “grandes vultos” da história ofical relidos por historiadores contemporâneos. Cercados por livros com textos dos professores e historiados Thaís Brito, Tarcísio Motta, Daniela Jardim e Luiz Antonio Simas, entre outros, personagens como Caxias, a Princesa Isabel e o ex-presidente Floriano Peixoto foram mostrados em seu “Lado B”, aquele que normalmente não é narrado pela história dominante: a história dos vencedores, os homens brancos e poderosos, sobre os vencidos.
Tarcísio Motta, que foi candidato a governador pelo PSol e é professor do Colégio Pedro II, escreve uma versão menos amena para a biografia do personagem, que questiona o título de “Pacificador”. “Para Caxias e os poderosos do Império, pacificar era calar pobres, negros e índios, garantindo a tranquilidade da casa-grande. Foi assim com balaios e quilombolas mortos no Maranhão (1838-1841), com os lanceiros negros massacrados na Farroupilha gaúcha (1835-1845) e com negros e indígenas mortos na Guerra do Paraguai (1864-1870)”, escreve. Durante os desfiles – o competitivo e o das Campeãs – o destaque que representava Caxias pisoteava os corpos ensanguentados presentes na alegoria.

Brasil oficial versus Brasil real
A história das margens presente no enredo da Mangueira, além da luta entre o que Machado de Assis chamou de “Brasil real versus Brasil oficial”, o que Leandro Vieira também destacou na entrevista à Caju, remonta às

projeções do filósofo judeu-alemão Walter Benjamin em torno da pintura Angelus novus, de Paul Klee. Tal qual um carnavalesco, Benjamin esboça o que seria um enredo sobre o “Anjo da história”, uma descrição que tem pouco a ver com o quadro em si, trata-se de um encantamento subjetivo e alegórico sobre a imagem “sutil e despojada”(3) do artista alemão. O filósofo também encontra ecos na correspondência entre o sagrado e o profano, a teologia e a política, resumindo assim a sua trama:
“Nele [no quadro] está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-Ias. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nos chamamos de progresso é essa tempestade”. (4)
No Desfile das Campeãs, Vila reagiu ao campeonato marginal da Mangueira

Todo o desenvolvimento do enredo da Mangueira conversa de alguma forma com as análises de Benjamin sobre o curso do progresso nesse seu devaneio sobre a obra de Klee. Ao trazer para a Sapucaí um revisionismo reparador corajoso e oportuno para os dias atuais, Vieira promoveu uma ode aos oprimidos, costurada em um campo de batalha sensível: as páginas oficiais dos livros da nossa história que louvam os opressores. Na sua interpretação política para o quadro de Klee, Benjamin acredita que somente a revolução (que por sua vez culminaria em uma espécie de comunismo primitivo, no reestabelecimento de um paraíso perdido) poderá fazer o que o “anjo da história” é impotente para realizar: “deter a tempestade [o progresso desenfreado], cuidar dos feridos, ressuscitar os mortos e rejuntar o que foi quebrado”. (5)
Reencontrar Caxias na sua versão #real e #extraoficial, como um sanguinário e genocida militar que esmaga os corpos nas valas abertas da América Latina, foi uma grande vitória, mas apenas em uma das batalhas. A guerra nunca é vencida por nenhum dos campos opostos, e, como nos ensina Nietzsche, estamos sempre assistindo a um rearranjo de forças. O que vimos no carnaval carioca de 2019 foi uma transposição para a Sapucaí do duelo entre o país planejado por uma elite branca, militarizada e masculina, e o Brasil das margens, negro, indígena, favelado, levado adiante por mulheres empreendedoras que criam seus filhos depois de serem abandonadas, abusadas ou negligenciadas pelos maridos e companheiros.

Nesta luta entre o “Brasil real versus o Brasil oficial”, enunciada por Machado de Assis e citada por Leandro Vieira na entrevista à Caju, o país oficial, que em 1989 coube à Imperatriz Leopoldinense, este ano ficou por conta da Unidos de Vila Isabel. E o real, que há 30 anos foi erguido sobre a ficção de Joãosinho, desta vez desfilou sob a égide de um enredo pensado ponto a ponto por Vieira. Com sua homenagem a Petrópolis, a Vila trouxe um samba que chancelava o imaginário de uma superioridade da nobreza (“Meu sangue azul sobre o branco desse pavilhão”) em contraponto a “lista de chamada” metafórica, anônima e feminina evocada pelo “Brasil de Marias, Mahins, Marielles e Malês” da Mangueira.
No Desfile das Campeãs, a escola azul e branca, tida como favorita por parte dos especialistas, pareceu reagir ao segmento final da Mangueira, incluindo dois elementos em seu cortejo como terceira colocada (o sinônimo “cortejo” para “desfile” soa melhor em desfile tão ostensivamente suntuoso, a ponto de ser quase cafona em sua riqueza). Uma bandeira do Brasil, carregada exclusivamente por homens brancos vestidos de verde-militar (cor que não faz parte da bandeira da escola) pareceu responder à bandeira verde-e-rosa com que a Mangueira celebrou “Índios, negros e pobres”, no texto que substituiu “Ordem e progresso”. Houve, ainda, na Vila, uma camiseta que reafirmou a Princesa Isabel como heroína (“Honramos tua grandeza”, dizia a estampa), em contraponto àquela em que os componentes mangueirenses celebraram as guerreiras populares de seu refrão.
Tanto em 1989 quanto este ano, o que vimos na Sapucaí foram as feridas abertas e contraditórias de um país cuja elite não se conformou com o fim da escravidão. Que siga o baile, pois ele coreografa e amplifica as angústias mais agudas de nossa sociedade.
NOTAS:
(1) Os dois autores desse texto participaram, como organizador e participante da mesa, em um debate organizado pelo espaço Despina, no Rio de Janeiro, no dia 21 de fevereiro de 2019, em celebração aos 30 anos de Ratos e urubus. O artista e curador Rafael B Queer e o pesquisador Felipe Ferreira eram os outros convidados. Na ocasião, ficou evidente para todos os papel que a narração dos comentaristas da Rede Manchete, em especial o então ex-carnavalesco Fernando Pamplona, de quem Joãosinho foi discípulo, tiveram na elaboração de um imaginário a respeito do desfile. Outro ponto interessante do debate foram as possíveis análises que surgiram a partir do distanciamento de três décadas. Entre elas a observação de Felipe Ferreira, professor da Uerj e jurado do Estandarte de Ouro/O Globo. Ele chamou a atenção para a ambiguidade do segmento final do desfile de Joãosinho, em que o lixo é lavado no chafariz da Cinelândia e os componentes aparecem em alas completamente brancas, higienizadas. Um ideal de pureza que parece contrariar o que o desfile apregoava.
(2) Cf. José Murilo de Carvalho em “Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que nunca foi, 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
(3) (4) (5) Cf. Michael Löwy em “Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’” – tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005
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A foto em destaque desta página foi feita por Vanessa Rocha Faria no Desfile das Campeãs. A foto da mesma alegoria, mas sem componente, é do carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, e foi feita no barracão da escola. As demais fotos são arquivos que circulam na internet, e não encontramos referências aos autores. Daremos o crédito se for solicitado.
Autores
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O olho nas ruas e espaços culturais do Rio e de São Paulo, sempre clicando e filmando cenas e eventos com rara sensibilidade para as redes sociais da revista.
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Radialista, produtor cultural e pesquisador de música, teledramaturgia e carnaval carioca.
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