Neste ensaio, revisito, adapto e amplio um artigo que produzi em 2014, durante o meu doutorado em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da UFRJ. No texto, tento criar uma encruzilhada entre O conhecimento secreto, livro em que Hockney esmiuça sua pesquisa sobre a câmara escura, e o primeiro de muitos mergulhos em Técnicas do observador e Suspensões da percepção, de Jonathan Crary, além de lembrar a visita a uma exposição do artista no mesmo 2014, na Annely Juda Fine Art, em Londres.
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A importância de David Hockney vai além do marco que ele representa para a história recente da pintura europeia – e não seria exagero, mesmo em tempos agudos, dizer que ele é um marco na pintura mundial. Grande pesquisador da câmara escura e de outros dispositivos, o artista é uma referência para todos aqueles que se interessam pelas relações entre pintura, representação e ciência. Entre maio e julho de 2014, antes de a Tate Gallery organizar importante retrospectiva de sua obra, Hockney apresentou um conjunto de trabalhos recentes nos dois andares da galeria Annely Juda Fine Art, uma das mais importantes galerias de arte contemporânea em Londres. Tive a sorte de ver esta exposição. The arrival of spring reuniu desenhos a carvão sobre papel, uma instalação em vídeo e um conjunto de pinturas feitas no iPad. Em diferentes suportes, os trabalhos retratam a chegada da primavera ao longo da Woldgate, estrada que corta Bradford, terra natal deste que é um dos mais importantes artistas britânicos em atividade.
A visita à exposição foi o ponto de partida para que eu pensasse uma aproximação entre a obra de Hockney – como artista e como pesquisador – da genealogia proposta por Jonathan Crary em Técnicas do observador, e cuja investigação é aprofundada em Suspensões da percepção. Nascido em 1937, Hockney é um dos expoentes do movimento conhecido como Pop Art Britânica. Sua pintura ganhou visibilidade quando ainda era estudante, em meados dos anos 1950, mas foi nos anos 1960, quando se mudou para Los Angeles, que produziu algumas de suas obras mais famosas, como The bigger splash, de 1967. Nesta tela, chama atenção o contraste entre o movimento sugerido por uma agitação na água (alguém mergulhou, algo foi mergulhado) e a vastidão desabitada, silenciosa e imóvel de uma mansão hollywoodiana.
Há no trabalho do artista uma permanente estranheza, que parece vir de tempos não-conjugados e ao mesmo tempo sobrepostos, de experiências distintas que ocorrem em uma mesma cena. Os retratos cotidianos, a solidão e certa desconexão entre os personagens o aproximariam das análises que Crary faz de Manet e Seurat em Suspensões da percepção, tanto no que diz respeito ao olhar aparentemente distraído e desfocado das mulheres retratadas pelo primeiro quanto pela sensação de tempo coagulado ou encapsulado que a obra de Seurat sugere. Neste caso, não apenas pelas cenas que o artista pintou como Uma tarde de domingo na Grande Jatte (1884), mas também pelos pontos com grande massa de tinta que usou para compor cada uma delas.
A partir de Grande Jatte, obra de Seurat é frequentemente construída a partir de pontos-coágulos, minúsculas massas de tinta através das quais o pintor procura sobrepor a cor-matéria à cor luz. A combinação destes pontos a partir da manipulação da escala de cores opostas e completares cria nas telas um ambíguo efeito de movimento e suspensão simultâneos. É como se este acontecimento pictórico colaborasse para outro acontecimento – a cena – que parece em estado de intervalo, em uma espécie de soluço ou tropeço narrativo.
Nas piscinas e paisagens de Hockney há também frequentemente esta sensação de lapso, de um silêncio que parece atravessar ou interromper uma ocorrência. Outro elemento importante em seu trabalho são as noções de simultaneidade e sincronicidade. As montagens fotográficas que realiza desde os anos 1970 enfatizam estes aspectos. Nestes trabalhos, o artista tenta conjugar vários ângulos (ou vários tempos) da mesma cena em uma única superfície, sugerindo que nós vemos muito pouco daquilo que poderia ser visto. E propondo que é possível abrir várias janelas de interpretação para o mesmo objeto ou o mesmo retrato.
Nos anos 1990, pausa na carreira para pesquisar a câmara escura
Este artista inquieto criou um divisor de águas para sua trajetória no fim dos anos 1990, quando decidiu pesquisar as técnicas dos grandes mestres da pintura. Começou a reunir reproduções de trabalhos de artistas como Da Vinci, Caravaggio, Giotto, Warhol, Van Gogh, Van Eyck e Vermeer em uma parede de seu ateliê na Califórnia, mudando-as de lugar quando achava que uma tinha coisas em comum com outras, fazendo grupos e arranjos por semelhanças ou distinções. A quantidade de imagens cresceu a ponto de ele arrumá-las cronologicamente. Este acervo se transformou ganhou um nome – “O Grande Mural” – e, em março de 2000, quando Hockney parou de juntar imagens, as reproduções ocupavam 21, 3 metros de comprimento na parede.
Ele percebeu então que havia ali uma pesquisa importante sobre a invenção da perspectiva e sobre a ótica, especialmente sobre o uso da câmara escura. Encomendou um jogo de lentes que reproduzia a inversão e as projeções de uma câmara escura. Passou a desenhar usando esta engenhoca. Parou de pintar, para poder mergulhar na escrita, e o resultado foi o livro O conhecimento secreto – Redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres, publicado no Brasil em 2001, mesmo ano em que saiu em língua inglesa.
Voltarei mais adiante à exposição de Londres e tentarei mostrar como ela também é um fruto indireto deste livro tão importante, mas primeiro preciso criar uma ponte entre Hockney e Crary. Se o primeiro não chega a fazer uma genealogia, empreende ao menos uma pesquisa quase tão obsessiva quando a do autor de Técnicas do observador. Além de realizar comparações bastante diretas e em textos curtos entre os trabalhos, Hockney experimentou a perspectiva, a ótica, as lentes, tentando criar assim uma espécie de dupla checagem para suas intuições estéticas e sua análise técnica e histórica.
Ao fim do livro, ele compartilha, generosamente, inúmeras trocas de emails entre ele e outros pesquisadores, e também textos importantes sobre tecnologia em momentos com o alvorecer do Renascimento e no desenvolvimento da pintura flamenca. O “Grande Mural” permitiu que ele percebesse que, entre o século XV e o século XIX, há um naturalismo cada vez maior no trato com a pintura. Mas o que o artista notou, cercado por tantas reproduções de obras emblemáticas, foi que este olhar óptico “chegou de repente, e foi imediatamente coerente e completo”.
Ao longo de O conhecimento secreto, Hockney assinala não uma relação de causa e efeito – a invenção de espelhos e lentes foi responsável pela mudança na história da pintura -, mas uma conjugação de fatores que contribuem para uma transformação do olhar a partir do início do século XV, que marcaria o início do Renascimento. Para o autor, há uma inovação técnica que antecede ou ao menos é simultânea à forma que os artistas renascentistas vão construir suas pinturas: a elaboração da perspectiva linear. Ela dá aos artistas do período a possibilidade de reprodução do recuo no espaço, pondo objetos e pessoas em escala, tal como se apareceriam/se formariam no olho, a partir de um único ponto. A perspectiva não é um dado trivial, e somada a outros fatores – o Humanismo, as descobertas astronômicas, a elite mecenas de Florença –, deu ao Renascimento italiano o solo propício para se estabelecer como campo de força hegemônico e criar novos paradigmas para a arte. Este sistema teve sua hegemonia questionada e começou a entrar em colapso no século XIX, justamente no momento em que observador analisado por Crary passa a ser um elemento fundamental para a construção e compreensão da obra de arte.
Hockney não destaca os tratados de pintura do período em seu texto, mas creio ser importante lembrar os três mais importantes, por acreditar que eles formam um bom retrato do pensamento da Renascença e seus cruzamentos com a filosofia e a ciência. São eles: Da pintura, de Leon Alberti (1436), que é considerado o primeiro crítico de arte da História; De prospectiva pingendi, escrito pelo pintor Piero della Francesca (1415-1492); e o Tratado da pintura (1490), de Leonardo da Vinci. Não se sabe a data exata do texto de Della Francesca, que permaneceu em manuscrito até 1899, quando finalmente foi editado. Sabe-se, no entanto, que o artista o escreveu quando começou a ficar cego, em um momento intermediário entre as obras de Alberti e Da Vinci. Se Alberti dá o esteio humanista ao Renascimento e Da Vinci escreve sobre aspectos fisiológicos da visão até então inéditos, é o texto de Della Francesca, um profundo conhecedor de matemática, o primeiro a demonstrar, através de proposições e desenhos, a projeção do espaço e do corpo humano a partir da perspectiva.
Em A perspectiva como forma simbólica, Panofsky procura demonstrar como a perspectiva interpreta a visão como um triângulo mensurável. Também apresenta a ótica euclidiana como um desenvolvimento e uma sistematização da perspectiva, mas ao mesmo tempo como um obstáculo a este ponto fixo e em repouso que a visão triangular propõe. Na perspectiva, o olho é a foz de um rio navegado pelo homem, que passa a ser o centro do universo renascentista. Panofsky mostra que o cone visual de Della Francesca não necessariamente corresponde ao cone visual de Euclides.
A ótica já aponta para um problema, que vem à tona com toda a carga no século XIX, que é a diferença entre a experiência do espaço pelo corpo e o espaço representado pelas leis matemáticas. Se o olho é côncavo e a superfície onde se dá a pintura é plana, há uma diferença de construção a priori. Crary nos mostra que esta questão se torna ainda mais complexa nas pinturas de Manet, Seurat e Cézanne, quando não apenas o corpo se distingue da matemática, mas outras formas de percepção – vindas da memória e de uma experiência “desomogeineizada” de espaço-tempo – acrescenta perturbações ao que o olho apreende.
Com o aprimoramento das lentes e a invenção da câmara escura, os pintores terão à disposição recursos que os permitem detalhar armaduras e bordados e que de certa maneira enraízam o modelo do Renascimento baseado na concentração e na contemplação. Embora criem interpretações e simbolismos próprios de cada artista e cada tempo, os movimentos artísticos até o século XIX (Barroco, Neoclássico, Romantismo, Realismo) ainda estão regidos pelo sistema de olhar construído no Renascimento. Há ênfases diferentes em termos simbólicos e subjetivos, mas a perspectiva está lá, como orientação fundamental da distinção entre figura e fundo e parâmetro de escala e profundidade.
Hockney estuda a presença da ótica nas técnicas da pintura aproximando obras de arte umas das outras. Faz isso geralmente em duplas, mas eventualmente compara três ou quatro trabalhos. Um momento importante de O conhecimento secreto é o que ele analisa dois retratos de Papas. O primeiro, pintado por Melozzo da Forlì em 1475; o outro, mostrando Leão X, criado por Rafael entre 1518-1519. A construção arquitetônica que existe atrás dos religiosos de Da Forlì sugere o conhecimento matemático da perspectiva linear, mas sem dar nenhuma pista de conhecimento de recursos da ótica. Hockney usa o quadro apenas compará-lo à obra cronologicamente mais tardia de Rafael, que impressiona pela grande verossimilhança.
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Diferentemente do que Crary faz em Suspensões da percepção, o método usado em O conhecimento secreto não é o de esmiuçar cada detalhe das obras, e sim destacar aquilo que de mais importante que ela pode ter com o seu “par”, em um efeito comparativo que sustenta a argumentação do autor. Mas vou optar por discorrer um pouco mais sobre o detalhamento visto nas roupas dos religiosos pintados por Rafael, por acreditar que elas colaboram a comparação estabelecida no livro. Há um enorme esforço, por parte de Rafael, para fazer uma pintura “como na realidade”. Esta intenção vai a cabo na fisionomia dos religiosos, mas atinge graus ainda mais altos na volumetria, nas cores e nas texturas de suas vestimentas. Há inúmeros tons de vinho e vermelho nesta pintura. Estas variantes vêm do fato de o pintor conseguir fazer distinções entre os tecidos, convocando a memória de nosso tato para auxiliar o olho (e vice-versa). Percebemos o veludo da capa do papa e da cadeira; o pano mais comum da toalha que cobre a mesa; as roupas mais simples dos sacerdotes que cercam o pontífice. Ao pintar a veste branca que Leão X usa embaixo da capa, Rafael faz com que a indumentária de Melozzo da Forlì pareça bastante simples. Se Da Forlì cria uma veste em que até se vê dobras, mas nada além disso, Rafael transforma a manga de seu Papa quase em um objeto. Quase podemos tocá-la ao perceber que ela é feita um tecido debruado, e, mesmo que o pintor mantenha uma ilusão de monocromia, percebemos o brilho do tecido e a estampa em alto relevo.
Tal fidedignidade – ao menos o esforço evidente em sua direção – pode ter suas raízes fincadas em uma pista que Rafael deixa nas mãos do Papa: Leão X segura uma lente de aumento. Para Hockney, ela é uma prova de que o pintor conhecia as lentes, mesmo que não soubesse usá-las: “Como pintor profissional, tinha um serviço a cumprir e terá suado de todas as ferramentas a sua disposição, inclusive, se julgasse propícias, as lentes”, escreve Hockney.
Outra boa comparação é a que o artista faz entre as asas de dois anjos de diferentes períodos da história da arte, aproximando as pinturas A morte da virgem (1310-11), de Giotto, e o Amor vitorioso, de Caravaggio, terminada quase 300 anos depois, em 1599. As asas de Giotto, que vão dos tons de azul para os de vermelho, passando por um intervalo em branco, saíram nitidamente da imaginação do pintor, que não parece ter nenhum modelo de asa à sua frente. Já as de Caravaggio são, na opinião de Hockney, praticamente “fotográficas”:
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Por seu método de trabalho, é provável que Caravaggio tivesse algum tipo de asas reais à sua frente – talvez um par de asas de águia. Sabemos que ele só pintava diretamente do modelo (“É incapaz de pintar sem modelos” foi uma crítica contemporânea a sua obra). O mesmo, é claro, poderia ser dito sobre qualquer fotógrafo (até bem recentemente, ou seja – os computadores modificaram o que costumava ser um requisito fundamental da fotografia).
Caravaggio volta a ser citado na investigação de Hockney sobre objetos curvos, um desafio quase intransponível para um pintor que usa apenas a perspectiva linear. Ele compara os alaúdes presentes em uma xilogravura de 1525 de Albrecht Dürer e numa pintura de Caravaggio concluída 70 anos depois.
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Na gravura de Dürer, transparece o gênio de alguém que foi não apenas um grande artista, mas um homem interessado em tecnologia e ciência. A imagem mostra uma corda esticada que sai do alaúde e é presa em diagonal à parede. Hockney explica que, por esta técnica, “a corda é então ligada a um ponto no alaúde e sua posição é registrada mexendo-se duas outras cordas esticadas através de uma moldura e madeira e marcando-se depois onde estas cruzam uma tela articulada”. A operação se repete até que haja pontos suficientes na tela para reconstituir virtualmente o formato de um alaúde, através deste processo bastante exaustivo e que exige a presença atenta de pelo menos duas pessoas.
Em seu texto, Hockney não chega a comentar isso, mas a obra de Dürer me parece uma metáfora possível para a própria perspectiva. Uma imagem que plasma esta noção de um cálculo matemático que tem como grande meta a representação fidedigna daquilo que o olho vê. A corda esticada em direção à parede da oficina forma uma espécie de triângulo com o instrumento musical e com a mesa, e se aproxima do cone visual desenhado por Piero della Francesca em De prospectiva pingendi.
No caso do Tocador de alaúde de Caravaggio, há elementos na composição que fazem esta pintura intrigar Hockney e qualquer um que a observe por algum tempo. Além do alaúde, há um violino repousado sobre a mesa, formando um X com sua vara, que também pende sobre um conjunto de partituras. As duas páginas musicais que estão no topo da pilha apresentam a curvatura perfeita do papel. Seria possível para Caravaggio criar todas estas formas usando o método dos pontos de Dürer? Provavelmente não, o que já aponta para o uso de lentes.
Há 70 anos entre estas duas obras, mas apenas 8 anos separando a xilogravura de Dürer e a obra Os embaixadores, pintada por Hans Holbein em 1533 e ela evidencia ainda mais o conhecimento e a utilização de recursos óticos que a pintura de Caravaggio. Analisando esta obra tecnicamente, Hockney acredita que o pintor pode ter combinado duas técnicas distintas:
Holbein poderia ter usado a máquina de Dürer para pintar o alaúde na estante de baixo, que é mostrado em escorço bem mais simples que o de Caravaggio, e de um ângulo análogo ao da gravura de Dürer, mas observe os demais objetos curvos. O globo celeste na estante de cima, por exemplo, é perfeito em sua representação. Os motivos da cortina ao fundo e da toalha são profundamente dignos de crédito ao acompanharem as dobras. Os riscos de longitude e latitude no globo terrestre traçam a curvatura da esfera precisamente, tal como a palavra “AFFRICA”. E a partitura musical é reproduzida com exatidão nas páginas abauladas do livro aberto. Já isso teria sido quase impossível pintar usando a máquina de Dürer. Teria sido possível, contudo, usar uma lente para projetar a imagem do livro e dos outros objetos tridimensionais numa superfície plana e decalcar os formatos projetados, agora bidimensionais.
O elemento mais intrigante de Os embaixadores, sobretudo para quem tem a oportunidade de ver a pintura ao vivo, é uma forma distorcida de crânio humano que aparece na parte de baixo da cena. Hockney escaneou a reprodução que tinha da obra e reconstituiu o crânio à sua forma “natural”. Para isso, distorceu novamente a caveira, mas, em pleno século XXI, usou programas de tratamento de imagem para dar a ela sua forma mais reconhecível. Esta reconstituição só é possível fora do computador, a partir de um movimento de corpo em frente à pintura real: o observador precisa se mexer para, de determinado ângulo, conseguir ver o crânio “como ele é”.
A partir da análise técnica de Hockney, trilho um caminho um pouco mais simbólico. Faço isso a partir da pintura de Holbein, tentando construir uma encruzilhada entre ela e a obra de Johannes Vermeer. Em Técnicas do observador, Crary analisa duas telas do artista holandês: O astrônomo, de 1668, e O geógrafo, concluída um ano depois. Em ambas há homens extremamente concentrados, preocupados em conhecer o mundo através de medições e de mapas. Na estante atrás dos embaixadores de Holbein há quase um inventário destes objetos de medição: globos, bússolas, lunetas e outros instrumentos cartográficos tomam a parte de cima da mesa, coberta por um tapete ou toalha, enquanto o alaúde, livros e mapas estão na parte de baixo.
Como destacou Hockney, são todos objetos curvos. Somados ao crânio distorcido (um Vanitas quase oculto e muito intrigante), eles formam um conjunto através do qual o pintor pode ter provado sua perícia e sua intimidade com o que havia de mais arrojado em termos de instrumentos tecnológicos para realizar sua pintura. Mapas e cartas celestes são representações, desenhos que tentam dar forma e limite à virtualidade das fronteiras. Ao retratá-los, Holbein cria um jogo com as lentes que provavelmente usou para executar seu trabalho: as lentes também são um instrumento que dá forma ao universo visto e imaginado pelo pintor.
Vermeer está presente em O conhecimento secreto, e ao analisar a pintura A leiteira, de 1657-1658, Hockney diz que hoje se aceita que o pintor “não só tinha conhecimento de instrumentos ópticos como também os utilizava de algum modo em sua pintura”. O autor demonstra como a diferença de foco entre as duas cestas presas na parede (a da frente parece mais focada do que a do fundo) e o halo de luz, que também altera o foco dos objetos à mesa (jarro, cesto de pão, tigela) dificilmente seriam percebidos “a olho”, mas apareceriam de forma nítida através do uso de lentes. Esta seria a prova, para Hockney, de que Vermeer teria usado a câmara escura.
Na tentativa de acrescentar outros dados à análise técnica de O conhecimento secreto, busco uma sobreposição entre este livro e Técnicas do observador através de Vermeer. É interessante destacar o que os recursos ópticos possibilitam em termos de virtuosismo, mas também como se transformam em um elemento capaz que se somar a uma rede simbólica que sustenta a pintura. Nos trabalhos analisados de Caravaggio e Vermeer, a possibilidade óptica de representar formas curvas e de trazer os mais variados de elementos para uma posição frontal, diante do espectador, amplia as possibilidade de concentração na cena. Ao levar em conta a falta de foco de um dos cestos ou o halo brilhante dos objetos à mesa, Vermeer cria um eixo de atenção na criada que derrama o leite e no leite que é derramado pela criada. O jogo de palavras não é gratuito: a tentativa do pintor parece ser mesmo a de unir criada-jarra-leite, despertando o foco e o interesse de quem observa através de um convite a penetrar na intimidade desta cena. É uma convocação feita para um observador ainda passivo, que apenas contempla. Crary nos mostra como as investigações artísticas do século XIX põem esta relação sob suspeita.
Manet é um artista fundamental na análise de Suspensões da percepção. Crary evidencia como suas personagens femininas de olhar fugidio (estariam distraídas ou extremamente focadas em algo que está fora da pintura, à margem da cena que ela retrata?) dramatizam os dilemas da atenção na virada do século XIX para o século XX. Michel Foucault, autor importante para a genealogia de Crary, também investigou a importância do pintor para criar novos parâmetros para a arte e uma nova relação com o observador. O livro Manet and the object of painting (2009), editado em inglês pela Tate, traz o texto de uma palestra do filósofo em um seminário sobre a obra de Manet realizado em Tunis, em 1971. Ao analisar pinturas como Na estufa (1879) e Um bar no Folies Bergère (1881-82), sobre as quais Crary também se detém, Foucault já enuncia este desvio da atenção (poderíamos também chamar de uma atenção à dispersão) que vem à tona na obra de Manet.
Destacaria ainda no texto de Foucault a análise de uma obra que Crary não aborda, e que me parece bem interessante para compreender a importância de Manet para este período. Em Estação Saint-Lazare, de 1873, uma mulher encara o observador, enquanto uma menina, de costas para este mesmo observador, se volta para a grade da estação, onde toda a paisagem é coberta pela fumaça. Foucault assinala que “a fumaça se transforma no invisível”, mas curiosamente um invisível que deve ser visto e é como se a superfície da pintura tivesse dois lados, “a frente e o verso”, e o observador não fosse capaz de olhar para nenhuma das duas paisagens: nem a vista pela mulher, nem que interessa à menina.
O que talvez seja mais forte e encantador nesta obra é o fato de ser uma pintura-enigma: a fumaça veda a paisagem, mas ao mesmo tempo insinua movimento, nos diz que há algo a ser visto, mesmo que não saibamos o quê. Há aqui o sistema de retroalimentação entre atenção e dispersão – uma não vive sem a outra, e precisa da outra para ganhar ênfase, como defende Crary. Há ainda a recorrência de elementos simbólicos usados por Manet em outras obras, como o cachorro domesticado dormindo no colo da senhora (há um cachorrinho comportado em O balcão), o leque fechado (Na estufa) e o livro aberto (A leitora). Por fim, destacaria a manga do vestido, que é livro e leque ao mesmo tempo, e um cacho de uvas um tanto nonsense no canto inferior direito (memória de certo piquenique sobre a relva?). Quanta coisa na mesma obra evidenciando Manet como uma revolução nos modos de olhar, um artista que cria um labirinto cheio de esquinas e trilhas intercomunicantes, e ainda consegue se transformar em raiz generosa e fértil para a arte dos séculos XX e XXI. Uma das provas disso é, aliás, a obra do próprio Hockney.
Conjugação de tempos
No início deste texto, falei como a pesquisa para O conhecimento secreto mexeu com a obra de David Hockney. O mergulho na obra dos grandes mestres da história da arte foi tão profundo que o artista parou de pintar, produzindo apenas desenhos e fotografias por cerca de 10 anos. Seu retorno ao circuito de grandes exposições se deu em 2011, com a primeira mostra da série The arrival of spring, realizada em 2011 na Royal Academy, em Londres. Na ocasião, ele apresentou vários polípticos, entre eles uma gigantesca pintura mural, A bigger picture (acima), formada por 32 telas.
Partir uma pintura em um conjunto de várias outras, como se cada obra fosse uma rede de frames, é uma característica que visita Hockney desde os anos 1970, e que foi se tornando cada vez mais presente em sua pintura na medida em que ele aprofundava suas pesquisas fotográficas. Com este recurso, ele pode simplesmente “emendar” vários pedaços da mesma cena, vista do mesmo ângulo, dando uma dimensão panorâmica ao quadro. Pode também sugerir um embaralhamento visual, como se a visão frontal da superfície pudesse dar conta de outros ângulos laterais que a pintura não captaria.
Na Royal Academy, as pinturas a óleo ou acrílica já eram expostas lado a lado, sem nenhuma hierarquia, com desenho a carvão e as primeiras pinturas feitas no iPad, impressas em grandes formatos e em edições de 25 exemplares. Os processos de elaboração das imagens para pinturas, desenhos e iPad são bastante distintos, mas têm uma coisa em comum. Exigem de Hockney que ele esteja em contato direto com seu objeto, a paisagem retratada. E, com Woldgate, ele não se encontra com uma paisagem qualquer, e sim a dos arredores de sua casa de infância, berço de seus primeiros olhares.
Para realizar as pinturas polípticas, ele frequentemente levou para a estrada enormes cavaletes, em que instalava as várias telas que seriam pintadas lado a lado e umas em cimas das outras. Para os desenhos a carvão e as pinturas em iPad, usou o próprio trajeto da estrada para desenhar. Ocupando a cadeira do carona enquanto um assistente dirigia, o artista a natureza mudando a cada curva e procurava transmitir imediatamente para o papel aquilo que via. Estes desenhos em preto e branco são aparentemente dissonantes com as pinturas em cores fortes (algumas chegam a ter tons fluorescentes, muito intensos), mas reforçam uma pesquisa sobre a cor. No texto do catálogo da Annely Juda, Hockney explica que chegou ao desenho em preto e branco por causa da crença dos chineses, mestres do desenho a carvão, de que nestas duas cores havia muitas outras escondidas.
A exposição realizada este ano em sua galeria londrina dá ainda mais destaque para as pinturas em iPad e apresenta uma instalação em vídeo sobre Woldgate. Vendo todos estes trabalhos juntos, é possível perceber que a mesma inquietude que levou Hockney a realizar O conhecimento secreto permanece viva, e o leva a investigar novas fronteiras entre a história da arte e a tecnologia, mas usando agora seu próprio trabalho e não um livro como vetor. É próprio da arte contemporânea enfrentar o tempo de maneira não-cronológica, elástica. Os artistas acessam o imenso patrimônio de imagens e/ou atitudes construído ao longo dos tempos, e estabelecem um permanente diálogo com ele. Hockney tem entabulado esta conversa com grande propriedade, deste o início de sua carreira.
A paisagem de Woldgate, registrada nas pinturas de Ipad, nos desenhos a carvão e nos vídeos, parece lançar novas luzes sobre esta trajetória tão rica. O artista decidiu visitar os arredores de sua cidade depois que seu companheiro, que vivia com ele na Califórnia, adoeceu e morreu. Percorrer as estradas de Yorkshire foi uma maneira de reencontrar um caminho de serenidade e alegria, e, ao mesmo tempo, de costurar uma reaproximação com uma tradição britânica de pintura de paisagem (Constable, Turner).
Outra questão importante é o fato de que esta apreensão imediata de pinturas e desenhos o leva a uma conversa intensa com os impressionistas, tão importantes na abordagem de Crary sobre o colapso do modelo estabelecido pela câmara escura. Ao montar pequenos acampamentos no meio da natureza, para pintá-la como sensação e experiência, Hockney demonstra que continua sua pesquisa sobre a técnica dos grandes mestres, mas agora se debruça sobre outro veio, mais próximo à virada do século XIX para o século XX.
Neste sentido, é também digno de nota que as pinturas reunidas na série The arrival of spring, e apresentadas na Royal Academy, reforcem uma aproximação entre sua obra e a de dois artistas neoimpressionistas: Van Gogh e Gauguin. Esta conversa é visível na escolha da paleta de cores, sempre acesa; nos contornos muito fortes de árvores e troncos; na surpresa atingida com a torção de planos e a inclusão de linhas ortogonais que “quebram” a paisagem.
A instalação em vídeo e as pinturas feitas no iPad apontam para outras fronteiras tecnológicas, mas sem abrir mão da pesquisa sobre a imagem. No caso da obra em vídeo, montada com 9 telas de plasma, Hockney convida o observador a passear de carro pela estrada de Woldgate. Em um primeiro momento, a sensação é a de que percorreremos um caminho de imagem contínua, apenas apresentada em tamanho maior pelas “emendas” sugeridas pelas várias telas juntas. Segundos depois já sabemos que as telas não são um puzzle convencional e sim uma espécie de fractal: cada parte pode revelar outros ângulos da mesma paisagem apresentada frontalmente pela maioria das outras telas. Os vídeos seguem em looping, promovendo esta sucessão de desencaixes cezanneanos, pura vertigem.
Ele planejou as pinturas em iPad para que fossem impressas em grandes formatos, e assim revelassem muito de sua fatura nas ampliações. Os recursos próprios dos programas digitais (filtros para desfocar, diâmetros variáveis de pincel) ficam muito evidentes, e com isso Hockney faz o que Holbein fez com Os embaixadores: cada qual em seu tempo, os artistas demonstram que dominam a tecnologia de última geração disponível.
A fatura atingida com o iPad também leva a um diálogo com linguagens muito atuais: além do evidente encontro com os meios digitais, os pincéis presentes nos programas de computador se assemelham aos jatos que vêm das latas de tinta usadas pelos grafiteiros. Não deixa de ser curioso que, em uma série na qual se aproxima da pintura ao ar livre dos impressionistas, Hockney também estabeleça um ponto de contato com a arte urbana. O grafite é tão pintura rápida e de sensação quanto o Parlamento retratado por Monet. Se com a instalação em vídeo Hockney visita a mídia hegemônica no século XX, com o iPad aponta para um devir. Há ainda muito a fazer com celulares e tablets, uma plataforma movente para a arte.
Termino este texto porque é preciso, mas com mesma sensação que tive na saída da galeria Annely Juda. Já na esquina da Oxford Street, imersa no barulho de um canteiro de obras e no vai-e-vém dos pedestres, olhei para esquerda, enxerguei a pontinha do Hyde Park, e à frente dela um camelô que vendia lenços coloridos. Londres também é um quebra-cabeças de tempos e espaços desencontrados, um caleidoscópio tão bonito quanto a obra do senhor que eu acabara de visitar. Com 81 anos, Hockney mostra que sua arte se torna ainda mais presente quando faz a memória desengavetar muitos outros tempos.