Revista Caju

O protagonismo de artistas trans é celebrado em O agora não confabula com a espera, de Iara Izidoro, e Quanto mais ensaia pior fica, do coletivo Mexa, espetáculos integrantes do Festival Panorama Raft. Ambas as produções se furtam de serem conformadas em uma única linguagem artística, de modo a transitar por várias dimensões do que entendemos hoje como performance. 

A corpa preta solitária de Iara Izidoro vibra sobre fundo escuro no filme performado e dirigido por ela. A artista realiza movimentos com suas articulações, ombros, cotovelos, joelhos, punhos e se envolve numa espécie de jogo violento consigo mesma, no qual evidencia a linguagem corporal das ruas. Penso, por exemplo, no movimento dos corpos conduzidos pelo balanço dos transportes públicos. Vemos na cena a inércia e a sujeição até que, em dado momento, ao se utilizar de dispositivos eletrônicos acoplados em seu tórax e braços, sensores captam os sons de cada mínimo movimento, de forma que a corpa de Iara se afirma mais ativamente ao nosso olhar. Se antes uma trilha sonora conduzia a artista, agora é ela quem conduz os sons, tudo com uma sutileza quase indescritível. Somos levades, assim, a acompanhar cada suspiro de Iara em movimento, e percebemos que aquilo que antes parecia só estrutura, agora se refaz, como a liquidez das águas que formam um corpo. 

A composição das cenas todo o tempo nos confronta e seduz, característica da linguagem cinematográfica a qual a artista se utiliza de modo consciente; tudo é pensado nos mínimos detalhes, dirigido com precisão. Quando há respiro entre as cenas, eles são um tanto quanto angustiantes de modo que O agora não confabula com a espera nos deixa um silêncio oco, um suspense que é próprio das profundezas, um monólogo que fala com o movimento mais do que com a boca.

Com o coletivo Mexa, profundezas sociais

A solitude de Iara contrasta com as tantas vozes do coletivo Mexa em Quanto mais ensaia pior fica, obra que também trata de profundezas mas, dessa vez, mais nitidamente de profundezas sociais. Corpas que carregam o estigma da prostituição compulsória, os traumas da violência das ruas e da modificação corporal, se afirmam nesse espetáculo como dotadas do poder de fazer arte: a arte de se inconformar e, para além disso, a arte de amar. O coletivo Mexa consegue quebrar nossas expectativas sobre o que seria o amor, sendo um elogio ao transbordar das emoções que nascem a partir de gestos de revolta.

Grupo Mexa põe em cena as corpas dissidentes das ruas em prol da arte se transformar e amar

Ao estabelecer um “método” de criação, um tempo de duração para a execução do ensaio e da apresentação final, o grupo Mexa evoca um procedimento composicional que a artista performer Eleonora Fabião chama, em um ensaio para a Revista Lume, de “programa performativo” – uma espécie de enunciado para a performance – ações claras estipuladas pela/o artista previamente e que devem ser seguidas por ela/e. O “programa” se distingue, então, da ideia de espetáculo e se aproxima, assim, da experimentação. 

Ainda que o resultado final de Quanto mais ensaia pior fica seja a formação de um espetáculo em palco italiano, ao mostrar ao público na página de exibição do Festival Panorama Raft o ensaio de composição da obra, o grupo Mexa trata da noção de cena expandida, uma vez que acessamos o processo de criação juntamente à obra final, confundindo as noções de um espetáculo pronto e seu processo. Não à toa, a ficção se mistura às vivências das protagonistas na obra, que é também composta por interpretações de canções populares (como O amor e o poder, sucesso de Rosana nos anos 80) além de performances-protesto. Trata-se de representações que vibram performativamente, como no diagnóstico de Fabião no já citado ensaio Programa performativo: o corpo-em-experiência. Para ela, há uma influência nítida da ideia de cena ampliada, ou “campo ampliado”, segundo a teórica das artes visuais Rosalind Krauss, na produção teatral hoje. 

Vemos Anita Sílvia, trans, portadora de deficiência física, como num desconfortável golpe de sua corpa em direção ao nosso olhar normatizado, desabar propositadamente de sua cadeira de rodas como modo de expressar as dores geradas pelo julgamento alheio. Ouvimos de Luíza Bruna dizer: “medo e fascínio andam juntos”, o que não é apenas uma frase de efeito. Como coloca a artista, “fascínio pelo meu corpo e medo que eu delatasse você no dia seguinte de uma noite de prazer”. E ainda: “de tanto que eu obedeci o comando de vocês para que eu tirasse a minha roupa, agora eu quero que vocês me vistam!” Entretanto, ela pede calma aos que a vestem, já que sente dor graças ao silicone líquido industrial introduzido em sua corpa nos anos 80 para “agradar” sua clientela e ser aceita pelas “manas” das ruas. 

O mesmo silêncio oco gerado pela performance de Iara Izidoro pode ser sentido quando o espetáculo do grupo Mexa encerra. E o Festival Panorama Raft se afirma como território experimental e de multiplicidade ao conceder espaço para que grandes artistas dissidentes possam protagonizar suas criações-ações. Que tais silêncios ocos produzidos em nós possam transcender o terreno da ficção e transformar-se em combustível para que sejamos braços efetivos nas lutas dessas corpas pela vida, direitos e liberdade. E que em nossas profundezas, quem sabe mediadas pela arte, possamos, de fato, nos encontrar.

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IMAGEM DO CABEÇALHO:

O agora naõ confabula com a espera, de Iara Izidoro. Foto de Rogério Alves.