Revista Caju

“E agora? Como que a gente faz performance no quintal de casa?” A pergunta certeira do performer pesquisador Princesa Ricardo Marinelli, logo após a estreia mundial de Matéria escura, peça físico-digital do coreógrafo Alejandro Ahmed com o seu Grupo Cena 11, resumiu toda a revolução criativa que havia passado como um flash, durante cerca de uma hora de apresentação. “E agora?”, repito eu, dias depois daquela experiência multissensorial, que chacoalhou com a noção tão repetida e maçante de fazer dança virtual durante a pandemia, para uma plateia escondida atrás de computadores, celulares e aparelhos de TV. À crítica cabe a espinhosa tarefa de dar conta, com palavras, de um corpo antes e de um corpo depois daquele momento de completa desestabilização. 

Alejandro é, antes de mais nada, um pesquisador rigoroso, que há três décadas mexe com as bases da dança cênica no Brasil, com altas doses de risco físico, amor à tecnologia e pensamento sofisticado. O coreógrafo e a equipe afiadíssima que o acompanha há anos conseguiram o que parecia impossível nesse tipo de experiência remota: engajar corporalmente o público, tal e qual estivesse ali, colado aos performers. E com (quase) tudo acontecendo em tempo real, captado do palco da sede da companhia, em Florianópolis, e astutamente mixado com cenas pré-gravadas pelo próprio Alejandro ao lado de João Peralta. As câmeras que registram o corpo dos intérpretes-criadores surgem conduzidas por eles mesmos, num jogo coreográfico sagaz de cortes e distorções de imagens, capaz de expandir as movimentações para além da cena, criando diferentes percepções de presença para quem assiste, reverberando além do aqui e do agora. O diálogo entre corpo e tecnologia e a conexão entre corpo e ambiente, que alicerçaram a história do Cena 11 na dança brasileira, em trabalhos como In’Perfeito (1997), Violência (2000) e Embodied voodoo game (2009), ganham, assim, novas dobras. 

Elementos cênicos facilmente reconhecíveis da companhia compõem as imagens que vão tomando a tela.  Primeiro delicadamente, caso de uma gota caindo em câmera lenta dentro de um pote de água; em seguida, em um ritmo alucinado, que mistura de forma nada hierárquica movimentação física, texto, sons, projeções, objetos cenográficos e instrumentos musicais nada ortodoxos. Contudo, aquilo que se sabia até então como marca cênica se esgarça, decompondo-se e recompondo-se em múltiplas temporalidades, com cortes secos, inversões, distorções, grafismos e até fantasmagorias. Uma dramaturgia cinética, nas palavras de Alejandro; um ecossistema em mutação, gerador de fabulações.

Grupo transpõe conceito de corpo-vodu para ambiente virtual

Um convite à imaginação que começa pela tela em preto-e-branco salpicada aqui e ali  com alguns elementos-chave em cores fortíssimas, sobretudo o verde, aproximando a cena da linguagem de quadrinhos (ou de videogame, outro interesse assumido da companhia). As quedas que exploram o limite do corpo vêm com força, mas em momentos precisos. O corpo-vodu, conceito criado por Alejandro, está lá, ganhando novas e inesperadas intensidades. No site da companhia, ele é definido como um corpo que “propõe a ideia de violentação da percepção do outro, considerando como metáfora o boneco vodu – o boneco é o bailarino, os movimentos são as agulhas e o objeto do ‘feitiço’ é o corpo do espectador”.

Corpo-vodu: bailarinos são ‘espetados’ pelos movimentos, mas o espectador é o alvo do ‘feitiço’

Os microfones espalham diferentes sonoridades pelo ar. As palavras propriamente ditas, que agora ocupam a tela, são reproduzidas como legendas (nem sempre fiéis, desarrumando ainda mais a cena) por um mecanismo de captação caótico, enquanto são faladas pelos performers em português e em inglês. Frases soltas que vão e vêm, repetidas muitas vezes à exaustão, como “o ar aqui é ruim, eu me sinto bem”, massageiam os sentidos e sensações, ou outras como “você tá me vendo?”, são capazes de trazer o espectador para dentro da cena.

Estímulo à capacidade de fabulação do espectador

O corpo de quem assiste se conecta com os bailarinos e tudo que está ao redor, já que Alejandro e sua turma oferecem caminhos fabuladores para quem está do outro lado da tela. E aqui recorro à ideia desenvolvida pela pesquisadora Christine Greiner em seu livro Fabulações do corpo japonês e seus microativismos (N1-Edições). A partir de estudos de filósofos como Bergson e Deleuze, e das pesquisas da coreógrafa e estudiosa Erin Manning, Greiner afirma que, lidando com processos imaginativos, a fabulação é uma operação desestabilizadora, criadora de deslocamentos, capaz de abrir novas possibilidades de ação, ou seja, microativismos. Segundo ela, a função fabuladora é um estado corporal, constituído a partir de processos imaginativos mediados pelo organismo e pelos ambientes onde transita. “Ela começa com um gatilho de percepção e o que vai diferenciá-la das outras habilidades e funções corpóreas é a sua aptidão para instaurar desestabilizações nos padrões habituados”, diz a autora, numa definição que parece se encaixar à experiência diante do novo trabalho do Cena 11. 

Quando se imagina que não há mais surpresas possíveis, Matéria escura oferece um momento final em que o gatilho perceptivo apontado por Greiner se torna ainda mais escancarado. Os corpos dos performers vão se diluindo na tela, transformando-se em abstração e, em seguida, em grafismo. De repente, há um corte inesperado e a imagem segue para os artistas se movendo numa floresta, com árvores colorizadas de verde e uma bailarina montada num cavalo. Aos poucos, todos se encaminham lentamente a uma praia paradisíaca, onde um drone nos leva para uma viagem no meio do mar, também pintado de verde. Um alento silencioso, uma calmaria, depois de tanta desestabilização. Um convite a uma ficção, outra. Não custa sonhar. 

Inovação embasada por minucioso processo de pesquisa

Para além do que foi exposto na cena propriamente dita, o novo trabalho do Cena 11 ainda põe em jogo múltiplas camadas do necessário binômio arte e política. Manter uma companhia de dança com elenco fixo e repertório extenso (são 19 criações desde os anos 1990), seguir pesquisando, inovando e promovendo reflexões, sobretudo fora do eixo Rio-São Paulo, e apostar em colaboradores longevos, donos de corpos às vezes fora dos padrões, são atos políticos, sem nunca deixarem de ser estéticos. Um projeto que desde sempre aposta no coletivo e que, em Matéria escura, se traduz num grupo formado por Alejandro Ahmed, Aline Blasius, Bianca Vieira, João Peralta, Karin Serafin, Kitty Katt, Luana Leite, Malu Rabelo, Natascha Zacheo. 

Marcado por uma história de ousadia, grupo volta investir na expansão perceptiva

Só um trabalho árduo, incansável, meticuloso de pesquisa, criação e ensaio é capaz de dar conta do que acontece na cena de Matéria escura. E, para isso, é fundamental dinheiro, algo tão raro na vida dos artistas da dança no Brasil desgovernado de hoje, mas que neste caso foi possível também pelas articulações nacionais e internacionais do Panorama. Nesta edição são quase 20 parceiros de diferentes partes do mundo e o sempre presente Sesc como representante brasileiro. 

Finalmente, se Matéria escura atualiza magistralmente a noção de dança pós-pandemia, também reafirma a vocação do Panorama em fazer história nas artes do corpo por aqui nas últimas três décadas. O festival criado em 1992 pela coreógrafa Lia Rodrigues, que a partir de meados de 2000 passou a ser dirigido pela jornalista e crítica Nayse López, soube se adaptar aos novos tempos virtuais, sem deixar de lado seu compromisso como vitrine de pesquisa e diversidade da dança e da performance brasileiras.

A lista de trabalhos escolhidos para a edição Raft – dentro de uma assumida curadoria que emula a sobrevivência dos artistas, assinada por Nayse ao lado do artista visual Rafael RG e do coreógrafo e bailarino Marcelo Evelin – se conecta às discussões e aos temas mais atuais e necessários da cena artística e política daqui e do mundo, como questões de gênero, raça e empoderamento feminino, reunindo trabalhadores da arte de 15 estados do Brasil. São dez obras de criação e cinco de pesquisa e desenvolvimento, estas apresentando o processo de investigação, com acompanhamento teórico, sem o objetivo de chegar a um formato acabado, um produto final, ou seja, uma verdadeira bagunça na lógica do mercado neoliberal da arte. Um luxo em tempos tão difíceis. 

***

IMAGEM DO CABEÇALHO (E DEMAIS IMAGENS DO TEXTO):

Matéria escura, do Cena 11. Fotos de Cristiano Prim.