
O que pode unir autores latino-americanos tão diversos como Felisberto Hernández, Virgilio Piñera, Armonía Sommers, Pablo Palacio, Mario Levrero, Juan Rodolfo Wilcock ou Campos de Carvalho? Apesar das características específicas que definem suas obras, todos eles em algum momento foram qualificados como autores “raros”, “excêntricos” ou “atípicos”. Mas, o que significa isso?
A diversidade de suas propostas coloca em evidencia um dos primeiros desafios que aparecem ao aproximar-se da temática: a extrema dificuldade para chegar a um consenso sobre a definição ou tipificação do raro literário.
Aparecem duas linhas de desdobramento do problema desde o próprio significado da palavra: por um lado, a questão do pouco frequente, escasso; e por outro, a questão do extraordinário e do extravagante. Aqui, teria uma implicação de valor, como algo insigne, sobressalente, uma coisa que sobressai de um conjunto, que se destaca, que é propenso a singularizar-se.
Passando propriamente ao campo literário hispano-americano, a primeira referência ao problema se remonta ao livro do poeta modernista Rubén Dario, intitulado precisamente Los raros, publicado pela primeira vez em 1896. O livro está composto por um conjunto de perfis biográficos que Rubén Dario escreveu para o diário La Nación, de Buenos Aires, ao final do século XIX. Entre os escritores que Dario comenta estão o Conde de Lautreamont, Edgar Allan Poe, Paul Verlaine, Leconte de Lisle, León Bloy, José Martí, Ibsen e Eugenio de Castro.

O que Dario entendia como raro naquele momento pode ser entendido como aquilo que era oposto à tradição hegemônica. Nesse sentido, para Dario o raro, o que Noé Jitrik (1996) vai chamar depois de o atípico, apareceria como a não aceitação de um certo caminho preestabelecido. Para Dario, esses autores e essa literatura rara configurariam uma espécie de resistência. Acho que isso se mantém nas diversas tipificações posteriores do raro ou atípico. Permanece uma certa ideia de um tipo de literatura ou de autor que resiste a uma tradição central ou ao que se esperaria de uma certa literatura.
Assim, uma maneira frequentemente utilizada para compreender e tipificar os escritores ou escritoras raras tem sido a de destacar como eles se afastam de uma tradição literária que por diversos motivos (lugar de nascimento, pertencimento comunitário, momento histórico em que publicam sua obra etc.) deveria ser a sua, e, em troca, escolhem uma outra filiação, que parece singular e que se opõe à tradição hegemônica.
Escrita e vanguarda
Os raros poderiam se aproximar dos autores vanguardistas, embora existam algumas diferenças importantes entre eles. Para Sergio Pitol (2006), outro dos escritores contemporâneos aficionados aos raros ou excêntricos, haveria uma diferença central entre os raros e os vanguardistas, no sentido em que os vanguardistas tendem a ser bastante normativos, tendem a formar grupos (e a expulsar de vez em quando algum membro do grupo) e a determinar, ou pelo menos tentar determinar, o que seria uma verdadeira literatura através de manifestos, revistas, intervenções. O raro, pelo contrário, não costuma fazer grupos, se isola, não faz nenhum manifesto, não costuma definir normativamente o que seria a literatura, nem mostra muito interesse em participar da vida política. Por esses motivos, alguns deles foram acusados de alienados ou identificados mais à direita do espectro político, como poderia ser o caso de Felisberto Hernández.

Outra questão que surge ao se aproximar do tema é a relação que poderia ser estabelecida entre obra e biografia. É o autor raro ou é rara sua obra e sua escrita? De maneira frequente a questão dos raros tem sido encarada desde uma perspectiva que se aproxima muito mais das características específicas de uma determinada personalidade excêntrica ou marginal.
O livro do espanhol Juan Manuel de Prada, Desgarrados y excéntricos (2001), é um bom exemplo desta perspectiva. Aqui, mais que as características de uma obra literária, que na maioria dos casos teria pouco ou nenhum valor estético, o que interessa são as vidas destes seres marginais e excêntricos. Um dos epígrafes do livro é uma frase de Oscar Wilde que evidencia muito bem a questão: “Un gran poeta resulta la menos poética de las criaturas. Los poetas mediocres, en cambio, son absolutamente fascinantes. Cuanto peores son sus rimas, más pintorescos parecen” (Prada, 2001, p. 9).
O que podemos ver, através desse exemplo, é como também o conceito do raro vai se reconfigurando no tempo. Enquanto para Dario o valor estético da obra era central na definição do raro, para Juan Manuel de Prada o que mais interessa são as características de uma determinada vida literária: desgarrada, excêntrica, triste, maldita, marginal.
Indo um pouco além nesta perspectiva, poderíamos pensar que os raros hoje em dia podem estar associados com um gesto performático, tanto na obra como na forma em que estes escritores apresentam a figura do autor de maneira pública. Pensemos, por exemplo, nos casos de escritores hispano-americanos contemporâneos, como César Aira, Fernando Vallejo ou Mario Bellatín, nos quais a raridade passaria não só pelas características de algumas de suas obras (especialmente nos casos de Aira e Bellatin), senão também pela forma em que realizam uma performance particular da figura do autor.
Um ponto interessante aqui é ver como então o significado e os usos políticos do conceito se modificam em relação a diversos contextos históricos. E como também vai se configurando uma determinada filiação dos raros. Assim, escritores contemporâneos recuperam alguns desses autores criando uma genealogia própria e alterando de algum modo o cânone e as histórias da literatura. Mas por que o interesse de autores como Enrique Vila-Matas, Roberto Bolaño ou César Aira por esses autores esquecidos e marginais? O que há nessas obras que se torna uma possível saída para certo impasse na literatura contemporânea?
Escritores à frente de seu tempo
Não se trata simplesmente de uma questão de resgate e de um trabalho reivindicativo, como já advertia Jitrik (1996). Trata-se melhor de confirmar o caráter antecipatório ou visionário destes autores raros, que em muitos casos, sem plena consciência, estavam gerando uma ruptura que somente poderia ser compreendida e assimilada muito tempo depois. Essa ideia está em sintonia com a afirmação de Giraldi (2010), no sentido em que a diferença na escrita que apresenta um autor raro pode chegar a generalizar-se e em alguns casos tornar o raro um clássico. Acredito que é esse o caso de Kafka, por exemplo, e é também a forma como Jitrik entende em parte o lugar dos raros em um determinado sistema literário.
Na perspectiva de Jitrik (1996) seriam raros ou atípicos, como ele prefere chamá-los, os escritores de ruptura, mas não todos eles, somente aqueles cuja proposta não teria sido aceita. Para ele os raros seriam aqueles que fizeram essa ruptura e ainda não foram totalmente assimilados. Seriam autores que ainda mantém uma certa resistência a serem incorporados pelo sistema literário.

Um exemplo claro para Jitrik é o caso de Macedonio Fernández, que até hoje continua sendo um raro, um autor que não consegue ser assimilado totalmente pelo sistema literário e que não tem descendência. Embora existam muito mais estudos sobre ele, publicações de suas obras, resenhas criticas, ainda assim, Macedonio segue sendo um autor de difícil incorporação e que não tem gerado aparentemente uma estirpe de continuadores. Nessa perspectiva, o cerco sobre os raros parece se estreitar em boa medida. Autores como Kafka ou inclusive Felisberto Hernández, deixariam há tempo de ser considerados autores raros ou atípicos, pois sua proposta de ruptura já teria sido plenamente incorporada pelo sistema literário.
Finalmente, a consideração e estudo dos raros ou atípicos nos leva também a problematizar as operações críticas, métodos e configurações das diversas histórias da literatura. Alguns desses raros, por exemplo, teriam conseguido alterar a estrutura dessas histórias ou pelo menos problematizar o estabelecimento de cortes históricos compactos que pretendiam identificar uma época ou período histórico-literário, através de uma série uniforme de características. Pelo contrário, a identificação dos raros dentro de uma determinada série histórica permite evidenciar o caráter poroso, não linear e dinâmico das histórias da literatura.
Bibliografia:
BLIXEN, Carina. “Variaciones sobre lo raro”. Cahiers de LI.RI.CO, N.5, 2010.
DARIO, Rubén. Los raros. Buenos Aires-México: Espasa-Calpe, 1952.
DE PRADA, Juan Manuel. Desgarrados y excéntricos. Barcelona: Seix Barral, 2001.
GIRALDI Dei Cas, Norah. “¿Por qué raros? Reflexiones sobre territorios literarios en devenir”, Cahiers de LI.RI.CO, N.5, 2010.
JITRIK, Noé. Atípicos en la literatura latinoamericana (Prólogo). Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1996.
PITOL, Sergio. El mago de Viena. México: Fondo de Cultura Económica, 2006.
Autor
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Rafael Gutiérrez é escritor, crítico literário e doutor em estudos de literatura. "América Latina: os raros na literatura" é um fragmento de sua pesquisa de pós-doutorado intitulada “Raros e excêntricos. Cânone e deslocamento na literatura latino-americana”, realizada com apoio do CNPq, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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