“Minha ética é com o tempo”, diz a mulher de cabelos brancos – moldura para o rosto ainda jovem e contraste para os olhos faiscantes, quase infantis. Vera Holtz sabe ser e ter muitos tempos no aqui e no agora. Uma prova disso é a atuação da atriz em redes sociais como o Facebook e o Instagram. A cada foto postada em suas páginas públicas, abertas a quem queira frequentá-las, ela mobiliza centenas de comentários, curtidas e compartilhamentos. Mas faz isso sem devassar sua vida pessoal, mostrar o prato que está comendo, a bolsa que comprou, o encontro com o companheiro da novela, os selfies com amigos e familiares. Na contramão de alguns de seus colegas, que reafirmam na internet todos os clichês de uma “celebridade”, Vera navega remando contra a corrente, sem ser fisgada pelo arrastão de imagens. Desde o ano passado, cria e divulga fotoperformances, a maioria delas tendo como cenário a mesa de jantar e a parede de cimento queimado de sua casa em São Paulo. Nesse ambiente quase sem nenhuma informação sobre a decoração do apartamento ou sua rotina doméstica, Vera criou um palco quase nu. Vem explorando suas frestas para fazer do Facebook uma plataforma artística e reafirmar seu ofício. Mantém a máscara do teatro, descartando uma outra, muito comum nos dias que correm – a que veste o personagem da “pessoa famosa na vida real”. A menina que passou a infância pulando cerca em Tatuí e foi dirigida por alguns dos maiores diretores de teatro do país é hoje uma das atrizes mais importantes de sua geração. Colecionadora de arte, é apaixonada pela obra do pernambucano Gilvan Samico, mas tem especial interesse por pintura, a única faculdade que chegou a concluir. Vem flertando com a fotografia expandida de Cindy Sherman e Nan Goldin, não para compor seu acervo, e sim por essas seuas experiências nas plataformas virtuais: “É um trabalho intuitivo, de emoção. O que me interessa é estar sempre em estado criativo. O Facebook é só mais uma ferramenta. Usar uma ferramenta é simples; saber o que fazer a partir disso é que são elas”.
Chama atenção a maneira com que você usa suas contas no Facebook no Instagram, sobretudo quando se faz uma comparação com o uso feito por outras pessoas da sua atividade ou de meios afins. As pessoas geralmente usam suas páginas como fuguras públicas para revelar o que elas são fora de suas atividades profissionais – aquilo que comem, que vestem, com quem dormem.
VERA HOLTZ: E essa atitude alimenta uma indústria do autofagismo.
Já você reafirma a artista, a máscara teatral.
VERA: Sempre foi muito difícil para mim conceituar o que faço na página. É um trabalho intuitivo e de emoção. Não saberia e nem sei até hoje direito o que estou fazendo, mas vou me mantendo em estado criativo. O artista tem o direito à criação, e quando abre mão disso está se esvaziando.
O impactante na sua atuação é que você revela a possibilidade de uma plataforma como o Facebook também ser espaço de criação, e não apenas de reprodução, de veiculação de informação.
VERA: A gente pode criar em qualquer lugar, usando qualquer ferramenta. O Facebook, o Instagram ou o Snapchat são apenas ferramentas, meios. O estado criativo se adequa a qualquer um deles. Usar a ferramenta é simples. Mas o que você vai fazer com uma ferramenta é que são elas. Minha primeira formação é a música, estudei piano. Então, até hoje sei tocar piano, sei teclar nas notinhas. Mas posso passar a vida inteira teclando as notinhas sem tocar piano. Como convivi desde muito cedo com a arte, aprendi também cedo o que era ferramenta e o que é transformar a ferramenta num veículo de comunicação, de expressão e, mais do que isso, de expansão da sua forma de ver o mundo. O Face, particularmente, tem feito isso comigo.
O que me interessa é a minha integridade com o tempo hoje, aqui e agora
Eu preciso te agradecer, porque venho aprendendo com você que o Face – vou me permitir chamá-lo com a mesma intimidade que você – pode nos oferecer outras formas de representação. A gente critica as redes sociais meio no modo automático: “Está todo mundo representando, inventando uma vida que não é a sua, fingindo que é feliz”. Isso não deixa de ser verdade, mas você vem tornando as formas de representar mais elásticas e, ao menos para mim, mostrando que o Face também pode ser teatro e ficção. Isso faz sentido para você? Há também uma plateia diferente da usual sendo formada…
VERA: Uma plateia distinta, mas que te dá um retorno imediato e às vezes bastante profundo do que você acaba de postar. Por isso gosto de publicar quando estou sentada e quieta em algum lugar, porque aí posso participar de alguma forma e por um tempo dessa reação, sentir esse retorno de compartilhamentos, curtidas e comentários. Nunca interfiro e nem censuro a opinião de nenhum deles, também não dou resposta, não bato boca, nada disso. Para mim os comentários positivos ou negativos são expressão. E eu quero a expressão. Gostem ou não gostem, não me importa, não faço julgamentos. O que me importa é que toda reação expressa alguma coisa. Quando eu fui fazer a página, os amigos que já tinham as suas me diziam: “Você tem que publicar foto do seu cotidiano, das memórias”. Eu pensei: “Não gosto de foto”, mas publiquei alguma coisinha aqui e ali. Mas o Facebook tem um tipo de linguagem que se alinhou comigo de outra forma, porque ele é aqui e agora. Fui reafirmando que não tenho relação com o tempo passado, e que a minha relação com aquelas imagens tinha ficado lá, naquilo vivido, na memória. Não me interessa essa “hora da nostalgia”, toda a quinta-feira a gente ficar lembrando de coisas antigas. Sou muito honesta com o tempo, eu vivo o tempo presente. O que me interessa é a minha integridade com o tempo hoje, aqui e agora. Pensando nisso para mim já cai a crença em segunda vida, terceira vida, quarta vida. Para mim o que a gente tem é o agora. Minha ética é com o tempo, com viver da melhor maneira o aqui e o agora. Não me prometa coisa para amanhã e nem me cobre coisas de ontem.
E há um momento-chave que traduziu em imagem essa percepção?
VERA: O coque. Eu estava com o Charles Azevedo, que é meu assessor de imprensa e que também é ator. Estava abrindo a porta da garagem do prédio, segurando uma sacolinha, e ele de brincadeira botou a sacolinha no meu coque. Eu sempre estou de coque, nesse calor é uma identidade minha, que insisto nos meus cabelos longos. Na hora eu disse: “Charles, fotografa isso, de lado, de frente e de costas. É isso, essa é a linguagem que me interessa no Facebook”. Passei então no humor presente no dia-a-dia, na alegria. Logo depois, estava em Tatuí, na festa de 1 ano de um sobrinho-neto e a Célia, uma prima, pendurou os balões de aniversário na minha cabeça. Foi o inesperado. Uma sobrinha fotografou do mesmo jeito: frente, perfil, costas. Passei a fazer do coque uma crônica: com a baguete e o tíquete de metrô em Paris, com o chapéu num modelito de “coque verão” em Veneza, e este acho que não deu muito certo, porque a faixa do chapéu, com a palavra “Veneza” fecha muito a história no tempo e no espaço. Gosto da imagem mais aberta.
E depois do coque?
VERA: Passei a manter um grupo de discussão sobre o Facebook como plataforma artística no meu apartamento em São Paulo. O [jornalista e diretor] Evaldo Mokarzel e outros amigos participam dele. Na primeira reunião, sentamos em volta da mesma mesa que uso como cenário em todas as fotos. Depois do encontro, pessoas como [os cartunistas] Angeli e Laerte também entraram no debate, pensando em como, por exemplo, fazer tirinhas de quadrinhos no Face.
Tento pegar uma imagem que nunca foi tocada
Uma série de fotoperformances muito comentada foi a do carnaval, com o copo de chá de boldo, que tem 11 imagens.
VERA: Sou formada em geometria, além de artes plásticas. Então uma ideia para mim pode ser um encontro de diedros. A visão espacial é muito importante. Pego uma ideia, giro em torno dela, vou pra dentro dela, saio dela e, com isso, tenho múltiplos pontos de vista. Tento pegar uma imagem que nunca foi tocada. Tenho essa busca pela imagem que nunca esteve sob outro olhar. Tenho a mesma busca no teatro. Vou até o último ponto em que não vou sair voando, porque, como diz o Nietzsche, “quem gosta de abismos precisa ter asas”. Quando estou em um espetáculo, até a véspera da estreia ou até momentos antes de abrir a cortina eu ainda tô tentando achar alguma coisa, ainda estou aberta a uma ideia que pode vir.
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É interessante, você usou uma sinestesia: “eu tento pegar uma imagem que nunca foi tocada”. Isso é muito bonito, porque você é atriz e, nessa frase, reafirma que é o corpo que está criando a imagem. Ela só ficaria pronta, se é que ela fica, se você a faz, se você dá o seu corpo para ela.
VERA: Sim, só quando eu faço, e quando faço atravessada pela emoção. Geralmente é a primeira imagem, feita pelo meu celular, que vai para o ar. O Renato Santoro, arquiteto que fez a reforma dos meus dois apartamentos, me ajuda a fotografar.
Parece haver uma sincronicidade entre certas imagens e o momento social e político do país. É intencional?
Muita gente associou as fotos da maçã ao estupro coletivo da menina na favela do Rio [episódio ocorrido em maio desse ano, gerando muita discussão nas redes sociais e mobilizações na rua]. A maçã é realmente uma imagem poderosa e feminina, com a qual você vai onde quiser, da Bíblia ao Guilherme Tell. Mas a minha intenção era pensar no alvo. Eu estava mexendo em uma obra de arte, uma maçã flechada do artista Zemog, quando a flecha saiu na minha mão. Ao ver isso, já pronta para fazer a foto, eu inventei o gesto da flecha apontada para a minha cabeça. Eu engoli também engoli peixes, engoli pedras, moedas…
Isso em um momento em que a gente tem sido obrigado a engolir muita coisa.
Fiz todas essas imagens no auge do processo de impeachment [contra a presidente Dilma], mas procurei fazer disso um posicionamento que não passa pelo verbal. Além disso, é uma imagem que se abre para os dois pontos de vista: estou engolindo ou expelindo o peixe? Estou forçando as pedras goela abaixo ou vomitando-as? Não cabe a mim dizer, mas meus amigos mais atuantes dos blocos de polarização que se desenharam nessa época se sentiram identificados.
As fotos então são também poemas, cada um lê como quer?
Isso é o mais lindo. Estou pensando em fazer um livro que traga as imagens com os comentários das pessoas. Não quero escrever nada, quero que o texto seja feito da reação às imagens.
Excelente entrevista Daniela. Parabéns. Não parece nem de revista ou jornal e isso é elogio
Adoramos o seu comentário. Um abraço cajuíno para você, Fernando