#CajuPeloMundo: Sob esse guarda-chuva, a revista publica críticas, resenhas e ensaios de acontecimentos recentes ocorridos fora do Brasil. Este texto foi escrito para publicação da exposição A pele e a espessura do desenho, em cartaz na cidade do Porto, em Portugal. A mostra reúne cinco artistas – Amélie Bouvier, Nazareno, Paulo Climachauska, Renato Leal e Sofia Pidwell – e já foi montada em São Paulo e Lisboa.
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Por que o desenho? O desenho transporta o deleite – quase instintivo – pelo orgânico que acumula e subtrai unidades de vida das pessoas, atribuindo-lhe leveza e densidade, ao mesmo tempo. O desenho traz consigo a substância do deleite, da desconstrução, da complexidade e do pensamento de autocrítica que solidifica a identidade em viagem, em estado de utopia…

O conjunto de desenhos, os desenhos instados* e os murais desenhados que integram esta exposição – sempre diferente em cada um dos lugares que a acolhe – obedecem à concentração no essencial, traduzido nas ínfimas partículas que contêm frações visuais e mentais do mundo singular e dialogante de cada um dos cinco artistas. Em A pele e a espessura do desenho, os artistas geram complementaridades. Cada um dos artistas selecionou os meios específicos para se aliar ao espaço da Casa Museu Guerra Junqueiro, procurando-lhe ínfimas entranhas – sinuosidades de contorno e de ângulos, portas, paredes, tetos, muros, chão. Tudo se propiciou para que reagissem num tempo igualmente diferente, onde o fio dos dias traz novidades, ambiguidades e comprovações. Assim, as formas preenchidas pela perceção de cada visitante-espectador flexibilizam entendimentos e sensibilidades, num esforço de converter em figurações (abstratas e/ ou representacionais) as “coisas” desenhadas por contornos, mais abertos ou fechados sobre si em linhas, planos e volumes.
Exploram gêneros históricos na arte, tanto do desenho, quanto da pintura ou escultura. Entenda-se: as unidades gráficas servem os propósitos diferenciados que os desenhistas quiseram plasmar. Sabem-nas passíveis de endireitar árvores, transpor nuvens e ondas grandes no mar, reorganizando elementos que integram as coisas da natureza, anunciando terra, água, fogo ou ar. Também aquelas linhas progressivas (ou regressivas) que direcionam os eixos arquiteturais de edificações imaginadas ou factuais – inteiras ou destituídas. São, igualmente, sinais rápidos de seres reais, de híbridos: zoomorfias, antropomorfias e assim por diante. Movimentam-se, refletindo energias que se geometrizam e abstraem quase até ao despojamento semântico. Ou seja, mesmo que estejam a representar, ausentam significados previsíveis, para lograrem uma plataforma de desinteresse estético que Kant anunciaria como primordial estético. Ascendem a uma autonomia onde deixa de ser importante reconhecer a palavra ou frase do que é, para se mergulhar numa oscilação entre o apenas reconhecimento do sinal (unidade) gráfico e o direito ao entendimento pessoal, à interpretação que o artista tenha empurrado para o lado do espectador neste jogo plural.

Num primeiro momento, assinale-se a presença maior da “unidade gráfica que é sinal gráfico”, como elemento privilegiado que reside e predomina na produção dos 5 artistas. É resultado de uma ação compulsiva, que se traduz no acúmulo, progredindo na composição, em simultâneo, como parte e induzindo para o todo. Mediante um exercício aplicado de Gestalt, a imagem percebida torna-se aproximatória, revelando afinidades eletivas (parafraseando Goethe) dos 5 desenhistas.
Num segundo momento, vejam-se a natureza, a composição, as ideias e circunstâncias desses sinais visuais em cada um dos autores. As afinidades formais, o que se vê e é visto nos desenhos, obtêm diversidade identitária, atendendo às poéticas das obras e revelando as suas condições únicas. A aparente similaridade entre as cinco diretrizes gráficas reúne-se numa exposição onde, mais nitidamente, se percebem as correspondentes identidades, sem se restringirem a ser particularidades individuais. Gera-se um cenário compósito, onde o visitante mergulha pela sinuosidade gráfica numa distensão morosa que revela o espaço em assimetrias, dissonâncias, tanto quanto em harmonias e proporções. Ritmos, intervalos e respirações convivem felizes.
Num terceiro momento, analisem-se as linguagens e intencionalidades de cada um dos cinco artistas aqui reunidos. As unidades gráficas de Amélie Bouvier simulam vistas e planos aéreos estriados, somando-se a si mesmos em linhas perspetivadas, estendendo-se até se constituírem como um organismo vivo em regularidade geométrica progressiva; em Nazareno assemelham-se a escamas que, mais recentemente, se metamorfoseiam em traços pequenos, desconfigurando-se, tendo evoluído até se dispersarem, como se fossem uma espécie de pelos no corpo da parede; em Renato Leal dominam círculos (quase estanques e fechados) que se alongam até regularidades cinéticas para uma percepção visual exacerbada e rigorosa; em Sofia Pidwell presidem os semicírculos que se expandem num infinito de parede, ondulando em densidade, translucidez ou quase diluição subtil de seres inomináveis, e em Paulo Climachauska, a configuração de uma arquitetura conceitual decorrente da subtração sequenciada reconverte-se numa sinalética onde os sinais e as formas, organizam o pensamento visual da humanidade antes da invenção da grafia. Coincidem todos na razão do acúmulo, conceitual, visível, adivinhado ou decifrado, pois propiciando uma expansão do desenho que alastra em compassos determinados e manifestos. Entre o pensamento e a obra em si, circula (porventura) nos artistas a decisão de atingirem níveis do quase minúsculo, exigindo a si próprios cumplicidades feitas de precisão, rigor e meticulosidade, atingindo a desejada praxis de desenhos dirigidos.
Num quarto momento assegure-se a presença dos artistas que é exigida no local específico onde a exposição se destina, pois a sua configuração (layout e montagem), assim como as obras que a preenchem, atingem o seu significado genuíno, pelo desígnio do processo em que se consubstancia. Os desenhos que nascem em cada uma das paredes evoluem, dinamizam-se em ritmos de tempo que apenas os seus respetivos autores sabem responder, pelo domínio do gesto que alonga ou estreita a demora, Por outro lado, é fundamental a dinâmica relacional que acontece entre os artistas e as pessoas que normalmente visitam os equipamentos museológicos que alojam a mostra. Durante os dias ou semanas em que o processo de desenho progride, os visitantes perscrutam a duração que os desenhistas resolvem para além do impulso e a intuição criadores em cada detalhe.
Finalizando, as obras, pensadas para esta coreografia de mostras, experimentam diferentes técnicas, formatos e suportes, adequando-se ao espaço expositivo, procurando-lhe uma flexibilidade percecional, física, tendencialmente e mesmo, impermanente, nalguns casos Os artistas pensam com o público na [quase] efemeridade intrínseca da criação artística, conscientes da precariedade do ato de desenho que persistirá, não somente nos registos, mas na memória de todos que vejam a exposição. É uma estética, de radicação antropológica, que revalida a condição primordial do desenho como matriz do humano, semente cultural transportando para a atualidade a pregnância das forças pulsionais em cumplicidade ao pensamento crítico.

As exposições já realizadas, e esta que se apresenta, demonstram como se pode manter a fidelidade a um propósito conceitual, aqui subsumido a ser pele e espessura do desenho, todavia reinventando-se visceral e matemático. Habitualmente, as exposições que desenvolvem itinerâncias, fazem-no através do deslocamento das obras, aceitando o desafio, ao experimentar locais diferentes, por relação àqueles em que se originaram. Neste caso concretizou-se a possibilidade, vinda da mais profunda vontade dos artistas, de criarem – em cada lugar – obras novas, configuradas todavia sob um mesmo teto pensado. A necessidade das viagens destes desenhos, intervenções diretas in loco, in situ, exprime-se na convicção estética, e através da cumplicidade dos 5 artistas de 2 continentes, que regularmente comunicam entre si, pulando por cima do oceano que une mais do que divide – de Lisboa a São Paulo, agora o Porto… Muitas águas, nuvens e profundezas a delineia.
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*Nota da edição: A Caju procurou preservar integralmente o vocabulário inerente ao português falado em Portugal, terra natal da autora, porque acreditamos que cada palavra contribui para o ritmo deste belo texto. Adaptamos apenas as grafias para a forma brasileira.
Autor
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Curadora e crítica de arte portuguesa, investigadora no Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa e professora na Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto.
Relacionado
Curadora e crítica de arte portuguesa, investigadora no Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa e professora na Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto.