Texto escrito para a exposição homônima do artista, em cartaz no Elefante Centro Cultural, em Brasília, até 15 de agosto de 2016.
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Brinquedos de papel surge da condição do artista como antena do seu tempo. Uma época, que – bom, vejamos… utilizemos a imagem de um voo turbulento – tem instabilidades geradas pelas flutuações constantes e intensas dos golpes de ar, atingindo passageiros dentro de uma grande máquina aerodinâmica. Pela metáfora do brinquedo avião e da dobradura em papel, Christus Nóbrega nos dá a perceber o empuxo de contextos sócio-políticos de conflito sobre a produção artística, estimula a reflexão do passado histórico e a atualidade das redes sociais.
O material inédito exibido no Elefante Centro Cultural faz parte de uma série maior, que também dá título a esta exposição individual. Brinquedos de papel – título curto, direto, aparentemente descritivo –, parecem não estar disponíveis para designar algo além deles mesmos. Em tese, um brinquedo é algo inofensivo, inocente e, quando muito, com alguma funcionalidade educativa. Teria, portanto, nas motivações de sua elaboração, todas as boas intenções do mundo. Ensinaria a obedecer, compreender sentidos, encaixar peças, a se comportar socialmente, por exemplo.
Já para extrairmos a função da palavra “papel” talvez seja melhor acentuar a condição desta locução adjetiva. Logo, o propósito imediato é caracterizar, qualificar o substantivo brinquedo, não sendo feito portanto de outro material, mas aquele mesmo ali “qualificado”. Surpreende neste caso o teor de certa intimidade doméstica, disponibilidade, domínio e descarte que a matéria-prima papel suporta. Este tem sido matéria-prima preciosa no trabalho de Christus na composição de imagens. Sua compreensão sobre o próprio trabalho na produção de formas a partir de imagens e desta arquitetura flexível é a da necessidade de desafios. Outros brinquedos estão previstos no desenvolvimento posterior desta série, como chapéus, barcos, cataventos e o vai e volta, também conhecido como leva e traz. Tanto nos aviões, quanto nestes a dobradura, o jogo de encaixe e as impressões têm funcionado como exercícios de narrativas em torno do jogo e irrupção de subjetividades.

A exposição foi planejada em três segmentos. O Plano de Voo faz alusão aos destinos, às cartas estelares e aos planejamentos. A Construção do Avião trata da formatação de subjetividades, questionando a autonomia dos pensamentos individuais e dos juízos de valor coletivos que escolhemos adotar. Aqui a mídia é o tema como um elemento formador. O Voo é o segmento do lançamento do avião, circunstância para se refletir sobre as condições de uma jornada mediante o plano adotado, as decisões tomadas e a constatação de certa imponderabilidade dos destinos.
Plano de Voo é o conjunto de peças que discutem as preconcepções, as ideias que antecedem rotas e objetivos. Coloca em questão os limites do cidadão comum excluído do conhecimento dos trâmites legais e técnicos para implementação das regras de voo. Os desenhos impressos levam em consideração o campo da imaginação e da suposição dos indivíduos acerca da burocracia do curso dos planejamentos. O jogo de traços, vazios, relevo, contra relevo e recortes dá conta dos obstáculos e ao mesmo tempo das possibilidades de avanço ao transpô-los. Nesta obra em particular é válido mencionar a doação anônima do papel timbrado oficial da Presidência da Câmara dos Deputados já com a preparação e divulgação da exposição em curso. Interessa aqui supor que os planos tenham essa liberdade de serem redimensionados.
No segmento Construção do Avião temos as Primeiras leituras. O objeto-livro vem sendo explorado por Christus em alguns de seus trabalhos, como a série Anexos (2015). Continua a interessar-lhe o próprio livro como materialidade de um topos do saber, marca epistemológica, estrutura discursiva como história de um tempo. De partida, busca o que o próprio livro é, conta, trata e mostra. A diferença é que se nos trabalhos anteriores em que explorava o autorretrato, a tridimensionalidade e a ilusão de ótica, em Primeiras leituras Chistus é discreto. A que se restringe sua ação? Recorro a um título de outro trabalho seu: Bibliomancia (2014). O que não veremos, mas podemos pressentir, é o performer agindo na abertura aleatória das folhas. A busca por respostas como numa

consulta a um oráculo a perguntar: como posso entender isto?
Seu gesto simples produz um objeto banal. Afinal quais são as formas de se fazer um avião?
Pegue uma folha de papel. Pode ser A4. Dobre a folha ao meio no sentido do comprimento. Traga duas pontas para dentro. Dobre-as. Marque bem a dobra. Use as unhas. Traga as duas pontas novas do passo anterior para o meio. Procure uni-las ao centro. Dobre a folha ao meio, com o lado com as dobras visíveis para dentro. Dobre as asas. Traga as duas abas para baixo para formar as asas. Marque bem as dobras usando suas unhas.
Christus ajuda a percebermos quem somos e fomos. Ficamos perplexos diante do que nós mesmos produzimos como realidade. Faz ver porque a pinça do artista e seus ready mades são insubstituíveis para atravessar mundos. A série de trabalhos ali montada como uma escrivaninha de estudo ajuda na consulta pública, no manuseio e na percepção de onde se poderia apontar o avião para atacar, divergir ou se identificar.

A série de conjuntos de “cenas” em um mesmo livro proporciona um exercício associativo para ponderar sobre o que está sendo comentando por agora nas redes. Macunaíma – Disney – Encouraçado Potemkin bem poderiam dizer: República das Bananas / complexo de vira-lata / ameaça estrangeira / a ideia do que se julga esquerda – comunismo. Já A Enciclopédia da Mulher com Cuidados com a Pele no Inverno / decoração do lar / brincadeiras sexuais das crianças sugerem outros anacronismos retóricos. Vale a brincadeira.
Brinquedo, Época de brincar e Isto é um brinquedo enfatizam a presença do contexto na arte pelo show da grande mídia. Podemos indicar como sendo dois grandes momentos explorados pelos meios de comunicação e debatidos nas redes sociais nos últimos três anos. Um, sob o emblema das “manifestações” e o outro sob a hashtag #impeachmentdapresidentaDilma Roussef, mas tendo o cenário da política brasileira e todos os seus políticos e poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como protagonistas.
Manifestações em tempos plurais

Sobre a primeira pauta se destaca a série de manifestações espontâneas de rua, protestos e atos de desobediência civil que ocorreram em diversas cidades do mundo no começo da atual década: a Primavera Árabe, a Revolução Egípcia de 2011, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos e os Indignados (Movimento 15-M) na Espanha. As manifestações de junho de 2013 no Brasil, por sua vez inicialmente deflagradas como reivindicação por mobilidade urbana (Manifestações dos 20 centavos), por terem sido duramente reprimidas ampliaram-se e exasperaram desejos de mobilidade social e de expressão, por meio de pautas específicas e ao mesmo tempo plurais.
Como entender os sentidos de uma democracia tão reivindicada e suas possibilidades práticas ao nos depararmos com os escritos em cartazes levados às ruas e dizeres nas bocas de parlamentares brasileiros no dia 17 de abril, quando da votação do impeachment na Câmara?
Pelo direito em não ter direitos
Fora Renan
Não é por 20 centavos
Também quero respeito aos direitos indígenas
Fora todos os partidos
Cadê o Amarildo?
Pela BR-429
Pelos médicos
Pelos fundamentos do cristianismo
Pela paz de Jerusalém
Pelo aniversário da minha neta
Pela minha família
No decorrer do tempo e dos acontecimentos, tais “opiniões” fariam eco em outra a sinalizar a suscetibilidade da sociedade aos comandos da imprensa acompanhando a Operação Lava-Jato: “se você não está confuso não está bem informado”. Com a disseminação de um discurso acerca da polarização política esquerda-direita como tendência mundial, acentuada devido às formas de comportamentos externadas nas redes sociais, para sobreviver é interessante considerar quais ideias encampar.

Dando continuidade ao núcleo Construção do Avião, as obras Natureza bela, morta e do lar, Maria Antonieta (Comam brioches) e UNE apontam para os atravessamentos entre arte, política e princípios históricos da produção contemporânea. A proposição de uma arte política no Brasil coincide, por um lado, com recrudescimento do estado de exceção durante os anos 1960 e, de outro, com proposições artísticas de caráter conceitual e crítico. Importava naquele momento a crítica institucional, o sistema da arte, criações coletivas, ‘desmaterializar’ o objeto, potencializar a efemeridade, utilizar materiais precários enfatizando processos criativos do (a) artista. Porém as arrumações que Christus realiza nos trabalhos são de ordem estetizante. Importa o valor de obra de arte na galeria.
Na série de retratos fotográficos de representantes da UNE – União Nacional de Estudantes vemos Carina Vitral, Luiza Calvette, Iago Montalvão, Amanda Costa, Gabriel Macedo, Ingrid Mangabeira e Jade Santana como anteparos. Com um dedo, param um avião que parece invadir o espaço à revelia do outro. Penso nos cartazes oriundos das pesquisas gráficas suprematistas como um legado instrumental advindo dos movimentos estudantis de 1968 na Europa. Parecem ser revisitados pela relativa estrutura de pôster que tem, no uso da fotografia, o adensamento necessário para idealizar talvez novos mitos. Aqui, o peso irredutível do construto histórico se faz presente. Em seus quase 80 anos de existência, a entidade estudantil tem em sua gênese a luta pela democracia, opondo-se desde o início à ascensão do nazi-fascismo de Hitler. As práticas políticas dos movimentos estudantis se desenvolvem gerando métodos e instrumentos em meio a acontecimentos como a adesão à Campanha da Legalidade (1961); a criação, em 1962, do Centro Popular de Cultura (CPC), em prol de uma arte popular revolucionária, envolvendo, entre outros, Oduvaldo Vianna Filho e Leon Hirszmann; o recrudescimento após o golpe de Estado e um ataque incendiário a sede da UNE, na Praia do Flamengo, ocasionando a entrada na ilegalidade de várias lideranças; e o engajamento na abertura e defesa da democracia (1984).
Com a natureza morta de Jan van Huysum e a Maria Antonieta de Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun retomamos tanto a questão da fragilidade das representações baseadas em uma perspectiva parcial, quanto o redimensionamento do sentido da “apropriação”. Como refletir sobre o uso contemporâneo irrestrito, por todos os lados, de palavras de ordem, cartazes, protestos, bandeiras, camisetas e panelas senão como legado instrumental?
Com a exposição Brinquedos de papel, Christus Nóbrega tenta depurar os acontecimentos de uma época. Requere atenção para a posição do artista como sujeito capaz de ampliar, redimensionar e sustentar ações políticas. Instiga a revisitar fatos, evidenciando a sensação de estar no olho do furacão da história. Creio que, sobretudo, ele estimula a gerar uma nuvem de temas que têm nos desestabilizado ou nos movem. Quem sabe possamos encarar o nosso presente persistindo na ideia de lideranças formais, na internet como um território e não um instrumento, no ativismo como capacidade mobilizadora, nos direitos como uma luta constante e na democracia como imperfeita e necessária.
Autor
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Pesquisadora e crítica de arte. Vive e trabalha em Brasília, onde é curadora associada ao Elefante Centro Cultural.
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