
Pátio, de Glauber Rocha, realizado em 1959, anuncia-se como um “filme experimental”. Em cena, um casal de atores (Sólon Barreto e Helena Ignês) ou talvez de personagens (um homem, uma mulher). Sobre o piso quadriculado de azulejos, movimentos extenuados, mas não desprovidos de desejo, recusam a racionalidade do tabuleiro de xadrez. O pátio está cercado por um muro de alvenaria, mas uma de suas bandas volta-se para o mar e descortina o horizonte. Além-muros, folhas de bananeiras balançam com o vento. Talvez as plantas espiem o que acontece no pátio, pois, com o entardecer, as sombras orgânicas dos vegetais rivalizam com a geometria da cerâmica: preto sobre branco sobre preto e branco em preto e branco.
O que se experimenta aqui? O cinema – é a resposta mais evidente. O jovem cineasta experimenta-se com o cinema – diz-se também. Mas essas respostas, fáceis, imediatas, descartam algo que está posto ali desde o início — o experimento. Esses corpos selvagens expostos ao sol, ao vento, ao rumor das folhas, ao odor do mar, dispostos contra a retícula civilizada, cuidadosamente observados pela retina cinefotográica. Já vimos isso antes, nas fotografias feitas por Portman dos andamanenses, no Sul da Índia, na segunda metade do século XIX. O fundo pintado com pequenos quadrados regulares pretos e brancos fora desenvolvido pela Sociedade Etnológica inglesa, em vista da medição comparativa dos corpos nativos das colônias britânicas. A abstração geométrica era um requisito tão fundamental da fotometria antropológica que Portman recomendava manter a folhagem em torno do sujeito fora de foco, quando não fosse possível usar o tecido xadrez. Mas em Pátio a folhagem não é mantida à parte. Ela invade o quadro, suas sombras movediças disputam os corpos com os azulejos estáticos do piso. Glauber tem consciência do choque entre esses elementos, a catástrofe que se abate sobre os personagens. A primeira coisa que distinguimos claramente na banda sonora do filme é uma sirene proclamando a urgência do cinema.
Pátio não é o primeiro “filme experimental” do Brasil, mas acredito que seja nosso primeiro cinema-de-experimento, categoria em que poderíamos incluir, por exemplo, Teorema, de Pasolini, de 1968, e boa parte da obra ficcional de Murilo Salles, com seus personagens confinados, deslocados, palmilhando a estreita linha imaginária que divide civilização e barbárie. Mas, enquanto o pátio de Glauber se transforma na plataforma de lançamento para um cinema épico, com Murilo ele ganha uma cobertura provisória, que nos permite permanecer ali um pouco mais, na expectativa de testemunhar as histórias que as sombras farão brotar nas juntas desgastadas dos azulejos.
É de lá que emerge Gabriel, de Nunca fomos tão felizes, diante do mar em Copacabana, em um apartamento quase tão despido quanto o pátio de Glauber. A penumbra ressalta o desenho dos tacos no piso. Pelos princípios experimentais de Murilo Salles, não há cinema — ou história — se não há desalojamento, se não há um por-se fora (a loggia não é um pátio, mas um corredor externo ou um pórtico, por onde se circula ou se entra nos palácios florentinos). Por-se loja afora, nos filmes de Murilo, nunca é um exercício de liberdade, mas mover-se de um confinamento a outro, de um internato a outro: dos padres católicos ao pai comunista; dos muros do colégio às paredes do aparelho. Mas o segundo confinamento não é o início ou o primeiro capítulo de uma história, é o local do experimento: “o que aconteceria se…?”
Não se trata mais de um cinema de observação, mas de experimentação ativa onde o personagem é exposto à história e aos hormônios, tendo que compreender, sem manual de instruções, o efeito de ambos em seu corpo e em sua alma. Há uma aposta teórica nesse filme, como em várias obras subsequentes de Murilo: cinema é tábula rasa. Não apenas superfície de inscrição, mas lugar de raspagem, de irritação.
Quanto mais Camila, de Nome próprio, lava e esfrega as escadas, mais se entrega ao experimento e menos em casa ela se sente.
O “pátio” assume diversas configurações em sua obra: um apartamento vazio de frente para o mar (Nunca fomos tão felizes), a laje de um edifício em Copacabana (O fim e os meios), quitinetes em São Paulo (Nome próprio), a casa do gringo em São Conrado (Como nascem os anjos) e a própria metrópole paulistana (Seja o que Deus quiser!). O nomadismo desses protagonistas, quase todos em fuga ou acossados por forças que os transcendem amplamente, nunca os joga “na estrada”. Movem-se para que deles disponha a tábula rasa do cinema. E é ali, sobretudo ali, que eles se revelam irremediavelmente falhados, inconclusos, irredimíveis. Mas o experimento-cinema de Murilo Salles não é psicológico, é sociológico. São as marcas do socius que o diretor quer ver aflorar de seus personagens desamparados e, frequentemente, disfuncionais. Uma vez capturados pelo experimento, as pequenas ilusões que cimentam os egos vão se esgarçando, o polimento se perde, e emergem, em sua mais crua e pura forma, os males fundamentais da cultura e da sociedade brasileiras: o mandonismo, o sadismo, o preconceito, o conformismo, o improviso.
O primeiro movimento, portanto, é esse esforço de abstração. Mas o cineasta está convencido de que não é possível raspar tudo, pois há algo indelével nas superfícies contemporâneas: as imagens eletrônicas. As telinhas sempre povoaram suas histórias: a TV de Gabriel e o computador de Camila, ocupam o centro da sala. O mesmo acontece com o laptop de Paulo na laje de Copacabana. Os protagonistas, por sua vez, evoluem de espectadores a produtores de imagens (blogueiras, jornalistas, publicitários). Mas, igualmente, cada um à sua maneira, de observadores a observados, de anônimos a infames. A exposição dos personagens à mídia eletrônica que começa a conta-gotas em Nunca fomos tão felizes assume proporções cavalares em O fim e os meios.
Passaporte para as imagens digitais
Há uma boa razão para isso. No mundo hipermidiatizado em que vivemos, o simples desalojamento dos personagens não é suficiente. A maioria de nós já adquiriu a dupla cidadania que nos confere trânsito livre no país das imagens digitais. Mas ao contrário da cidadania nacional, que nos é dada por inteiro, por meio de um ato natural (o nascimento) ou cívico (a naturalização), a cidadania digital deve ser constantemente alimentada por novas imagens. Ela é o Minotauro iconófago. Quando não lhe fornecemos seu quinhão diário de imagens perecemos no labirinto das redes sociais. Não surpreende, portanto, que Camila seja a única personagem a sobreviver íntegra ao experimento. No último plano do filme a escritora e seu duplo postam-se lado a lado. Ela aprendeu a retroalimentar-se das próprias imagens.
Ao conferir estatuto de personagem literário a seu duplo, Camila escapa daquilo que Roland Barthes chamou “metafísica parva” da fotografia, a mera constatação que nos aprisiona na reiteração e na tautologia. PQD, de Seja o que Deus quiser!, não tem a mesma sorte de Camila. Desalojado de seu habitat natural no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, foge para São Paulo onde é assediado por imagens das quais não consegue mais desvencilhar-se, como a de “negão do Comando Vermelho”, por exemplo. Mas em um dos poucos momentos de paz que lhe é concedido, a única conclusão a que logra chegar – mastigando alegremente um sanduíche – é um primor de “metafísica parva”: “São Paulo é São Paulo… e um cheeseburguer é um cheeseburguer”. Será preciso aprisionar-lhe o corpo para que sua imagem agora “livre” transforme-se em sucesso musical na internet. O encarceramento de PQD é, enfim, um destino menos trágico que o de Beto, pai guerrilheiro de Gabriel em Nunca fomos tão felizes, que precisou ser assassinado para que o filho finalmente pudesse possuir seu retrato.
O atravessamento do “pátio” por um crescente fluxo de imagens eletrônicas nos permite ver o que estava posto desde o início. O experimento-cinema de Murilo Salles não é apenas o lugar onde a trama dispõe dos personagens, mas o lugar onde o filme os expõe. De nada valeriam os desalojamentos e confinamentos sucessivos se não houvesse ali um dispositivo público de visibilidade. Seu lugar próprio, portanto, não é o pátio interno nem a loggia corredor, mas a verandah.
O escritor mexicano Salvador Elizondo dedicou um breve ensaio à palavra inglesa verandah, sem se dar conta de sua origem portuguesa — varanda, que os britânicos devem ter aprendido na Índia. “Situada entre o bangalô burocrático coberto e a selva e a ribeira” — escreve ele —, “a verandah é o ponto fronteiriço entre a civilização e a natureza, entre a ciência e a magia, entre o ‘progresso’ e a ‘barbárie’. É na varanda que se conversa e se narram as histórias do Império. Na verandah sentam-se Kipling e Conrad, fumando seus cachimbos e bebendo whisky ou gin. Se não fosse pelas varandas de Singapura e do Congo, sugere Elizondo, metade da literatura inglesa moderna não existiria.
Varanda: duplo território

É numa verandah em São Conrado que o “gringo” William, de Como nascem os anjos (foto acima), senta-se com seu bourbon, servido por D. Conceição, e contempla o “longo crepúsculo dos trópicos”, que amplifica os “ruídos da selva às suas costas”, enquanto “nos campongs do outro lado do rio” os nativos acendem as fogueiras em que cozinham “sua precária noção de arroz e batak”. Mas, em virtude de uma reviravolta improvável, a mansão do colonizador é tomada por Japa e Branquinha. Borra-se a linha divisória entre a “selva” e o “bangalô burocrático”, entre o recesso e a paisagem, o bom senso e a loucura. Em uma das cenas antológicas do cinema brasileiro, sob as luzes dos refletores da TV, Japa dança. A varanda agora pertence aos bárbaros, cujos olhos não buscam o horizonte mas o próprio corpo que a cada movimento, com os novos tênis de marca, converte-se alegremente em imagem. O vazio do pátio, o vazio dos ambientes. O vazio do cinema alcança o indizível. William e sua filha não têm nada a relatar. Quedam-se por aí, perplexos, sem ação, como essas malas de dinheiro que transitam pelos filmes do Murilo, sempre prontas para viajar sem jamais chegar a lugar algum.
Murilo Salles faz da reiteração de certas situações seu modo de persistir no cinema. A existência confinada de Gabriel, no colégio interno, rebate sobre a de PQD, no presídio. Os extremos das duas trajetórias se encontram no mesmo gesto: a solitária e sem graça chutação de bola contra um muro. Que motivo têm para insistir nesse arremedo de jogo? A banalidade do ato exclui a motivação. A repetição serve antes para nos confrontar com a obstinação do cineasta em realizar, a cada vez, seu novo (mesmo) experimento. Pois nem tudo no cinema evapora, há sempre algo que resta, um precipitado qualquer que nos ajuda a compreender melhor a nós mesmos e ao mundo em que vivemos. Bola mole em pedra dura – será que um filme fura?
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Autor
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Maurício Lissovsky é historiador, roteirista e professor da Escola de Comunicação/UFRJ.
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