Embora seja mais conhecido por seus premiados filmes de ficção, Murilo Salles possui até agora um igual número (seis) de longas-metragens documentais na carreira. Isso sem contar seus poucos curtas, quase todos conectados diretamente com o real. Vale a pena examinar como essa produção dialoga com sua faceta de ficcionista e como ajuda a forjar sua personalidade autoral.
Como muitos cineastas, Murilo gosta de relativizar a distinção entre documentário e ficção, apontando os deslizamentos frequentes entre os dois registros. No entanto, para efeito dessa rápida análise, consideraremos a fronteira que leva cada filme a ser classificado como uma coisa ou outra.
Diante dos seis longas e seis curtas documentais (que fizeram parte da mostra que ocupou a Caixa Cultural do Rio, em julho), sem muito esforço verificamos que eles constituem uma espécie de lastro conceitual de certos temas que Murilo desenvolve no subtexto dos filmes de ficção: a formação da identidade (seja ela pessoal ou nacional), os traços de improvisação e malandrice supostamente inerentes ao caráter brasileiro. Os documentários atuam também como áreas de expansão para a veia plástica do realizador, em cuja formação destacaram-se a fotografia e as artes visuais.
Filho de um jornalista estudioso de história, Alínio Tavares Ferreira de Salles, e de uma pintora e professora de história da arte, Yedda Navarro de Salles, Murilo acredita ter deles herdado o interesse pelos dois campos. O treinamento do seu olhar para a fotografia e as obras de arte pode ter origem no hábito adolescente de fotografar livros de arte para a mãe exibir em aula. Sem querer forçar ilações biográficas, parece natural que o cineasta tenha se tornado um exímio documentarista do fazer artístico.
Duas grandes questões me interessam de maneira especial no Murilo Salles documentarista. Uma delas é sua constante indagação/celebração de uma identidade brasileira através das expressões artísticas. A outra é a dialética entre presença e ausência do cineasta na gênese e na filmagem de seus documentários.
O Brasil dos artistas

Para considerar o primeiro aspecto, tomemos os seus documentários sobre arte. A começar por Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo, trabalho de juventude realizado em parceria com Ronaldo Foster. Nesse curta influenciado pelo experimentalismo godardiano, um ícone da cultura brasileira é enfocado não pela sua face gloriosa nem pelo currículo já então consagrador. Otelo, ou bem dizendo, Sebastião é visto em trajes domésticos, na casa modesta de classe média, falando de aspectos constrangedores ou trágicos de sua vida. Sucesso (mais que conhecido), dissabores e mágoas convivem numa síntese eloquente da condição do artista brasileiro. A linguagem descontínua e “nouvelle-vagueana” do filme ajuda a compor a imagem de um ator que serviu igualmente à chanchada e ao cinema marginal, ao melodrama e ao Cinema Novo.
Grande Otelo prenunciava, de certa maneira, os personagens DJ Duda e Cícero Filho dos futuros documentários Aprendi a jogar com você e Passarinho lá de Nova Iorque, que haveriam de ilustrar a vida difícil do artista periférico. Nesses dois filmes bem mais recentes, Murilo enfoca as estratégias de trabalho e sobrevivência de dois produtores de arte alheios aos grandes centros. Uma vez que a produção dos shows e CDs do DJ e empresário, assim como a dos filmes do cineasta, é sempre em escala doméstica, vale dizer que os documentários captam a um só tempo o trabalho e a vida das duas famílias. Emerge daí o retrato díptico de artistas desglamourizados, envolvidos até o pescoço no processo de “se virar” e “dar o seu jeito”. Processo esse que evoca as “cavações” dos cineastas brasileiros do início do século XX e pressupõe toda uma prática composta de pedidos, espera, gambiarras, esperteza, criatividade e miúdas corrupções do dia a dia.
Esses dois documentários foram lançados em 2015 simultaneamente com a ficção O fim e os meios, mais um filme sobre um casal tentando ganhar a vida e enfrentando as atribulações de seu ofício. À margem das classificações, portanto, esses três filmes falavam, em níveis diferentes, de uma condição brasileira que atravessa classes sociais e áreas de atividade. Da mesma forma, Aprendi… e Passarinho... dialogam com a comédia social Seja o que Deus quiser!, que coloca um músico negro da periferia carioca na situação de objeto de um sequestro armado por playboys paulistas. A inversão de sinais e o deslocamento de perspectivas são dispositivos dramatúrgicos muito caros a Murilo Salles, desde que ele renovou a temática da ditadura no cinema com Nunca fomos tão felizes.
Os documentários sobre DJ Duda e Cícero Filho são enfeixados no projeto És tu, Brasil II, que previa filmes sobre quatro artistas de periferia. São também uma inversão de sinais e um deslocamento de perspectiva em relação ao documentário És tu, Brasil, que os antecedeu em aproximadamente dez anos. Aqui, ao contrário, Murilo trata de quatro artistas plenamente bem-sucedidos no mainstream nacional e internacional. Tunga, Deborah Colker, Carlinhos Brown e Alexandre Herchcovitch personificam a criatividade brasileira estabelecida como fator de identidade nacional, elemento que a coreógrafa não deixa de colocar em xeque numa fala do seu episódio.
Murilo, entretanto, encampa com seus próprios rosto e fala, na abertura do filme, a ideia de que os quatro criadores representariam uma “imagem pensada” do Brasil – país que, segundo ele, é muito mais “imaginado” do que constituído como realidade palpável. Sendo assim, os processos criativos testemunhados em “És tu, Brasil” perpassam diversas junções formadoras da nossa nacionalidade e a projeta para cenários estrangeiros. Tunga, em sua primeira performance, leva pessoas nuas à floresta para celebrar a sensualidade das formas naturais e escultóricas; na segunda, forja e estilhaça peças de vidro numa capela francesa para interferir sobre a propagação da luz no lugar. Em sua coreografia, preparada para uma apresentação em Berlim, Deborah vasculha os cantos de uma “Casa”, promovendo a conexão entre brincadeira e arte, espaço real e estruturas imaginárias. Por sua vez, Carlinhos Brown, enquanto grava um disco para lançar na Espanha, passeia pelas reflexões autobiográficas e remonta a suas origens africanas. Brown é o artista que opera as pontes entre centro e periferia, entre a informalidade pré-consumo e a cultura de massa, um lado e outro do universo criativo do próprio Murilo Salles. Já o estilista Herchcovitch (o terceiro a trabalhar com corpos no filme) prepara desfiles para São Paulo, onde é celebridade absoluta, e Paris, onde é um David lutando contra Golias. Herchcovitch põe em pauta a potência imaginativa do transformismo e da mistura (de gêneros, materiais e posturas), característicos também de um Brasil urbano, contemporâneo e liberado.
O olho que potencializa

Isso nos leva aos filmes mais propriamente “de arte” do realizador. Já em 1984, para uma série da Rioarte, ele dirigiu o vídeo Sérgio Camargo — fevereiro 1984, em que explora as esculturas do artista como um olho visitante. A câmera varre lentamente as superfícies, circunda as peças, demora-se sobre detalhes e transfigura volumes através da iluminação. O princípio do olho visitante vai voltar em vários dos 21 ensaios visuais sobre artistas contemporâneos reunidos sob o título “O espetáculo e a delicadeza”, parte do projeto Arte Brasileira Contemporânea- Um prelúdio.
Nesse conjunto de ensaios, Murilo alterna o olho visitante — em galerias e exposições já montadas — com a documentação do preparo de obras e da realização de performances. O olho visitante, diga-se logo, não é uma câmera passiva que observa as obras, mas um olhar inquiridor, que decompõe os espaços (como na belíssima instalação de Ernesto Neto no Panthéon de Paris), torna cinéticas as justaposições estáticas de José Resende ou “narra” a partir da descoberta gradual da obra, de suas surpresas e efeitos (caso da galeria de Tunga em Inhotim). O passeio pelo ateliê de Nuno Ramos é um mergulho no caos criativo do artista, assim como as continuidades criadas entre o trabalho de Carlos Vergara no seu ateliê e no descampado das Missões Jesuíticas atestam a coerência do processo do pintor.
O registro de performances é um lugar privilegiado para o diálogo entre o cinema e as artes cênico-visuais, e Murilo o tem frequentado com razoável assiduidade. Além dos vários exemplos presentes em “O espetáculo e a delicadeza”, despontam os quatro vídeos produzidos durante as cinco performances de Tunga na inauguração da Galeria Psicoativa em Inhotim. Embora, modestamente, afirme que nada criou, Murilo certamente potencializou o resultado daqueles atos mediante o desempenho da câmera, os pontos de vista escolhidos e a cadência adotada na edição. Se no vídeo das xifópagas ele privilegia a mobilidade e a ideia de extensão e fluxo, no das mulheres e cerâmicas ele susta o movimento da câmera para melhor capturar o movimento dos corpos, dos gestos e das formas dentro do frame. O que está sempre em evidência é a procura de uma linguagem que não só revele, mas também amplie e até comente a impressão causada pela performance.
Esse envolvimento com o espaço da arte ecoa nitidamente nos filmes ficcionais de Murilo através da relação entre personagens e direção de arte. Basta observarmos o tratamento dos interiores em filmes como Nunca fomos tão felizes e Nome próprio, verdadeiras instalações, ou o estilo visual hip hop de Seja o que Deus quiser!
Filmar ou não filmar
Por fim, quero tratar, ainda que rapidamente, dos diversos níveis de interferência com que Murilo se presentifica nos seus documentários. Por circunstâncias de produção ou por opção metodológica, são poucos os que contaram com sua presença efetiva nos locais de filmagem. Murilo, afinal, vê a direção de documentários como uma questão de projeto inicial e de montagem. A captação seria um trabalho mais ligado à execução que à concepção.
Dos seis longas documentais que já assinou, três foram propiciados por convites. Em Moçambique nos anos 1970, o “Camarada Brasileiro” — como era por lá chamado — recebeu a incumbência de montar um filme a partir de materiais de arquivo das lutas de independência. Assim, nada seria filmado especialmente para Estas são as armas. Quando foi chamado para dirigir o filme oficial da Copa do Mundo de 1994, incapaz de estar em todas as cidades, Murilo optou por ficar numa espécie de central de comunicação em Nova York e dali coordenar as diversas equipes espalhadas pelos EUA. Só entrou em campo na fase final do torneio.
Foi na montagem que Todos os corações do mundo ganhou sua cara de filme sobre gente — fossem os ídolos Maradona, Hagi, Brolin, Preud’Homme, Baggio, Romário etc., fossem os torcedores de cada país com suas contribuições criativas. Aqui se faz interessante notar como esse filme planetário estende para diversas nacionalidades o tema da identidade, perseguido pelo cineasta em seus filmes brasileiros. Ao destacar e dramatizar a personalidade de algumas seleções, ele procura as almas nacionais empenhadas na mística do futebol-arte.
És tu, Brasil e O espetáculo e a delicadeza, ambos dedicados às artes contemporâneas, são aqueles em que a participação de Murilo é mais efetiva em todas as etapas. A intervenção é particularmente decisiva no primeiro, já a partir da aparição do diretor apresentando o projeto no prólogo. Integralmente filmados com a presença de Murilo, sendo em sua quase totalidade fotografados por ele, os quatro episódios de És tu, Brasil operam em linguagens bastante distintas. Enquanto as performances de Tunga sugerem uma abordagem cúmplice, com montagem dispersiva e nenhuma intenção de “explicar a obra”, nem mesmo “mostrar o processo criativo”, o trabalho de Deborah Colker dá margem a uma edição ágil e construtivista (a “Casa”), marcada por telas repartidas e ritmada pela verbalização energética da coreógrafa nos ensaios. Bem ao contrário, Carlinhos Brown desdobra-se em reflexões sobre suas origens e sua biografia, fala de seu método e inspirações, “tentando explicar como a música surge”. Afro-brasileiríssimo, Brown quebra o projeto observacional de Murilo e se espalha por onde e como quer. Já Alexandre Herchcovitch atua em perfeita consonância, sem jamais sair de seu casulo cool. Murilo, porém, dialoga com a androginia do personagem através do falso documentário, ao colocar atores para comentarem teoricamente o trabalho do estilista, como se fossem membros do seu staff.
No caso dos filmes de observação Aprendi a jogar com você e Passarinho lá de Nova Iorque, Murilo comandou a busca de personagens, mas simplesmente não apareceu durante as filmagens. Não queria criar nenhum apego, mas apenas cumprir, posteriormente, o que chama de “exercício de olhar para o material”. Assim, seu trabalho final estava desde o princípio condicionado ao que seus jovens colaboradores captassem espontaneamente em Brasília ou no Nordeste. Nesse tipo de terceirização parcial, o realizador abre mão de tudo o que diz respeito ao improviso e à recriação in loco, dissolvendo um tanto da autoria em troca de uma ação colaborativa dividida em fases estanques. O método se aproxima mais do praticado em cinejornais, com suas unidades de documentação relativamente autônomas, que do vigente no cinema direto, cujo funcionamento depende de uma observação “direta” do cineasta-jornalista em ação.
Seja pelo interesse em sondar a nacionalidade através das artes, seja pela postura incomum perante o fazer documental, a não ficção de Murilo Salles está a merecer uma atenção que ainda não recebeu.
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Autor
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Carlos Alberto Mattos é jornalista, escritor, pesquisador e crítico de cinema.
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