Restauro, o restaurante montado pelo artista Jorge Menna Barreto na 32a Bienal de São Paulo, talvez seja o trabalho mais radical e potente da Incerteza viva, tema proposto por Jochen Voz e os curadores associados da exposição.
A alta voltagem da obra vem de sua capacidade de diluição e de infiltração, e a distinção do restaurante é sua habilidade em servir. Menna Barreto e sua equipe passaram os três meses da Bienal na cozinha e no balcão, oferecendo ao público porções generosas daquilo em que mais acreditam: comida vegana saborosa, aromática e bonita, em três refeições diárias, a preços confortáveis. Pode parecer contraditório (e talvez o bom é que seja, já que a contradição também é alteridade), mas Restauro é contundente por seu silêncio e sua quase invisibilidade.
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Não há nenhum ponto para café, petiscos ou refeições dentro do prédio da Bienal e, além do público, toda a equipe do projeto (curadores, arquitetos, mediadores) é convidada a ir ao Restauro para, mais do que comer, se alimentar. O esquema de bandejão e as mesas coletivas reforçam a ideia de comunhão oferecida pela comida. Uma refeição como elo, como religare – religião. Também posicionado no prédio como uma espécie de praça para encontros, contemplação ou observação, Restauro tira do nome que deu origem à palavra “restaurante” a possibilidade de se transformar no impulso para um novo ciclo – da exposição, de cada visitante que se transforma em comensal. Estar aberta(o) ao cardápio-surpresa, que nunca se repete, foi a mais reconfortante das incertezas.
É um trabalho significativo para a trajetória de Menna Barreto, que com ele dá giros a mais na espiral de suas inquietações. Desde o início, sua produção tem relação profunda com a palavra e com o site specific, como mostram os seminais Con fio (1998) e Massa (2000), e ainda Metabólide (2010) e os tapetes-verbetes de Desleituras (2011).
Em 2007, o artista apresentou a primeira versão do Café Educativo, trabalho que condensa as possibilidades de interação com o espaço expositivo e com o público com o entendimento da comida como algo que pode ser político e transformador. Desde sua primeira montagem, o Café já teve várias configurações, mas permanece sempre a função de ser um ponto de apoio para os mediadores da mostra da qual faz parte e também um lugar de pausa e de troca para o público, através da degustação de um simples café ou mesmo de um suco específico.
A elaboração deste outro projeto, que começou em 2014, amplia a relação de Menna Barreto com os recursos naturais do lugares em que está expondo. Nos jardins dos museus, instituições e áreas vizinhas, ele recolhe as chamadas Panc (Plantas comestíveis não-convencionais) e com elas cria os Sucos específicos servidos ao público. O espaço do café e as bebidas criam uma relação de simbiose com a exposição e com a arquitetura do lugar em que ela acontece, entrando em um estado de comunhão com o público através do alimento. Cada visitante, por sua vez, tem a possibilidade de fazer parte da obra de arte, ocupando ainda um lugar no “ecossistema” que envolve um museu e seus arredores.
Espelho opaco para a Bienal
Restauro dá outra escala para as raízes plantadas pelo Café Educativo. Isso é nítido não apenas no que diz respeito às dimensões físicas do trabalho ou à sua duração. O que se aprofunda é seu poder simbiótico com o público e com a própria exposição. O restaurante montado no Ibirapuera é o melhor espelho que a Bienal poderia ter, e não por sua nitidez, mas justo pelo oposto. Na sua opacidade, Restauro nos permite vivenciar de maneira mais radical o propósito curatorial de Jochen Voz e seus companheiros de jornada. Extremamente política, sem no entanto jamais ser direta ou didática demais, a ocupa-ação restaurante é como aquele tipo de vegetação que insiste em nascer ao lado de outras teoricamente mais vistosas, se alastrando silenciosamente até dominar o canteiro. Uma erva daninha que, como vem ocorrendo nos mais recentes estudos de agricultura, tem sua adaptabilidade usada para combater a fome.
No texto em que apresenta a Incerteza viva no catálogo da Bienal, Jochen Voz cita Marc Fischer para falar do cenário pós-apocalíptico em que vivemos, e especificamente de uma “sensação de atraso, de viver após a corrida do ouro”, que é “tão onipresente quanto inconfessa”. Recorrendo também a Cervantes e a seu Dom Quixote, o curador enuncia que a exposição não pretendeu apresentar as lutas inglórias contra todos os moinhos, e sim na perseguição de novas utopias que possam garantir que o cavaleiro andante permaneça em movimento. A Bienal, escreve ele, pretendeu ser uma “investigação para encontrar o pensamento cosmológico, a inteligência ambiental e coletiva e a ecologia sistêmica e natural”. É ainda uma jornada em meio à neblina, mas, insiste o curador, a arte sempre trabalhou com o desconhecido, enfrentando paradoxos e se valendo “da incapacidade dos meios existentes para descrever o sistema de que somos parte” para apontar para a desordem, para a dúvida.
Apostar nessa deriva já foi um gesto bastante destemido do grupo de curadores, que optaram por radicalizar a incerteza com uma Bienal que tem quase dois terços de seus trabalhos comissionados. Isso significa que a exposição foi construída na penumbra, sob forte nevoeiro, enfatizando mais o caminho do que o destino. Uma Bienal que escolheu esperar respostas dos artistas. Um risco, mas um risco extremamente louvável.
No resultado visível para o público, a aposta arriscada incorre em certas repetições (um excesso de trabalhos com terra e referências indígenas, por exemplo) e em escorregadas para o didatismo (é impressionante a quantidade de trabalhos em tópicos ou em formato de painel, organograma ou poster), mas, por outro lado, presenteia o visitante com uma constelação de potências. Eu destacaria neste último grupo o trabalho de Lais Myrrha. As torres totêmicas de Dois pesos, duas medidas resumem nossa história ancestral e nossa economia recente em um único golpe e impressionam por seu enorme poder de síntese, mas também por sua capacidade de comunicação plástica e imagética.
Esta é, aliás, outra virtude desta Bienal: embora não caia nas armadilhas de uma beleza gratuita, não deixa de se preocupar com a plasticidade, criando âncoras visuais para o visitante em todo o percurso expositivo. Elas garantem empatia e possibilidade de mobilização desses passantes. Isso não acontecia na Bienal anterior, que desperdiçou trabalhos muito potentes (e muitos outros nem tanto) em um esgarçamento expositivo árido e pouco generoso.
Nesta edição, além da organicidade proposta pela curadoria, conta muito para uma mostra mais comunicativa, no melhor dos sentidos, o projeto expositivo do arquiteto Alvaro Razuk e sua equipe, que opta por emular a proposta da curadoria. Discreto, quase imperceptível, usa o mínimo de divisórias e de cenografia, apostando na organicidade e também na sustentabilidade – menos parede significa menos dano e desperdício. Também não briga com o desafiador prédio de Oscar Niemeyer e nem prentende escondê-lo: a arquitetura do prédio e a paisagem que o atravessa estão integradas e por isso colaboram com o entendimento de cada obra e do conjunto.
Eu listaria outros artistas e obras que valem uma ida ou um retorno ao Ibirapuera, onde a Bienal estará montada até 11 de dezembro: While I speak, While I write e While I walk, de Grada Kilomba; Francis Alÿs, sempre ele; Cristiano Lenhardt; Wlademir Dias-Pino; Tracey Rose; Vivian Caccuri; o projeto Vídeo nas aldeias; José Antonio Suárez Londoño e as salas históricas e em homenagem a Victór Grippo, Sonia Andrade, Wilma Martins e Gilvan Samico.
Mas ressaltaria ainda que a Bienal tem mais mulheres do que homens, além de artistas de todos os continentes, com forte presença da África. Afinal, também é importante dizer que tudo aquilo que realmente é importante dizer precisa ser dito. Nos passos seguintes, o que foi tornado verbo e carne precisa também ser deglutino e digerido. Esta talvez seja a aposta mais bem sucedida da 32a Bienal de São Paulo, que tem em Jorge Menna Barreto um de seus pratos mais cheios: criar alimento utópico para regenerar nossos dias.
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Além do ensaio de Raul Leal, este post tem outras imagens. A de destaque, no alto, e a do trabalho de Lais Myrrha são de divulgação da 32a Bienal de São Paulo e foram retirada do site oficial da exposição. As imagens de Desleituras e de Jorge Menna Barreto bebendo um Suco específico são do site do artista.