E as paralelas dos pneus n’água das ruas
São duas estradas nuas
Em que foges do que é teu
Belchior, Paralelas, 1977
O título desse texto morava ali ao lado. Esquecido em um poste, o pequeno cartaz pairava, congelado, ao lado do constante giro do Projeto Monumento. Pau? Pedra? Não se sabe o que parou o carro encontrado por Adriano Guimarães, Ismael Monticelli e Fernando Guimarães em um ferro-velho de Brasília. Mas ele chegou ao fim de um caminho. Interrompido, foi posto a rodar, como um produto exposto em destaque na vitrine, última novidade. O destaque em uma loja cuja propaganda é a falha, o defeito. Durante a exposição na marquise da Funarte, esteve sujeito ao vento, ao sol de rachar, às águas de março fechando o verão. E à lama, à lama, à lama.
A terra vermelha do cerrado primeiro cobriu o automóvel e depois foi parcialmente lavada pela chuva. A ação do tempo – o meteorológico, o cronológico, o subjetivo – ampliou a carga escultórica do trabalho. Não pelo aspecto formal, mas pelo simbólico. O material de que é feito esse Projeto Monumento é a memória ou, melhor dizendo, as memórias, no plural. Amálgama das lembranças da cidade, de seus moradores, de uma nação que projetou utopias a partir da inauguração de Brasília. Um carro-que-já-não-é-mais, e que se transforma em aborto do aceleradíssimo sonho da capital (“50 anos em 5”, prometeu Juscelino Kubitschek).
Na intervenção pensada pela parceria entre os três artistas, o carro esteve sempre em movimento, mas sem sair do lugar. Lembrou as voltas das corridas automobilísticas que foram febre da juventude de uma Brasília recém-inaugurada, assim como a roda-viva de um golpe que, pouco tempo depois da abertura da capital federal, regurgitou as lideranças do país para o exílio ou para a morte. O carro coberto de terra, vestígio dos tratores que abriram estradas, atualizando os bandeirantes, rumo ao Oeste. O carro acidentado como as entranhas reviradas da cidade; o avesso do monumento; o inventário das ruínas.
“Perda total”, deve ter dito o laudo do acidente que o destruiu. Mas a paisagem da marquise da Funarte me ofereceu um contraponto a esse parecer – palavra com bem-vindo duplo sentido. Havia o poste bem ali, vizinho ao trabalho, exibindo o tal cartaz. O lado direito um pouco arrancado, a letra “e” da palavra “que” e a letra “z” do verbo “fiz” parcialmente mutiladas, mas não o suficiente para interditar a mensagem. Se “O que não fiz vira sonho”, o carro batido é a exumação de um corpo que ainda vibra, para além de todas as perdas. Brasa adormecida sob as cinzas, o fóssil incandescente enunciado por Warburg.
A potência do Leitfossil warbuguiano reside em sua capacidade de conexão. O Projeto Monumento apresenta um carro que parece ter vindo de dentro da terra, como vestígio de outro tempo que sonhou o futuro, mas que também guarda em si uma grande capacidade de ser, ele próprio, um arqueólogo. Desde antes da inauguração, as páginas criadas pelos artistas do Monumento nas redes sociais – a meu ver, ação indissociável do projeto – vêm criando um inventário de trabalhos artísticos que usaram carros como ponto de partida (e de chegada). Há de Christo a Milton Marques; de Jarbas Lopes a Arman – e a insistência nessas imagens, sem maiores explicações ou teorias, foi mais um gesto de resiliência do projeto, criando enigmas que são também coágulos para o fluxo incessante de nossa existência cada vez mais virtual.
A velocidade foi uma meta e uma bandeira do Manifesto Futurista. Marinetti e Balla usaram o carro como condutor da performance e da imagem. As vanguardas do início do século XX foram atravessadas pela dispersão e, já no início do século XIX, os olhares desviantes das mulheres de Manet assinalam o impacto da pluralidade de estímulos sensoriais vindos de uma sociedade cada vez mais veloz, elétrica e insone. Duas grandes guerras, um holocausto e uma bomba atômica depois, o anjo da história cantado por Benjamin cobrou sua conta de desencantamento. A arte contemporânea hoje tem à sua disposição uma espécie de museu das ilusões perdidas, além da sensação de que o “novo” – tão perseguido por aqueles antecessores – é um horizonte impossível.
O hiperestímulo prossegue. Tanto é assim que o Projeto Monumento foi gestado enquanto acontecia uma ferrenha discussão sobre a suspensão do limite de velocidade na maior metrópole brasileira. São Paulo se recusa a diminuir a marcha em suas Marginais. E talvez não soe exagerado dizer que, sempre acelerada, São Paulo sequer percebe aquilo que está à margem. Maria Cristina Franco Ferraz mostra como a invenção do revestimento em teflon para panelas e outros utensílios de cozinha poderia ser uma metáfora para nossos tempos. Vivemos deslizando, sem nada que ofereça atrito e nos obrigue a certa aderência. Um mundo sem vínculo e sem a erosão causada pelos choques ou pelas intempéries – um mundo, portanto, que corre incessantemente sem tomar consciência das próprias transformações e, mais ainda, sem criar o tempo necessário para absorvê-las. A velocidade gigantesca a que temos nos imposto nos leva a uma paralisia cada vez mais profunda – somos tediosamente cínicos e, sem tempo ou espaço para experiências, seguimos engolfados pelo dejà vu e pelas erupções violentíssimas das discussões no Facebook.
Violentas, mas fugazes. Vivemos um mundo de bandeiras efêmeras. Talvez por isso seja tão sintomático que o Projeto Monumento tenha começado com uma bandeira fincada no carro – ele próprio ocupando o lugar da partida e da chegada; ele próprio como a fronteira a ser conquistada. Com a ação do vento e das enxurradas que lavaram Brasília, a bandeira adernou, saindo da vertical para a horizontal e se transformando em uma espécie de lança. Marília Panitz, minha companheira de jornada nesse trabalho, viu lindamente o surgimento de um Dom Quixote nessa ação do acaso – o carro e seus moinhos inventados. Eu acrescento a essa imagem uma outra – a de São Jorge fundido a seu dragão. O sonho da razão criando monstros e precisando enfrentá-los no devastado território lunar, tão vazio e melancólico quanto Brasília.
“O que não fiz vira sonho”, tenho repetido como pedra procurando limo desde o início dessa história. O não-fazer também tem sido uma forma de resistência nas trajetórias autônomas dos artistas que escolheram se reunir no Projeto Monumento. Dono de uma obra fronteiriça entre as artes visuais e a literatura, Ismael Monticelli tem perseguido a quase invisibilidade. Tira partido da opacidade, da translucidez e de gestos e objetos mínimos para exigir do observador não apenas cumplicidade, mas certo esforço de contemplação. Com longa estrada no teatro, os irmãos Adriano e Fernando Guimarães também vêm criando trabalhos plásticos e performáticos cuja sobreposição de camadas – físicas ou temporais – induz o observador a rever. Isso pode se dar através do uso de um dilatador de pupila, que de fato altera a visão, ou mesmo de materiais como água e vidro, filtros e lentes para objetos e corpos desde muito antes da invenção do Instagram. Em comum, os três têm a insistência em um estado de suspensão. O Projeto Monumento também insiste na fronteira: é jardim e ao mesmo tempo ruína; é o avesso da arquitetura e ao mesmo tempo prolonga, de um modo propositalmente capenga, defeituoso, a linha da marquise da Funarte. O espaço “entre” é pausa. E é nela, naquilo que não fazemos, que reside nossa capacidade de imaginar e sonhar.
Os projetos anteriores que Monticelli e os Irmãos Guimarães fizeram em parceria também guardam relações profundas com o Projeto Monumento. Em Rumor, de 2012, o visitante era convidado a contemplar uma instalação feita de vidros vazios, recolhidos na casa de um acumulador de objetos, e um piano mudo. Imersa no lusco-fusco, na fronteira entre aquilo que se vê e o que não se vê, essa paisagem era atravessada por textos de Samuel Beckett, lidos de maneira entrecortada. O interstício – da luz, da palavra – como grande motor da obra. A fenda como espaço e tempo necessários à imaginação. Em Ruído, micropeça teatral apresentada em 2016 em uma sala do Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro, o texto cheio de silêncios e de não-ditos reforça a opção dos artistas pelas narrativas entre parênteses, marcada por interrupções vindas de soluços, de suspiros ou mesmo da gagueira. O discurso que cria empecilhos para si mesmo, provocando pausas na fala e na escuta. O cenário da peça mostrava uma banheira coberta de terra e um fio de pequenas lâmpadas, memória de festas do interior, possível gambiarra elétrica. A terra na banheira como uma espécie de túmulo ou ampulheta. Terra-tempo, grão a grão.
Terra tão vermelha quanto à do Projeto Monumento, memória do cerrado que parece cobrar de Brasília o que lhe foi tirado, insistindo em colorir a neutralidade do concreto, maculando a pureza imaginada pelos modernos – a cidade vencendo o projeto. Terra que é uma lembrança – a de que não importa a velocidade, nem o quanto vamos insistir em andar em círculos: viemos do pó, ao pó voltaremos.
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Momento, memento, monumento, movimento, de Marília Panitz – clique aqui
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