Em Não me abandone jamais, Kazuo Ishiguro usa intimismo denso e atravessado por metáforas para esquadrinhar abismo da finitude
No duplo papel de indivíduo e demiurgo, o homem parece cada vez próximo de assumir funções por ora circunscritas ao divino. Tal possibilidade, antes restrita às especulações da ficção, insinua-se nas frestas da monstruosa (e fascinante) clonagem de animais – que, transportada para a esfera humana, invoca a indagação: seria essa, então, uma pessoa?
A questão paira sobre as 344 páginas do romance Não me abandone jamais (Companhia das Letras), de Kazuo Ishiguro. O escritor japonês radicado na Inglaterra, que acaba de conquistar o Nobel de Literatura, já tinha no currículo o Booker Prize de 1989, por Resíduos do dia. No premiado livro, que acabaria adaptado para o cinema por James Ivory (com título em português diferente do livro – Vestígios do dia), Ishiguro retrata a decadência vitoriana ante a incipiente modernidade. A perspectiva da fundação de uma nova ordem social é retomada em Não me abandone jamais, de 2005. Só que os tempos são outros e as mudanças, talvez ainda mais oblíquas.
Também transformado em filme, sob a direção de Mark Romanek, o romance desenrola-se no fim da década de 1990, época em que chegam a público as primeiras experiências bem-sucedidas de clonagem animal. Kathy, a protagonista e narradora, tem 31 anos. Seu trabalho como “cuidadora” se resume em vagar por hospitais prestando assistência aos “doadores”, muitos deles seus ex-colegas em Hailsham, o internato de excelência onde se formou. No futuro, e Kathy sabe disso, ela também será uma “doadora”. A finalidade de sua concepção e os rumos de seu destino foram previamente traçados: Kathy nasceu para ceder seus órgãos, e depois morrer.
Durante a juventude em Hailsham, povoada de algumas dúvidas e muita inocência, ela e seus amigos estudaram, brincaram, sorriram, choraram, fizeram sexo, sentiram medo e se apaixonaram, como qualquer pessoa. O mérito de Ishiguro é exprimir, com engenho narrativo, a humanidade que cada um desses gestos encerra ao simplesmente acontecer. Uma frase, um toque, um olhar, e a aura do clone se esfarela.
Assim como os personagens, o leitor é conduzido gradualmente da atmosfera idílica do internato à revelação do futuro inexorável. O abismo que o amanhã representa é aceito com resignação. Se a angústia ganha espaço, eles se agarram às próprias reminiscências, como revela a passagem em que Kathy tenta consolar Tommy:
“Sabia que estava perto de concluir, de modo que me fazia descrever as coisas de forma que elas penetrassem em sua lembrança. A intenção dele, talvez – durante as noites insones devido aos remédios, à dor e à exaustão -, era tornar indistintos os contornos que separavam as minhas memórias das suas. Só então compreendi quanta sorte tivéramos”.
A felicidade ficara, portanto, em Hailsham – onde, a despeito do relativo cerceamento, ela e os colegas de fato “viveram”. Lá, o fio do afeto os unia. Ishiguro sublinha essa ideia em cenas líricas, como o instante em que Kathy vislumbra, de longe, um palhaço com balões de gás presos à mão. Os balões estampam desenhos de rostos sorridentes, e ela se vê aflita com a eventualidade de se soltarem. A imagem de fora doía dentro:
“Pensei em Hailsham e fiz uma relação de seu fechamento com alguém munido de tesouras que se aproximasse e cortasse o barbante dos balões, bem onde todos eles se entrelaçavam no punho do homem. Assim que isso acontecesse, não restaria mais nenhuma evidência de que algum dia eles estiveram ligados uns aos outros”.
Esse intimismo denso e atravessado por metáforas marca toda a narrativa, tornando dispensável a teorização que atravanca um pouco a parte final. Pois é na entrelinha que Ishiguro consegue inventariar com mais potência o dilaceramento da protagonista. Kathy, Tommy, os cuidadores, os doadores e também os beneficiários de seu padecimento, tendo ou não complacência diante do que veem, são apenas matéria de memória, à espera da morte, líquida e certa.
Ou de reencontrar, por um segundo que seja, aquilo ou aqueles que se foram, como sucede com Kathy. Ao estacionar seu carro em frente a um campo rodeado de arame, ela repara que a cerca, “única coisa capaz de barrar o vento por vários quilômetros”, travou um amontoado de lixo – e fantasia:
“De olhos semicerrados, pensei no lixo […], na franja de objetos vários ao pé da cerca, e imaginei que esse era o lugar onde tudo o que eu havia perdido desde os tempos de infância tinha ido parar, e que se eu ali, imóvel, esperasse o suficiente, uma minúscula figura apareceria no horizonte, lá bem ao longe, e iria aumentando aos poucos, até que eu visse que essa figura era Tommy, e ele me acenaria”.
O desenho de Tommy, contudo, rapidamente se desfaz – e Kathy então liga o motor e parte, deixando a quimera e carregando a solidão, para a vida que, mesmo efêmera, segue.
Autor
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Escritor e jornalista. Autor, entre outros, dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Crônicas), "Rua de dentro" (Record), "Ferrugem" (Record), "Na dobra do dia" (Rocco), "A palavra ausente" (Rocco) e "Somos todos iguais nesta noite" (Rocco). Organizador de coletâneas como "O meu lugar" (com Luiz Antonio Simas, Mórula) e "Canções do Rio" (Casa da Palavra).
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